O incondicional amor de pai

Mas uma coisa é ler um romance sem maturidade, sem ter vivido a vida, sem ter a exata consciência das coisas e do mundo; outra coisa, muito diferente, é ler um romance tendo vivido a vida, tendo acumulado experiência. Ao fazê-lo, nessas condições, somos, muitas vezes, tomados pela emoção, porque, quase sempre, apenas lemos o que já vivenciamos -como protagonistas ou como figurantes. E, conforme tenha sido a experiência, um determinado romance pode penetrar na sua alma, nos emocionar, nos fazer refletir.

Juiz José Luiz Oliveira de Almeida
Titular da 7ª Vara Criminal
Cuido do amor de pai nesta crônica.
Em determinado fragmento anotei:
  1. Pelos meus filhos e somente por eles sou capaz de renunciar a qualquer coisa. Para fazê-los felizes não meço e nem medirei sacrifício. Como o pai de HELENA, eu também sou capaz de qualquer coisa pela felicidade dos meus filhos – até mesmo deles me afastar, se essa for a condição de sua realização.
  2. A verdade é que somente depois que temos filhos, é que somos capazes de dimensionar o amor. Tivesse relido o romance em comento, sem ter tido o privilégio de ser pai, seguramente com ele não me sensibilizaria, pois que sei que só sabe o que é o amor verdadeiro aquele que teve o privilégio de ser pai – ou mãe. Só o amor de pai (ou mãe) para com os filhos é incondicional, é completo, é superior, é imensurável e, às vezes, incontrolável.

 

A seguir a crônica, por inteiro.
A leitura de um romance, dependendo das circunstâncias em que ela se dá, pode muito ou nada significar; pode de tocar a alma, te sensibilizar, ou não. Pode, muitas vezes, se constituir em apenas uma leitura a mais, um prazer momentâneo, o que, decerto, já seria relevante.
Na minha juventude, sedento de conhecimento, li muito, quer literatura mundial, quer a literatura nacional. Eu não tinha preferência. Eu queria, mesmo, era ler, amealhar conhecimentos, me colocar no mesmo nível de alguns colegas de faculdade. Li todos os romances de Ágatha Christie, até que “caiu o pano”. Da literatura – clássica ou não – que se me foram colocados ao alcance não deixei escapar nada, ou quase nada. Machado de Assis? Li praticamente tudo. Athur Azevedo? Idem. Eça de Queiroz? Da mesma forma. Leon Tolstoi, Dostoiévisk, Jorge Amado, José Saramago, Gabriel Garcia Marques, Josué Montelo, Mário Vargos Llosa, Jean-Paul Sartre, dentre outros.

Mas uma coisa é ler um romance sem maturidade, sem ter vivido a vida, sem ter a exata consciência das coisas e do mundo; outra coisa, muito diferente, é ler um romance tendo vivido a vida, tendo acumulado experiência. Ao fazê-lo, nessas condições, somos, muitas vezes, tomados pela emoção, porque, quase sempre, apenas lemos o que já vivenciamos -como protagonistas ou como figurantes. E, conforme tenha sido a experiência, um determinado romance pode penetrar na sua alma, nos emocionar, nos fazer refletir.

Pois foi justamente o que se deu comigo agora pouco, às cinco horas da manhã, quando terminei a releitura do romance HELENA, de Machado de Assis. O sofrimento de HELENA, decorrente da irresponsabilidade (?) de sua mãe, o amor incondicional do seu pai, a compreensão dos seus amigos, a bondade do Conselheiro que a adotou como filha, a sua retidão de caráter, tudo isso me tocou profundamente, diferente do que ocorrera quando o li na juventude, sem sequer sonhar em ser pai.

O que mais me emocionou nesse romance, além do razoável, foi o sacrifício do pai de HELENA, para proporcionar-lhe felicidade. O despreendimento do senhor SALVADOR só o entende quem é pai.

Pelos meus filhos e somente por eles sou capaz de renunciar a qualquer coisa. Para fazê-los felizes não meço e nem medirei sacrifício. Como o pai de HELENA, eu também sou capaz de qualquer coisa pela felicidade dos meus filhos – até mesmo deles me afastar, se essa for a condição de sua realização.

A verdade é que somente depois que temos filhos, é que somos capazes de dimensionar o amor. Tivesse relido o romance em comento, sem ter tido o privilégio de ser pai, seguramente com ele não me sensibilizaria, pois que sei que só sabe o que é o amor verdadeiro aquele que teve o privilégio de ser pai – ou mãe. Só o amor de pai (ou mãe) para com os filhos é incondicional, é completo, é superior, é imensurável e, às vezes, incontrolável.

Sou muito feliz por ter conhecido o amor verdadeiro. A exemplo do senhor SALVADOR, eu também, se preciso for, renuncio a tudo por amor aos meus filhos.

Uma das passagens mais memoráveis do romance foi o reencontro de Salvador com a filha, que lhe tinha sido roubada pela ingrata(?) Ângela. Encontrou-a à saída do colégio. Narra o autor, a propósito do reencontro, as reflexões de SALVADOR:

“Vi-as descer e entrar. Levado por impulso irresistível, entrei também. Queria contemplá-las de longe, sem lhes falar; mas a resolução estava acima das minhas forças. Que pai não faria tanto? No lugar mais solitário do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não reconhecer-me logo; mas atentou um pouco, recuou espavorida e agarrou-se à mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava ali um pai, mas um espectro que regressa do outro mundo. Ia afastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar à mãe: ‘Papai ?’ Voltei-me. Ângela envolvera o rosto da criança entre os vestidos. O gesto equivalia a uma confissão;mas esta foi ainda mais clara quando a mãe, cedendo à boa parte de sua natureza, ergueu resoluta os ombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, fitou-a e fez com a cabeça um gesto afirmativo. A menina não exigiu mais; correu para mim e atirou-se-me nos braços. Ângela não se atreveu a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrifício falavam em meu favor”

Adiante, resignado, SALVADOR sucumbiu diante das evidências. E, feliz pela nova vida que o padrasto agora proporcionava à sua amada HELENA, concluiu:

“Fez bem. Deu-lhe um pai melhor que eu”

Depois, aduziu:

“A abastança aperfeiçoara a natureza. Olhei-a sem inveja e sem cólera – mas com saudade – nessa vez deliciosa, porque rememorei os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um pecúlio para os que já não esperam nada do presente ou do futuro; há ali sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo”.

Se me roubam um filho, se o afastam de mim, não sei se seria tão altaneiro quando SALVADOR. Talvez até renunciasse a tudo, em benefício da felicidade deles. Por amor aos filhos, um pai é capaz de tudo.


 

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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