O QUE NÃO MUDA NA DECISÃO DO SUPREMO

supremo-tribunal-federal-claudio-marcio-2Na semana passada, o mundo jurídico foi surpreendido com a decisão do Supremo Tribunal Federal, mudando a sua orientação jurisprudencial, que vigorava desde 1999, para considerar a possibilidade de o réu condenado em segunda instância começar logo a cumprir a pena; antes, portanto, do trânsito em julgado da decisão condenatória.
A mudança de posição da Suprema Corte decorre, induvidosamente, da sensação de impunidade e dos efeitos danosos para sociedade dos incontáveis recursos manejados por hábeis advogados, no sentido de evitar que uma casta privilegiada pague pelos crimes que cometeu.
A razão de tamanho frisson – e muita indignação no andar de cima da criminalidade – no mundo do Direito condiz com o argumento de que, com a decisão, o Supremo solapou o princípio da presunção de inocência encartado em nossa Constituição, que prescreve ser inocente o acusado, até que sobrevenha uma decisão condenatória transitada em julgado, a obstar o cumprimento antecipado da pena infligida.
Nessa linha de pensamento, o ministro Celso de Melo, por exemplo, que votou com a minoria, argumentou, que o principio da presunção de inocência é um velho principio, detestado por regimes autocráticos, pois, segundo a sua linha argumentativa, esses regimes temem a liberdade, conquanto todos saibamos que na maior democracia do mundo, os Estados Unidos, os condenados não precisam aguardar o esgotamento das vias recursais para iniciarem o cumprimento da pena.
Há, nitidamente, duas correntes assumindo posições díspares em torno da questão tão comentada nos últimos dias. De um lado, a grande maioria de magistrados, representantes do Ministério Público, Delegados e população em geral, rendendo homenagens à decisão, ao argumento de que o STF, com ela, fechou, definitivamente, a janela da impunidade; do outro, assumindo posição diametralmente oposta, estão os advogados e defensores, os quais, por sua quase totalidade, assumiram posição crítica e contestatória, argumentando que o STF, com a decisão, solapou o principio da presunção de inocência e favoreceu o erro judiciário.
Entretanto, ninguém disse o que vou dizer agora. Para a absoluta maioria dos condenados, nada, rigorosamente nada mudou com a decisão do Supremo. Explico. É que a quase totalidade de condenados no Brasil, egressos das classes menos favorecidas, têm, desde sempre, como ultima instância, os Tribunais de Justiça dos Estados.
É dizer: para essa grande, quase totalidade de condenados pelo sistema, que são os desvalidos e miseráveis, para os quais o Estado nega quase tudo, recursos ao STJ e STF é um luxo ao qual só excepcionalmente têm acesso, significante que a grita que se verifica decorre exatamente do fato de que, com a decisão revolucionária, o STF fecha as portas da impunidade para uma minoria, que sempre se valeu dos recursos para se furtar de cumprir as penas, cujos exemplos saltam aos olhos, sendo despiciendo fazer qualquer citação nominal dos réus poderosos que, com esses expedientes, deixaram de pagar pelos crimes cometidos, beneficiando-se, como é pratica comum, da prescrição, que decorre exatamente em face do tempo fluido entre o crime e a data do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Do exposto resulta a elementar constatação de que essa revolta, em face da decisão do Supremo, esse argumento de que, com a decisão, o Supremo, rasgou a CF, só tem sentido mesmo para uma minoria, que tem condições de, por meio dos grandes escritórios de advocacia, levar os processos às últimas consequências, utilizando-se das vias recursais, prolongando-os em demasia, introduzindo na população uma sensação nefasta de impunidade.
A grande verdade é que, para a absoluta maioria, para a quase totalidade da clientela do Direito Penal, essa decisão do Supremo não tem nenhuma consequência prática, não muda nada em sua vida. Os miseráveis, os destinatários da persecução penal, com efeito, continuarão a ter, como de fato têm até hoje – e quando têm – como única instância recursal os Tribunais de Justiça, onde os processos costumam ter fim, pois é nessa instância que se verifica, como regra, o trânsito em julgado das sentenças condenatórias.
A verdade é que, em face dos inúmeros recursos que podem ser manejados ao longo da persecução criminal, os que têm “bala na agulha” – como se diz popularmente -, os que têm condições de manejar tantos recursos quantos cabíveis, conseguem adiar – até a prescrição, muitas vezes – o cumprimento das penas infligidas, o que, convenhamos, favorece uma certa revolta, que estimula o apotegma de todos conhecidos, segundo o qual prisão no Brasil se destina apenas a pobres, pretos e prostitutas.
Estima-se que, com a decisão do Supremo, processos que duravam 20 anos poderão estar concluídos em 5 anos, o que, convenhamos, fará um bem enorme à sociedade, que, certamente, cerra fileiras à afirmação do ministro Luis Fux, segundo o qual “A sociedade não aceita mais a presunção de inocência de uma pessoa condenada que não para de recorrer”.
A verdade é que, com essa decisão, o Supremo coloca o Brasil na direção da eficácia judicial, o que o coloca nos mesmos níveis dos países desenvolvidos, cujo sistema não compactua com a chicana e com o retardo ad eternum do cumprimento das decisões condenatórias, que, todos sentimos, alimenta a sensação de impunidade que de seu lado, todos vemos, alimenta a criminalidade.

EDUARDA, O RÁBULA E AS NOSSAS CONTRADIÇÕES

Fernando Sabino, em O Encontro Marcado, narra que Eduardo, filho de Marciano e Estefânia, certo dia, estando no quintal de sua casa, pegou uma galinha, que ele chamava Eduarda, e a colocou debaixo de uma bacia, seguindo depois para a aula, deixando-a submetida a essa situação de verdadeira tortura; traquinices de menino, daquelas que todos nós um dia praticamos, sem medir as consequências, porém sem maldade.
Eduardo foi advertido pelo pai de que aquilo era maldade. O pai, para dar ênfase à advertência, indagou de Eduardo se ele gostaria que fizessem o mesmo com ele, lembrando, para concluir, que galinha, como o ser humano, também sofre, tentando, com advertência, sensibilizar Eduardo.
Num domingo qualquer, depois dessa advertência, surpreso, Eduardo encontrou Eduarda, a galinha, na mesa, pernas para o ar, assada, no ponto de ser degustada. Eduarda foi comida por Eduardo entre lágrimas.
Eduardo concluiu, assim, que, definitivamente, galinha sofre mesmo, e que, para culminar o sofrimento, ainda serviam de alimentação ao homem, daí ter decidido, revoltado e triste, nunca mais criar galinha.
Essa passagem marcante romance de Fernando Sabino, traduz, com letras fortes, as nossas contradições. Conquanto possa não ter sido essa a verdadeira intenção do ficcionista, posso inferir, sob essa perspectiva, que ele deixou patenteado o perigo que representa para credibilidade de uma pessoa dizer uma coisa e fazer outra.
Infelizmente, nas nossas relações, temos testemunhado, não raro, as pessoas pregarem uma coisa e fazerem outra diametralmente oposta, do que resulta, por evidente, que, com isso, fulminam a sua credibilidade, e comprometem as relações, pois que, afinal, ninguém suporta lidar com quem não tem palavra ou muda de opinião e de postura de acordo com as suas conveniências.
Cediço que, em face dessas práticas, muitas vezes, em nossas relações, não acreditamos no que algumas pessoas dizem. A gente tem sempre um pé atrás nas promessas que elas fazem, nas coisas que pregam, nos argumentos que adotam, convindo realçar que, muitas vezes, isso ocorre por nossa própria culpa, pois, por conveniência ou comodidade, nos aliamos aos que não têm nenhuma convicção no que fazem e dizem.
Anoto, nessas breves reflexões, que assumir uma linha de coerência entre as palavras e a ação não deve ser objetivo a ser perseguido apenas pela classe política, pelos homens públicos. Isso deve ser uma prática de vida de todos.
Não podemos nos furtar, com efeito, de agir, na vida privada e pública, em conformidade com o nosso discurso, pois nada mais triste para uma relação se ela é forjada na descrença, na falta de credibilidade de atores dessa mesma relação.
Para ilustrar, lembro que, assim que me formei, fui advogar no interior do Maranhão. Numa das cidades que escolhi para iniciar a minha vida profissional havia um provisionado (rábula) muito inteligente e perspicaz. Tinha fama de hábil e era muito respeitado nas comarcas circunvizinhas em face dessas qualidades.
Esse rábula fazia pregações contundentes acerca da ética, sobre a postura profissional do advogado; era um discurso encantador, conquanto não fosse essa, de rigor, a sua prática profissional, como vou narrar a seguir.
Pois bem. Com escritório instalado, iniciando a minha vida profissional, sem nenhuma experiência, com a cara e a coragem e algum conhecimento jurídico, fui procurado pela família de um lavrador que tinha sido preso “correicionalmente”, o que era comum à época.
Como vislumbrei que, em face da ilegalidade da prisão, eu não teria muito trabalho para restituir a liberdade do lavrador pela via do habeas corpus, cobrei, a título de honorários, um valor pequeno, quase irrisório, mas razoável, já que o caso era simples e exigiria muito pouco de mim.
Os parentes do paciente, curiosa, mas justificadamente, não acreditaram que por um valor tão irrisório eu conseguiria a restituição de sua liberdade. Saíram do meu gabinete, descrentes, e foram procurar o rábula. Esse, atilado e perspicaz, disse a eles que eu havia cobrado um valor insignificante porque, muito novo e sem experiência, não daria conta do recado, e que ele, sim, com a sua vasta experiência e conhecimento, sabia estar defronte de um caso que exigia muito conhecimento e experiência.
Com essa conversa, cobrou um valor muito superior pelo trabalho e conseguiu conquistar o cliente. E, como eu já supunha, com um simples pedido de informações do juiz, o delegado colocou em liberdade o paciente, pois que tinha ciência da ilegalidade da prisão.
A lição que se pode tirar dessa história é que, muitas vezes, há os que, descrente de tudo, pagam caro por essa descrença, estimulando, nesse panorama, que muitos adotem um discurso diferente de sua prática de vida, como ocorreu no episódio envolvendo a galinha de Eduardo.
Foi nesse ambiente que o rábula encontrou as portas abertas para fazer um discurso sedutor e em razão do qual conquistou o “meu” cliente, ainda que houvesse uma enorme distância entre a realidade e o que ele pregou para essa finalidade, a evidencia, com tintas fortes, as nossas contradições e a distância que muitos estabelecem entre o discurso e a prática de vida.

É PRECISO QUALIFICAR O DEBATE

O juiz, com qualquer outro profissional ,  deve  ter o senso crítico  aguçado, atilado. Mas só isso não basta. Deve, ademais,  estar preparado para o bom combate. Mas não deve fazê-lo apenas para satisfazer ao seu ego, sem conteúdo e sem preparo intelectual. O preparo intelectual, tenho dito, deve ser perseguido, obstinadamente, antes, durante e depois dos julgamentos, para qualificar o debate. Quem não se prepara intelectualmente para argumentar tende a usar os argumentos da força ao invés da força dos argumentos.

RELATIVIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

Não se pode, diante da criminalidade recorrente e da situação de quase descalabro que todos nós testemunhamos, deixar tudo como está, colocar em liberdade meliantes perigosos, a pretexto de que prisão não corrige ou de que  os acusados, no atual sistema penal, tendem a sair pior do que entraram, mesmo porque as pessoas assaltadas ou estupradas, por exemplo, jamais entenderiam a liberdade de um roubador ou de um estuprador, à invocação da presunção de inocência – a qual, como qualquer outro principio, deve, sim, em determinadas circunstâncias, ser relativizado .

É preciso, pois, ter em conta que, assim como o preso individualmente considerado, a sociedade também precisa de proteção, razão pela qual não comete nenhum desatino o magistrado que, diante do criminoso violento e/ou recalcitrante, opte por mantê-lo preso, ainda que provisoriamente, sem que, com isso, atente contra a Constituição Federal, pois, afinal, a mesma Constituição que destaca a presunção de inocência, estabelece que a sociedade tem direito à proteção.

PROTAGONISMO JUDICIAL

Em face da indiscutível e reconhecida má conduta de alguns togados, que não hesitam em exorbitar o poder para dele se servir ou para servir aos seus protegidos ou protegidos dos amigos influentes, até aonde podemos chegar com tanto poder, sem abespinhar a nossa própria imagem e sem desgastar a instituição, que é uma das poucas que ainda tem alguma credibilidade?
E nós, do Poder Judiciário, diante das questões que coloco para reflexão, a considerar que não somos um exército de querubins, estamos preparados para ser o alvo das atenções, para ser vidraças, para nos expor, para ser eficazmente fiscalizados e denunciados, a considerar que a mesma crise moral que se abateu sobre o Poder Legislativo pode vir a se abater sobre a instituição, pelas ações – e omissões – pouco republicanas de alguns dos seus membros?
O que serão capazes de revelar os holofotes quando eles se voltarem, com sofreguidão e com mais intensidade, para o Poder Judiciário, se viermos a assumir, definitivamente, o papel de protagonistas, como vem assumindo a nossa Suprema Corte?

PRESERVAÇÃO DA INTIMIDADE

imagesNas minhas relações pessoais – e profissionais, até -, me revelo por inteiro, me entrego, me mostro, às escâncaras, sem titubeio e sem disfarce, procurando preservar apenas e tão somente o campo restrito das minhas intimidades, sobre as quais mantenho um rígido, um rigoroso e necessário controle, não permitindo, sob qualquer pretexto, que sobre elas se faça qualquer incursão; incursão que só permito das pessoas da minha mais absoluta e restrita intimidade. É dizer: minha mulher e meus filhos.

Nesse diapasão, posso afirmar que todos que convivem comigo sabem quem sou e não correm o perigo de serem flagrados desprevenidos em face de alguma ação – ou reação – inusitada vinda de mim; nesse campo, sou absolutamente previsível, como, de resto, imagino ser previsível nas minhas atividades profissionais.

Uma atitude exemplar

arte_abstracta_abstrata_20_da_pintura_poster-rb7bc197672bc44f3ad5cc16cdafd044b_ya1_8byvr_324É estarrecedora a constatação da voracidade com que muitos homens públicos avançam , no exercício do poder, sobre a coisa pública para dela auferir vantagens.
Faço essa óbvia constatação impelido por um fato histórico em sentido antípoda, que vale a pena trazer à colação para reflexão.
Pois bem.
“Certa história revela quão grande era a probidade de Martim Francisco Andrada. Em determinada ocasião, seu irmão José Bonifácio, após receber o salário, foi ao teatro e acabou por ser roubado. Ao saber do ocorrido, D. Pedro teria mandado chamar Martim Francisco e pedido que pagasse novamente ao conselheiro, ao que o ministro das Finanças teria retrucado:
‘Não, majestade. O ano tem doze meses, e não treze para os protegidos.’
Martim Francisco resolveu o problema do irmão dividindo o próprio salário com ele.”
Atitudes dessas são raras nos dias presentes.

Excerto extraído do livro D. Pedro I, A História não contada, de Paulo Rezzutti.