AFINAL, SOMOS TODOS FILHOS DE DEUS?

Nos dias presentes, quando testemunhamos alguns pecadores se assumindo como alvo das preferências divinas, convém indagar: somos todos filhos de Deus?

Sei que esse pode ser um tema controvertido se a essas reflexões for dado o alcance que ela não deve ter. E, por antever eventuais incompreensões é que me antecipo, dizendo que as minhas colocações não devem levar as pessoas a pensá-las numa dimensão maior do que o sentimento que me impulsiona a fazê-las, que é tão somente de instigar.

Para tentar responder à indagação do título desse artigo convém lembrar, à guisa de ilustração, de uma reunião do atual prefeito do Rio de Janeiro, com 200 pastores evangélicos, há meses ocorrida, na qual ele os orientou a usarem das estruturas do município para obtenção de vantagens para os fiéis – como exames e cirurgias prioritárias, dentre outras – e para as igrejas – isenção de impostos, por exemplo -, afinal, disse o bispo, temos que ser gratos a Deus por “ter nos colocado na Prefeitura”, e poder dar vantagens e prioridades ao povo evangélico.

Assim agindo, Sua Excelência deu a entender que teria feito um pacto com Deus, que, no seu entender, seria parceiro de ações que privilegiem uns em face de outros; como se ele tivesse sido eleito para governar em favor de uma minoria composta pelos escolhidos do Salvador, em detrimento da grande maioria.

Mesmo correndo o risco de ser mal-entendido, ainda assim, fruto da minha conhecida inquietação, resolvi expor algumas das minhas impressões a propósito da, digamos, paternidade celestial, instigado a fazê-lo, não só em razão das ações pouco republicanas de Sua Excelência o prefeito do Rio de Janeiro, mas, também, em face da postura de outros tantos viventes que, como o alcaide mencionado, se julgam escolhidos por Deus, ao tempo em que parecem negar a nós outros essa condição, conquanto, tal qual os outros cristãos que habitam a terra, também sejam igualmente pecadores.

A verdade é que, diante de alguns fatos e da postura de algumas pessoas que se julgam superiores espiritualmente, e, por isso, ungidas pelo Senhor – caso do prefeito do Rio de Janeiro e de outros viventes -, fico com a sensação de que há, sim, quem creia, por arrogância ou falta de descortino, que não somos todos filhos de Deus; que Deus, na visão dessas pretensiosas pessoas, já fez as suas escolhas, em detrimento dos demais mortais que habitam o universo. É como se, para ser filho de Deus, dependêssemos, apenas e tão somente, das escolhas arbitrárias do Pai, sem que fosse necessário que o escolhido fizesse por merecer a honraria, o privilégio da escolha.

Exemplos dessa natureza ocorrem nos campos de futebol. O jogador marca um gol e levanta as mãos para o céu em agradecimento a Deus, como se, dos 22 que estão em campo, apenas ele tivesse o privilégio de ser contemplado com a intromissão divina; é como se Deus estivesse com os olhos voltados para ele, e tão somente para ele, porque só ele, como filho do Homem, faz por merecer a dádiva, ainda que, como os demais jogadores, seja apenas mais um pecador.

Voltando ao Rio de Janeiro, lembro que o Prefeito, na famigerada reunião com vários representantes de igrejas evangélicas, conclamou os pares a aproveitarem o fato de Deus tê-lo colocado à frente da Prefeitura da Cidade Maravilhosa, para que fossem atendidos, prioritariamente, os fiéis das suas igrejas, pois, segundo ele, essa era uma oportunidade que Deus havia dado para que eles pudessem ser atendidos prioritariamente, bastando, para implementação das prioridades divinas, que falassem com Márcia, também escolhida por Deus, dentre tantos pecadores, cuja missão na terra seria favorecer as pessoas que eles entendiam ser filhas de Deus.

É dizer, traduzindo o episódio, os demais cidadãos que estão aguardando atendimento numa longa fila de espera – há meses, há anos -, mas que, por infelicidade, não tenham como contatar com Márcia, filha de Deus, não deveriam ser atendidos pelo sistema de saúde do município, pela singela razão de que, eles, diferentes dos fiéis das igrejas evangélicas, não são filhos de Deus, motivo pelo qual não lhes é dado o direito de furar a fila, de serem atendidos prioritariamente.

Na compreensão do Prefeito, Deus o colocou à frente da prefeitura exatamente para favorecer os filhos de Deus e, no mesmo passo, discriminar os que, na sua compreensão e segundo as bênçãos de Márcia, não têm o privilégio de fazer parte desse seleto grupo de ungidos.

O que Sua Excelência o prefeito talvez não saiba – e Deus, embora o tenha ungido, não lhe deu essa capacidade de discernimento – é que, segundo vaticinou Frei Beto, em artigo publicado em o Globo, “religiões que colocam seus interesses acima dos direitos da população não entendem a proposta do Evangelho” ( in o Uso do Estado pela Igreja).

É isso.