Não existe nenhum escritor pelo qual eu tenha me apaixonado como leitor. Não tenho, portanto, nenhuma preferência que me leve cegamente a ler essa ou aquela obra. Eu simplesmente leio de tudo um pouco. Ocorre às vezes de um autor que me tenha impressionado em um romance não ser capaz de prender a minha atenção em outros, acontecendo o mesmo em sentido oposto. Mas isso não significa nenhuma contradição ou falta de convicção, pois, gostar ou não gostar é uma decorrência natural da nossa liberdade de discernimento e de escolha.
Não é, pois, definitivamente, o autor que me seduz. O que me seduz e fascina numa obra literária é a construção do personagem, a fluidez narrativa e a armação da trama, que seja capaz de envolver, de nos fazer esquecer os problemas da vida, para viver os do personagem.
Essas reflexões decorreram da opinião de Michel Houellebecq, segundo o qual amamos um livro porque amamos o seu autor. Penso que o autor, pessoa física, é o que menos importa. Livros a gente os lê e desenvolve o prazer da leitura à proporção que nos identificamos com algum personagem ou com a essência da trama, além, claro, da fluidez da narrativa, pouco importando quem seja efetivamente o seu autor, isto é, independentemente do amor ou do ódio que tenhamos pelo autor da obra.
Com Germinal, por exemplo, uma das passagens mais férteis e reflexivas da obra condiz com as descrição do espírito de companheirismo e de solidariedade dos trabalhadores espoliados nas minas de carvão, sendo de relevo destacar o momento da narrativa que nos dá conta da união deles para tentar salvar a vida dos companheiros soterrados, apesar de todas as intempéries, da fome que sentiam, do cansaço que os fazia delirar e da exploração que os tinha vitimado durante tantos anos. Esse é, sim, para mim, o momento mais sublime, mais marcante da obra de Zola, que, sei, teve outra conotação como essência. Para amar essa obra prima, pouco importa saber quais as posições políticas do seu autor, por exemplo, nem se ele merece ou não ser amado por quem vier a ler a sua obra.
A seguir, à guisa de ilustração, excertos da monumental obra, na parte que importa para reflexão.“… Mas o salvamento dos mineiros soterrados apaixonava ainda mais. Négrel estava encarregado de tentar um supremo esforço, e braços era o que não faltava, todos os mineiros vinham oferecer-se, num impulso de fraternidade. Esqueciam a greve, não se preocupavam com o pagamento, podiam não lhes dar nada, só queriam enfrentar o perigo e tentar salvar os companheiros que estavam morrendo…”“… Muitos, doentes de horror após o acidente, agitados por espasmos nervosos, inundados de suores frios, perseguidos por pesadelos, levantavam-se apesar de tudo, mostravam-se os mais decididos a baterem-se contra a terra, como se tivessem uma desforra a tirar…”. (Emile Zola, Germinal)
Do romance Uma Certa Paz, de Amós Os, ficou em mim, para reflexão, a busca quase esquizofrênica de solidão, de isolamento e de rompimento com o status quo do personagem Ionatan, numa identificação quase umbilical, como se compartilhássemos as mesmas idiossincrasias, os mesmos problemas, em face de me sentir instado a, depois de ter chegado ao ápice da minha carreira e de não ter nenhuma vaidade com a minha biografia, a mudar de direção, inclusive com uma aposentadoria precoce.
A seguir, fragmentos do romance, a propósito:“…Era preciso chegar a um ambiente diferente em tudo, talvez a uma cidade grande de verdade, que lhe fosse estranha, que tivesse um rio com pontes, que tivesse torres, túneis, chafarizes esculpidos como monstros de pedras a esguichar, uns sobre os outros, jatos d’água, e essa água todas as noites iluminada das profundezas por luzes elétricas, e às vezes lá estaria uma mulher desconhecida e sozinha, o rosto voltado pata a luz da água, de costas… O tempo todo, em toda a minha vida, eu abro mão e abro mão e já quando eu era pequeno me ensinaram que a primeira coisa é abrir mão, e na turma abrir mão, e nas brincadeiras abrir mão, e ter consideração, e dar um passo ao encontro de, e no Exercito e no trabalho e na minha casa e no campo de esportes ser sempre generoso, ser legal e generoso e não criar caso e não perturbar e não insistir mas sim prestar atenção, levar em consideração dar ao próximo dar ao coletivo dar ajuda se atrelar ao objetivo sem ser mesquinho sem contabilizar e o que me resultou de tudo isso resultou que dizem de mim Ionatan é bem legal um rapaz sério com quem se pode falar pode procurá-lo você vai se arranjar como ele ele sabe das coisas um rapaz dedicado um homem simpático mas agora chega. Basta. Acabaram-se as concessões. A partir de agora começa uma nova história…” ( Um Certa Paz, Amós Oz)
Basta refletir sobre as duas situações destacadas nos dois romances para que se avalie como o ser humano, o mesmo homem, o mesmo filho de Deus, diante de circunstâncias similares, pode adotar posições diametralmente opostas, a desnudar as nossas contradições. Enquanto os personagens de Germinal entregam a vida para salvar os amigos soterrados, pouco se importando com os seus problemas pessoais, o solitário e sombrio Ionatan de Uma Certa Paz chega a um momento da vida em que simplesmente dá um basta à zona de conforto e às regras de convivência que até então lhes tinham sido impostas, repudiando tudo que lhe foi ministrado, inclusive o sentimento de solidariedade.
O leitor pode, sim, diante das duas obras, escritas em épocas em tudo diferentes, com personalidades centrais de perfis tão díspares, se identificar com uma ou com outra, mas, ainda que não o faça, certamente poderá fazer boas ponderações sobre aquele que, dentre todos os animais da terra, é o mais complexo e surpreendente, o homem. Daí o fascínio da literatura.
Todavia, para o bem e para o mal, difícil é não se sentir um pouco personagem de cada um desses romances, sempre à luz das suas perspectivas de vida. Eu, curiosamente, para reafirmar as minhas conhecidas imperfeições, tanto me identifico com o sentimento solidário dos personagens de Zola, quanto com inquietação do personagem de Amós Oz, pois, em determinados momentos, penso, sim, em romper com o status quo, e iniciar uma nova jornada, mas sou contido pela sensatez e pela condição de sexagenário, que já não me permite iniciar uma aventura, ao mesmo tempo em que deixo fluir o sentimento de solidariedade que viceja em mim, sem que vislumbre nisso nenhuma contradição inconciliável.
Como se vê, a literatura que diverte é a mesma que faz refletir sobre a vida. Por isso, e muito mais, é que ela é fascinante. Contudo, reafirmo, tem que ser literatura reflexiva, não a mecânica, automática, sem alma, oportunista, escapista, que visa ao lucro, que exista apenas em face de uma volúpia arrecadadora, dramas construídos em laboratórios e não urdidos na mente reflexiva e criadora do homem.