Aqui se faz, aqui se paga?
Minha mãe costuma repetir, para não perder a esperança que “aqui se faz, aqui se paga”. Esse aforismo traduz a certeza que ela tem, desde sempre, de que os que fazem maldades, paguem por elas ainda em vida, aqui na terra, para que todos nós testemunhemos, e para que sirva de exemplo.
A vida nos tem ensinado, minha mãe, que não é bem assim, pois que, por tudo que temos testemunhado, há muitos que fazem maldades e, ainda assim, vivem uma vida plena ostentando e afrontando, como se fossem proprietários do mundo, o que me autoriza a concluir não ser verdade, sob uma perspectiva terrena, que aqui se faz e que aqui se paga, pois, afinal, se aqui se faz e aqui se paga, no sentido que empresto à locução, então quem não faz aqui, aqui não deveria pagar. E não é isso que tenho testemunhado, por exemplo, com as vítimas da Covid -19, muitas delas reconhecidamente boas, e que, ainda assim, depois de intenso sofrimento, tiveram a vida subtraída, muitas delas, inclusive, sufocadas, sem ar, fruto da irresponsabilidade de alguns dos nossos representantes.
Aqui e acolá, é verdade, testemunhamos, só para não perder a fé, a queda de um bandalho. Mas, confesso, desalentado, que, quase nos estertores da vida, vi poucos calhordas padecerem aqui na terra, seja pelo beneplácito da própria natureza, seja pela omissão das instâncias de controle, cujas ações, todos nós sabemos, se destinam a uma clientela específica, sobre a qual derramam, preferencialmente, toda a sua energia, deixando à ilharga parcela relevante de malfeitores do colarinho branco.
A verdade é que poucos são os que pagam sob os nossos olhares pelas maldades que fizeram em vida, como se deu, por exemplo, com Mem de Sá, cujo fato histórico narro a seguir, à guisa de ilustração.
Pois bem. Durante dez anos, Mem de Sá, escolhido, cuidadosamente, pelo rei D. João III, de quem era amigo, para substituir o desastrado Duarte da Costa, exterminou milhares de indígenas, dizimou centenas de aldeias e estimulou o tráfico de escravos, ao tempo em que amealhava uma enorme fortuna pessoal, em razão do tráfico negreiro, de suas fazendas de gado, dos seus engenhos de açúcar e da exportação do pau-brasil.
Todavia, pagou um preço alto: numa expedição enviada ao Espírito Santo, em abril de 1558, para combater os Aimorés, foi morto seu filho Fernão, sendo que, nove anos mais tarde, morreria também, vítima de uma flechada, seu sobrinho Estácio de Sá, na luta contra os franceses e Tamoios pela conquista do Rio de Janeiro.
A filha Beatriz, de 12 anos, e a mulher, Guiomar, também estavam mortas, tornando-o mais solitário e soturno ainda, solidão que sintetizou, em 1569, numa carta enviada ao rei, com a seguinte expressão: “Sou um homem só.”
Mas o que mais o atormentava acabou acontecendo: morreu aqui, e aqui foi enterrado, sozinho, esquecido pela corte.
Antes, em 1568, quase aos 70 anos de idade, há mais de uma década como governador-geral, Mem de Sá escreveu uma carta ao rei de Portugal. Nela, dentre outras coisas, implorava para que fosse mandado outro governador, pois que tinha receio de morrer em terras nas quais se julgava degredado.
De nada adiantou. Morreu, triste e solitário, por essas bandas; rico, sim, porém infeliz.
É isso.