COMPLACÊNCIA TÓXICA

Há pessoas que não têm boa percepção da realidade porque se contentam em apenas olhar o que está diante delas em vez de refletir profundamente sobre o que se apresenta diante dos seus olhos. Essa posição, puramente contemplativa em face da realidade, é que as conduzem a, por exemplo, votar em pessoas despudoradas, sem compromisso com as promessas que fazem, muitas das quais tendentes, pura e simplesmente, ao logro, à obtenção de vantagens de cunho pessoal, levando os incautos, sem a exata visão da realidade, a se contentarem apenas com percepção das sombras dessa mesma realidade. (Sócrates).

Conquanto me coloque na condição de uma pessoa comum, sei que, de certa forma, as minhas posições podem influenciar as pessoas. Por isso, não me limito, aliás, me recuso a ver apenas as sombras do que está em volta de mim.

Prefiro, ao reverso, encarar a realidade, olhá-la de frente, sem medo, sem receio, sem receio de expor as minhas inquietações, sem me importar com os que, numa visão reducionista da realidade, advertem, para estancar o pensamento, que juiz só fala nos autos, olvidando-se os críticos que juiz é componente da sociedade, que ele participa do seu acervo cultural e dos problemas que a envolvem, e que é um equívoco imaginar que exista juiz neutro, asséptico, acrítico ou inolente.

Esses críticos, é bem de ver-se, não se dão conta de que neutralidade, em relação aos magistrados, é uma inviabilidade antropológica (Zaffaroni). Nesse sentido, importa consignar, os que pensam que existem juízes neutros, apenas se enganam, pois, repito, antes de ser magistrado, somos todos partícipes das tendências sociais nas quais nos achamos envolvidos; pensar de forma diversa é imaginar que somos uma categoria de alienados.

Devo dizer, agora, em face do tema que escolhi para essas reflexões, que não tenho receio de, algumas vezes, parecer monocórdico ou monotemático por, aparentemente, insistir nos mesmo temas, pois, afinal, de rigor, múltiplos são os temas sobre os quais já expendi as minhas opiniões, as minhas inquietações, pois me incomoda, como disse acima, a posição meramente contemplativa, imberbe (sentido figurado), neutra, passiva, anódina e acomodada diante da realidade.

A verdade é que, reconheçamos, a realidade que testemunhamos nos últimos tempos tem nos impelido a, muitas vezes, tratar, até com certa frequência, dos mesmos temas, daí que não me recuso fazê-lo, afinal, como diz Caetano Veloso, está tudo fora de órbita. Aliás, no Brasil, desde o descobrimento, tudo parece estar mesmo fora de órbita. Por isso insisto em refletir sobre temas aparentemente reiterados, os quais, no entanto, têm a sua relevância em face do momento em que estamos vivendo.

Importa anotar nesse panorama – e aqui avanço, definitivamente, na direção do tema que elegi para meditar -, como tenho destacado em vários artigos e/ou crônicas, que tendemos a ser complacentes, quando nos convém, com os desvios de conduta, se eles, de alguma forma, nos dizem respeito.

Essa tem sido, infelizmente, uma realidade que se descortina sob os nossos olhos, olhos que assimilam – e aceitam com benevolência, como indisfarçável condescendência –  as condutas heterodoxas, dependendo do autor do desvio, dependendo dos nossos próprios interesses.

Penso, com efeito, que, para alguns críticos contumazes da conduta dos “outros”, a realidade tem  cores diferentes se os desvios de conduta são de pessoas pelas quais têm algum apreço, e/ou quando, de alguma forma, são beneficiários (os críticos) desses mesmos desvios. Nesse cenário, o que se constata é que os desvios de conduta são assimilados como práticas, digamos, normais, desde que não sejam as práticas dos nossos vizinhos; esses, sim, merecem ser censurados, quando não condenados, quando agem em desacordo com os valores morais que cultivamos ou deveríamos cultivar.

Tenho qualificado esse tipo de atitude de complacência tóxica. Os efeitos danosos dessa conduta compassiva são imensuráveis, desastrosas mesmo, para o conjunto da sociedade, porque, com ela, terminamos por sedimentar na sociedade o sentimento de que a vida é mesmo assim, que é preciso relativizar, também, as condutas morais, premissa a partir da qual terminamos por influenciar os caminhos das novas gerações.

A capacidade que temos de apontar nos outros os defeitos que não vemos – ou preferimos fingir não ver – nas pessoas que estão no nosso entorno e que deveriam ser desencorajadas de seguir na direção errada, é, além de tóxica, perversa, pois estimula a formação de uma geração de oportunistas, para a qual o céu é o limite.

Tenho dito, repetidas vezes, que não adiantA sentar numa mesa de bar, numa roda de amigos, num ambiente familiar e criticar a ação nefanda de políticos que tomaram de assalto o Estado brasileiro, para, no mesmo passo, fazer vista grossa em face das condutas desviantes e condenáveis daqueles que estão próximos de nós, ou pelos quais nutrimos simpatia, como fizeram, por exemplo, Artur Azevedo, Raul Pompeia e Jorge Amado, que foram defensores ardorosos do nefasto autocrata  Floriano Peixoto (Schmidt, Paulo, “Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes da República, Leya, 2016-02-26T03:00:00+00:00. ibooks).

A esperança que tenho é de que operações como a Lava-jato sirvam para diminuir o ímpeto dos que ascendem ao poder, em face é de uma outorga popular, para, nele, poder, promoverem toda sorte de falcatrua. Todavia, antes, precisamos fazer a nossa parte. Precisamos preparar as gerações futuras para se insurgirem contra essas práticas nefandas, sem discriminar os seus, condenando-os indistintamente.

Devemos, sim, nos unir numa cruzada, definitiva e moralizadora, contra os desvios de conduta, seja das pessoas que estão próximas de nós, seja dos que estão distantes dos nossos olhos ou pelos quais tenhamos alguma simpatia, desestimulando, na medida do possível, as gerações futuras de seguirem os passos dos que condescendem com os desvios de conduta.

É isso.

EM UM MINUTO TUDO PODE MUDAR

David Lurie é um professor universitário, de meia-idade, 52 anos, divorciado, que divide o seu tempo entre o desânimo das aulas que ministra – se dedica à fruição dos grandes livros e da música erudita, com emprego na Universidade do Cabo, África do Sul – e as satisfações momentâneas que lhe proporcionam uma prostituta chamada Soraya.

David, determinado dia, sem nenhum pudor, sem controle, sem medir as consequências, se envolve com uma aluna da universidade onde leciona, de cujo envolvimento, tornado público pela própria aluna, resulta a sua demissão, vindo, em decorrência, a perder os amigos e a reputação.

Sem rumo e sem perspectiva, decide passar uns dias na propriedade rural da filha, Lucy. Lá, para completar a mudança definitiva do curso da sua vida, testemunha uma tragédia: a casa dela é invadida por três assaltantes, os quais, ademais, a estupram.

Esses dois acontecimentos, esses fatos marcantes, interligados, que modificam, definitivamente, a forma de viver e de ver a vida de David Lurie, foram apanhados do romance Desonra, a obra mais festejada de J.M. Coetzee, de 1999, os quais são a minha inspiração para reflexões que pretendo desenvolver neste artigo.

O que traduzem esses dois fatos da vida e quais as lições que podemos deles apreender? Atrevo-me responder: que uma atitude impensada, uma ação descontrolada, pode, sim, num minuto, mudar a nossa vida. Esses fatos nos ensinam, ademais, que é preciso estar atentos às armadilhas que a vida nos apresenta, para as quais quase nunca estamos preparados.

A realidade, nada obstante, é que, em face das ciladas que a vida nos prepara, quase nunca estamos preparados, mas que, dependendo das circunstâncias, como o mínimo de prudência, com um pouco de sensatez, podem, sim, ser evitadas – as armadilhas – ou superadas – as ciladas.

No primeiro episódio, a responsabilidade, é cediço concluir, é unicamente do personagem do romance em comento, que, sem controle e sem pudor, se envolve com uma menor, aluna da Universidade na qual lecionava e de quem era professor, mas que poderia, sim, com o mínimo de controle, de prudência e discernimento, ter evitado.

Quanto ao segundo evento – assalto e estupro de sua filha -, é forçoso reconhecer que a ele não se pode imputar a responsabilidade pela ocorrência, e nem tinha mesmo condições de evitá-lo, dado que aqui registro apenas à guisa de ilustração para deixar consignado que nem tudo depende só da nossa vontade, da nossa prudência.

O certo é que algumas armadilhas e/ou ciladas da vida não podemos evitar, como no caso do assalto, seguido de estupro, que teve que testemunhar o professor David; outras, querendo, como um pouco de força de vontade, podemos, sim, evitar, conquanto não o façamos, muitas vezes, por absoluta falta de controle moral, por incapacidade que muitos  de nós temos  de acionar, quando necessário,  os freios morais que cada um deve ter para essas armadilhas/ciladas, como se deu com o protagonista do romance, que, podendo evitar, não o fez, deixando-se envolver com uma estudante menor de idade.

O que pretendo trazer à reflexão, definitivamente, é que não é razoável, não é racional, conquanto compreensível, não evitar o protagonismo de fatos que podem ser evitados, que só dependem de nós, sobre os quais temos – ou deveríamos ter – controle, como se deu no primeiro episódio – envolvimento com a estudante menor de idade -, do qual resultaram transtornos vários ao eminente professor universitário.

O certo é que, em face do que podemos evitar, é preciso sempre agir com muita prudência, acionar os mecanismos de controle, agir com discernimento, pensando e contando até um milhão de vezes, antes de tomar uma decisão que possa mudar o rumo da nossa vida, que venha em detrimento da nossa paz, que possa nos conduzir pelos caminhos que nos levam ao desespero, à inquietude, à decrepitude moral.

O personagem do romance, num ímpeto, sem refletir, envolve-se com a pessoa errada, paga o preço do erro, é expulso da universidade, joga na lama o seu nome, voltar a viver com a filha com quem tem uma relação conflituosa, e, ainda por cima, testemunha o seu estupro, acontecimento que, sói ocorrer, marcam definitivamente a sua vida, a sua história, a sua honra.

O que há de se ponderar, definitivamente, não custas redizer, que é mesmo o que importa para essas reflexões, é que há acontecimentos que só dependem de nós para evitá-los e que, por não ter a capacidade de evitá-los, teremos que arcar com as consequências da estupidez de não ser capaz de nos impor limites.

Nenhum de nós, é claro, tem o poder de prever o futuro. Não sabemos, portanto, que nos ocorrerá daqui a um minuto. Por isso, convém evitar as ações impensadas, porque essas dependem só de nós e delas podem resultar, até, a ruptura com a nossa própria história.

Assim agindo, com os pés no chão, com as peias em ação, refletindo sempre, ponderando a todo instante, podemos evitar que as consequências de uma ação impensada possam infernizar a nossa vida e das pessoas que estão em nosso entorno sobre as quais os efeitos das ações impensadas se irradiam, fazendo-as sofrer na mesma medida.

PENSE NAS COISAS PEQUENAS E SERAS FELIZ

Ouvi, muitas vezes, de pessoas que tinham alguma ascendência sobre mim, que, na vida, para vencer, era preciso pensar grande. Pensar grande na visão dessas pessoas, é almejar mais, sempre mais, pouco importando os meios que nos levem a alcançar esses objetivos. Em outras palavras: era preciso ser ambicioso, agir sempre com determinação para alcançar mais, muito mais, deixando claro, nesses ensinamentos, que, para ir além, o céu seria o limite.

Eu, felizmente, nunca assimilei essas lições. Eu sempre pensei miúdo, no sentido de que sempre fiz as coisas com os pés no chão, sempre me conformei com pouco. Nunca pretendi ir além do que fosse possível alcançar. Meu horizonte nunca foi muito distante, o que, claro, deve ser uma deformação da minha personalidade. Sempre almejei o básico para sobreviver com dignidade. A mim me bastava uma família e condições materiais para lhe oferecer o mínimo de conforto.

É claro que, por pensar assim, durante muito tempo, vendo a ascensão dos ambiciosos, dos que pensavam grande, passei algum tempo me penitenciando, com a sensação de ser um tolo, um estranho no mundo de competição, onde os mais espertos, os mais atilados, os mais ambiciosos e destemidos sempre levam vantagens.

Ficou em mim, nesse cenário, a sensação, como uma penitência, de que podia ter ido além e que, por ser covarde, fiquei sempre aquém. Nesse sentido, durante muito tempo me senti perseguido por esse sentimento. Hoje, no entanto, amadurecido, vejo, conformado, que, sem ambição, fui além do que podia imaginar, na certeza, agora, de que, sendo como sempre fui, sou mais feliz.

Aprendi, também, com a vida, a sublimar as coisas mais simples, a não me agastar excessivamente com os problemas do mundo, a fixar a minha visão nas coisas singelas, a curtir os momentos mais simples: ouvir música, ler um livro ou assistir a um filme, sem, no entanto, ser alienado.

Ao invés de me agastar com os problemas para cuja solução não posso sequer dar a minha contribuição, procuro curtir os momentos que reservo  à convivência familiar, ao meu e-books, ao meu tablet, a minha biblioteca, ao meu quarto de dormir, a um passeio, no final de tarde, num shopping, uma viagem com a família.

No mesmo passo, como disse acima, descuro, abstraio as coisas grandes, aquilo que não posso alcançar, o que não posso resolver, limitando-me a olhar em volta e pensar nas coisas simples da vida, buscando usufruir apenas do que sei que posso alcançar com o fruto do meu trabalho, para não ter que cair na tentação que tem levado muitos à desmoralização pública.

Essas reflexões nunca vêm por acaso. Elas quase sempre surgem de uma leitura que realizo e da qual sempre procuro tirar uma lição, além do prazer que decorre, naturalmente, de estar lendo.

A inspiração para esse artigo, especificamente, veio de um romance que acabo de ler, cuja passagem que me impeliu à reflexão menciono a seguir.

Theo, filho do protagonista Henry, no romance Sábado, de Iam McEwan – romancista inglês dos mais conhecidos de sua geração, autor, dentre outros, dos romances Serena, O Inocente, O Jardim de Cimento, Reparação e Solar -, em determinado momento de um diálogo com o protagonista, soltou um aforismo que foi ao encontro do que penso hoje. Disse, com efeito, que, quanto mais abrangente é o nosso modo de pensar, mais tudo parece escroto.

O pai dele, em face disso, pediu-lhe que explicasse melhor, e ele disse:

— Quando a gente olha para as coisas grandes, a situação política, o aquecimento global, a pobreza do mundo, tudo parece mesmo horrível, nada está melhorando, não há nada de bom para esperar. Mas então eu penso nas coisas pequenas, próximas… sabe como é, uma garota que acabei de conhecer, ou essa música que a gente vai tocar com o Chas, ou brincar na prancha de esquiar na neve, no mês que vem, e aí parece ótimo. Então, o meu lema será este: pense nas coisas pequenas (McEwan, Ian. “Sábado.” Companhia das Letras. eBooks). 

Claro que é impossível, no sentido pregado na obra ficcional, a gente se desligar, definitivamente, dos grandes problemas nacionais, tais como a corrupção que assolo e destrói a nossas esperanças, levando a reboque os nossos sonhos, do descredito das nossas instituições e dos nossos representantes, da violência que grassa, da malandragem dos que, no poder, o exercem sem controles morais, pois isso só seria possível se assumirmos a condição definitiva de alienados; e, se assim procedêssemos, seria como que entregar de vez o país aos espertalhões, que, é fácil constatar, só pensam em seus interesses.

Mas é possível, sim, desviar o pensamento dos grandes problemas nacionais e, até internacionais, para sublimar as coisas pequenas que são as que nos  trazem felicidade.  como, por exemplo, um almoço em família ou uma roda de bate-papo com as pessoas para as quais destinamos os nossos afetos.

COMO UM GATO, NÃO CEDO AO PRIMEIRO AFAGO

 

un-gato-bebe-433Tenho dito, sem surpresa, para os que me conhecem, que não sou do tipo que se entrega ao primeiro afago, ao primeiro aceno. Esse é um traço da minha personalidade que muitos não compreendem. Assim sendo, se deixo transparecer que me entreguei, pode ser – e na maioria das vezes é mesmo -, uma entrega apenas aparente. Nessas questões sou muito resistente. Se é certo ou errado não sei dizer. Sei, no entanto, que, se me entrego mesmo, sou levado ao paroxismo, quase sem meio-termo; sou intenso, tenaz, incondicionado. Antes as os ditames do coração sou quase sem limites, impetuoso, sem perder a racionalidade.

A vida – pessoal e profissional – me ensinou a ser assim, a ter cautelas nas minhas relações, por isso pareço – e sou mesmo – do tipo ermitão, ensimesmado, opção de vida que fui compelido a fazer, depois de mais de trinta anos lidando com criminosos dos mais variados matizes, em cuja lida deparei-me, muitas vezes, com acusados que supunha, num primeiro e precipitado olhar, ser culpados, mas que eram inocentes, conquanto do tipo repulsivos, aparentando ser o que não era, me levando, como levaria qualquer um, a equívocos que conduzem um juízo precipitado.

Lado outro, a justificar o meu ressabiamento, deparei-me com acusados que imaginei inocentes, do tipo de afago fácil, conquistador, envolvente, mas que, ao fim e ao cabo, era culpado, os quais, constatei depois, tratava-se mesmo de pessoas dissimuladas, forjadas para enganar, escamotear, fingir, ludibriar, dessas com as quais todos nos deparamos por aí, cuja maior “virtude” é a capacidade de passar as penas do semelhante.

Com esses tipos extremados e enganadores aprendi muito do que sei da vida. Aprendi, nesse mundo, que a condição de juiz nos ensina a confiar desconfiando, a crer descrendo, procurando, no entanto, apenas por prevenção, sem amarguras, pois o homem existe mesmo é para provocar em nós esse sentimento contraditório que só ele é capaz de proporcionar, conviver amistosamente, mas com a cautela necessária.

Por ter vivido intensamente os momentos marcantes que me foram proporcionados pelo meu trabalho e por ter, no mesmo passo, me defrontado com as personalidades mais díspares e mais surpreendentes, é que, como uma defesa, aprendi a agir com cautelas nas minhas relações, sem me deixar envolver pelo primeiro aceno, sem me deixar impressionar com o primeiro gesto, sem me precipitar na primeira avalição, para não julgar precipitadamente, afinal, como tenho reafirmado, do ser humano se pode esperar qualquer coisa.

Reluto, olho, tergiverso, vou adiante ou dou um passo à frente, para, só depois, sedimentar as minhas relações. Reflito, pois, com muita intensidade, para, só depois, me entregar; entrega que, muitas vezes, se verifico tibieza no interlocutor, nem se concretiza definitivamente; mas se ela se concretiza, rompidas todas as barreiras, explodidas todas as pontes, vou ao extremo, me entrego por inteiro.

Como um gato, portanto – diferente do cão -, tenho uma enorme dificuldade para me afeiçoar ao estranho. Aliás, como os gatos, nem consigo mesmo me afeiçoar aos estranhos, por isso me identifico muito com esse animal, por quem tenho paixão, adoração. E quem não os conhece imagina, equivocadamente, tratar-se de um animal frio e calculista, dado a traições, o que, definitivamente, é um equívoco; equívoco que só se dissipa depois que se convive com eles, que são dóceis, amáveis, carinhosos, brincalhões, amigos, mas tudo na medida certa, sem exageros, sem fingimentos, daí a minha identificação com o bichano.

Não sou mesmo, repito, do tipo simpático, entregue ao primeiro afago. Aliás, tenha até uma certa restrição ao primeiro fago; tenho sempre a perturbadora sensação de que ele pode ser meramente protocolar – e, na maioria das vezes, é mesmo -, por isso prefiro primeiro a cautela para só depois, consolidar a relação. Preservo, nas minhas relações, uma distância de prudência, distância e prudência que me permitem me proteger dos afagos oportunistas.

É muito difícil para mim me apresentar como a pessoa que não sou. Por isso nunca trago as pessoas enganadas sobre mim. Nesse sentido, que tem que se decepcionar comigo o faz logo no primeiro momento, no primeiro contato, pois não sei dissimular.

Às vezes, na ânsia de ser simpático, forço a barra, até tento ser o que não sou verdadeiramente, apenas para preservar a fidalguia, o relacionamento. Mas não vendo essa falsa percepção de mim mesmo por muito tempo. Logo me revelo por inteiro. Em mim, devo dizer, causa até uma certa irritação o afago desmedido, os elogios obsequiosos, a conivência oportunista, o excesso de mesura, os gestos que parecem excessivos.

Quiçá em face da equivocada ideia de que gato deve ser desprezado por ser um animal ensimesmado, Albert Camus narra no livro A peste o comportamento de um dos personagens que, todos os dias, depois do almoço, nas horas em que a cidade inteira cochilava no calor, um velhinho aparecia numa varanda do outro lado da rua, com os cabelos brancos e bem penteados, ereto e austero nas suas roupas de corte militar, chamava os gatos com um “bichano…bichano” ao mesmo tempo meigo e distante. Os gatos, prossegue a narrativa, levantavam os olhos pálidos de sono, sem se perturbarem. O outro rasgava pedacinhos de papel e os jogava na rua; os bichos, atraídos por essa chuva de borboletas brancas, avançavam para o meio da calçada, estendendo uma para hesitante para os últimos pedaços de papel. O velhinho malvado escarra, então, sobre os atos, com força e precisão. Se um dos escarros atingia o alvo, ele ria. Para infelicidade do velhinho ranzinza, quando mais ele precisos dos gatos, em face da enormidade de ratos que apareceram durante a epidemia, eles tinham desaparecido. Não havia gatos para os ratos e nem para servirem de alvo para os escarros do personagem. (Albert Camus, ebook)

A lição se pode tirar do episódio, se comparado com o jeito esquisito de algumas pessoas, cautelosas, arredias como um gato, é que não se deve julgá-las e nem escarrar sobre elas as suas iras, apenas porque elas não são como gostaríamos que fossem.

 

DE SACO CHEIO

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“[…]Essa história de que, por ser magistrados, somos ricos é uma pecha que incomoda, que enche o saco, que estigmatiza, tanto que, por pensar assim, parcela expressiva da sociedade, nos distingui – distinção que incomoda -, algumas vezes, com a venda de bens ou serviços por valores inflacionados, em face dessa equivocada impressão de que somos ricos e sem limites para gastar[…].

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O título que dei a esse artigo decerto que pode até não ser o mais apropriado, o mais condizente. Mas foi o que achei que podia traduzir com mais fidedignidade como me sinto em face do tema que escolhi para as minhas reflexões de hoje.

Devo dizer, inicialmente, que não é pecado ser rico. Juntar bens materiais não é, numa sociedade capitalista, nenhum pecado. Pecado mesmo – para não dizer crime – é amealhar bens materiais ilicitamente, desviando verbas públicas, fazendo negócios espúrios, recebendo propina, vendendo decisões, passando a perna nas pessoas.

Amealhar bens materiais com dignidade, com o fruto do trabalho, honestamente, sem achacar o semelhante, é algo que deve, até, ser enaltecido, afinal, para enriquecer, além de trabalhar, tem-se que ter habilidade e sorte para esse fim. Ninguém deve ser condenado, portanto, por ser rico, por viver bem, em face dos bens que conseguiu, pagando os seus impostos, vivendo, enfim, com dignidade.

Faço essa digressão apenas para dizer que, não sendo rico, vivendo apenas com os meus estipêndios, vivendo como vivem os que são bem remunerados, mas sem ostentação, se esnobismo, até modestamente, estou de saco cheio de tanto ouvir, por onde passo, nas compras que faço, nos ambientes que frequento, que desembargador é rico e que, por ser rico, não deveria ter restrições para comprar e nem deveria pechinchar.

Devo dizer, como um desabafo, que isso é uma falácia, que ninguém enriquece sendo juiz ou desembargador, pela elementar razão de que, se é verdade que somos bem remunerados, a considerar a nossa realidade, nenhum de nós, que não tenha herdado, que não tenha casado com consorte rico ou que não tenha ganhado na loteria, não pode, não tem como ser rico, se viver somente dos valores que percebe a guisa de remuneração.

Essa história de que, por ser magistrados, somos ricos é uma pecha que incomoda, que enche o saco, que estigmatiza, tanto que, por pensar assim, parcela expressiva da sociedade, nos distingui – distinção que incomoda -, algumas vezes, com a venda de bens ou serviços por valores inflacionados, em face dessa equivocada impressão de que somos ricos e sem limites para gastar.

Dia desses, conversando com os amigos a propósito das dificuldades financeiras pelas quais passa a expressiva maioria do povo brasileiro, ouvi deles que problema financeiro só quem não tem são os políticos e magistrados, e que estes com os salários em torno de 100 mil reais, não tinham do que se queixar, o que, convenhamos, é uma equivoco, uma maldade, uma grosseria que incomoda, pois nos coloca numa situação delicada diante de tantas dificuldades pelas quais o semelhante passa nos dias atuais.

Vou reafirmar, para que não se tenha mais dúvidas: nenhum juiz ou desembargador que viva apenas do salário pode ser rico, porque, simplesmente, ninguém que ganhe o salário que percebe um magistrado pode, de rigor, enriquecer, a menos que tenha a capacidade de multiplicar os pães ou que tenha obtido bens  por outro caminho que não seja os referentes aos seus ganhos mensais.

 

 

 

A TENDÊNCIA DO SER HUMANO É ACREDITAR

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“[..]Haverá quem diga: é só saber escolher. Mas quem diz isso desconhece a realidade das eleições. Não é assim que as coisas funcionam. De rigor, nos bolsões de miséria, que é aonde se decidem as eleições, o eleitor não tem independência, não vota por convicção, não escolhe, não elege; ele é levado pelas circunstâncias, vota de acordo com os comandos dos cabos eleitorais, que compram a sua consciência e transferem o seu voto a quem paga mais[…]”.

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“Ao longo do tempo, no correr das gerações, o mais eficaz pode ter sido isto: por via das dúvidas, acredite” (Trecho de: McEwan, Ian. “Sábado.” Companhia das Letras. eBooks).

É partir desse fragmento do romance do grande escritor britânico Ian McEwan que pretendo desenvolver o tema que elegi para esse artigo, como o farei a seguir.

Dizem que a tendência do ser humano é acreditar. E é mesmo! Sempre foi assim. Tem sido assim, e assim o será. É preciso acreditar sempre. Difícil viver ser acreditar. Tendemos, por isso mesmo, nos conduzir a partir da nossa crença até aonde é possível. Só depois de frustradas as nossas expectativas, é que tendemos desacreditar. Mas até chegar lá já percorremos um longo caminho, muitas foram as frustrações e os desalentos que deixamos para trás.

O certo mesmo é que é preciso crer, é precisar ter fé. Nessa perspectiva, é curial convir que, no mundo em que vivemos, só mesmo crendo, só mesmo com muita fé – e muita resignação – a gente consegue viver um pouco melhor.

Nesse panorama, importa assinalar, somos presas fáceis dos espertalhões, espertalhões que estão por aí, em todos os lugares, tirando proveito das nossas crenças, das nossas fragilidades, da nossa capacidade ilimitada de acreditar.

Mas, ainda assim, mesmo diante de tantos dissabores, de tanta desilusão, de tantas mentiras, de tanto engodo, sobretudo protagonizados por aqueles para os quais conferimos uma outorga para nos representar, é preciso acreditar, perseverar na crença, ainda que nos frustremos, a todo instante, em face da ação dos vendedores de ilusão, os mesmos que roubam os nossos sonhos e sobre os quais já falei em outras oportunidades.

Ainda que reconheça que é preciso acreditar, não me acanho de indagar, paradoxalmente, como acreditar em face de tantos desvios de conduta, exatamente daqueles que conferimos poderes para nos representar e que deveriam ter uma conduta irrepreensível, mas que, diferente do que se espera e crer, têm as suas vistas, as suas ações voltadas apenas para os próprios interesses?

Contraditoriamente, insisto em indagar, como continuar acreditando se vemos diante dos nossos olhos uma gravíssima deformação moral dos nossos representantes, os quais deveriam, ao reverso, pautar as suas ações pela retidão de caráter, pela postura moral libada e retilínea, mas que agem sem nenhum controle moral, a começar pelas promessas mentirosas e despudoradas s com as quais se elegem, para, uma vez no poder,  cuidarem apenas dos seus próprios interesses?

Como continuar acreditando num pais no qual o juiz que revoluciona a nossa história é chamado, por manifestantes irresponsáveis, de canalha, exatamente por ter tido a coragem, que nenhum outro teve na nossa história, de punir os desvios de conduta dos agentes públicos e empresários os quais enriqueceram subtraindo do povo o dinheiro que deveria ter sido destinado para fins humanitários?

Como acreditar tendo de conviver com os que, não sendo canalhas, não têm nenhuma capacidade de discernimento, mas que, apaixonadamente, desfraldam a bandeira da iniquidade na tentativa de descreditar aquele que, não sendo herói, promove uma verdadeira revolução nos costumes políticos do nosso país, punindo exemplarmente muitos que, ao longo da nossa história, sempre passaram ao largo das instâncias persecutórias, sob o escudo protetor do poder que ostentam?

Como persistir acreditando se, a cada dez notícias veiculadas sobre falcatruas, em nove delas estão envolvidos os nossos representantes?

Como acreditar se, por mais que sejam desonestos os nossos representantes, são eles que continuam dando as cartas, são eles que têm prestigio, são eles que legislam, são eles que comandam os nossos destinos, são eles que mantém os chefes dos executivos reféns de suas vontades?

Haverá quem diga: é só saber escolher. Mas quem diz isso desconhece a realidade das eleições. Não é assim que as coisas funcionam. De rigor, nos bolsões de miséria, que é aonde se decidem as eleições, o eleitor não tem independência, não vota por convicção, não escolhe, não elege; ele é levado pelas circunstâncias, vota de acordo com os comandos dos cabos eleitorais, que compram a sua consciência e transferem o seu voto a quem paga mais.

Em face desse quadro fica difícil continuar acreditando. Desde a minha mais tenra idade que ouço dizer que as coisas estão mudando, sem nunca mudarem. E quando aparece um magistrado corajoso para mudar o quadro, as paixões políticas e o sectarismo trabalham para desacreditá-lo. E parte do povo, como gado, vai junto. Passa a crer no que não devia acreditar, pela necessidade que todos temos de continuar acreditando, com a esperança de que um dia as coisas possa mudar, definitivamente, pois, afinal, como diz Ernest Hemingway, em o Velho e o Mar,  é pecado não ter esperança.

Julgamentos sumários

A seguir, excertos do artigo a ser veiculado na imprensa local, a propósito dos julgamentos sumários.

“[…] Desprezar as provas, fazer vista grossa em face do erro judiciário, para mim, é o mesmo que pretender dar aparência de legalidade aos linchamentos que temos testemunhado, pois, numa ou noutra situação, o que se está, de rigor, é negando o Estado de Direito, decidindo à margem da lei, a pretexto de fazer justiça, flertando, todavia, com a barbárie.

O nosso comando, o nosso rumo, a nossa direção e no nosso prumo são ditados pelas normas existentes no ordenamento jurídico, daí por que nos é defeso fazer concessões não contempladas no direito positivo, a pretexto de fazer justiça, como fazem os que optam pela autotutela, inviabilizando, no mesmo passo, que ao réu seja oportunizado exercício de sua defesa, na amplitude contemplada pela nossa Constituição[…].

 

Letra morta

O art. 387, IV[1], do CPP, alterado pela Lei nº 11.719/08, pretendeu imprimir celeridade à pretensão indenizatória às vítimas de crimes, dotando a sentença penal condenatória transitada em julgado dos atributos de título executivo judicial (liquidez, certeza e exigibilidade), possibilitando o ingresso direto na via executiva.

Inobstante salutar a alteração legislativa, os juízes criminais, lamentavelmente, não estão conduzindo a persecução criminal de forma adequada quanto a essa questão, porque o valor indenizatório não é submetido ao crivo do contraditório e ampla defesa ao longo da instrução.