NEURAS

“[…]Fatos como esse que acabo de narrar apenas reafirmam o óbvio, ou seja, que somos todos diferentes, que cada um de nós tem uma percepção diferente, singular, diante das coisas do mundo, motivo pelo qual é muito difícil julgar as atitudes do semelhante, o que não nos impede de continuar julgando o próximo, muitas vezes impiedosamente.
Fatos dessa natureza reafirmam, ademais, ser embalde qualquer tentativa de levar alguém a pensar ou agir como pensamos ou agimos. Cada qual, portanto, no seu cada qual. Cada um é cada um, e suas neuras. Nisso ninguém pode interferir, pois o que me atormenta pode até ser algo prazeroso para outrem{…]”

 

Rica Reinisch, da antiga República Democrática Alemã, a Alemanha comunista, foi uma atleta de ponta, que ganhou uma medalha de ouro, nos 100 metros nado costas na Olimpíada de Moscou, em 1980. Ganhou, depois, quatro medalhas de ouro nos 200 metros nado costa e bateu, duas vezes, o próprio recorde mundial em provas de revezamento.
Como se vê, a atleta tinha tudo para ser feliz, vaidosa, orgulhosa de suas conquistas. Qualquer pessoa, no seu lugar, sentir-se-ia, até, realizada. Contudo, não é isso que se vê, no entanto. Vou explicar.
Em face dos esteróides usados nos treinamentos durante a puberdade, pouco tempo depois ela foi hospitalizada com inflamação crônica nos ovários, vindo a se aposentar aos 16 anos, com o risco de ficar estéril.
Em 1994, foi uma das primeiras atletas a prestar depoimento no processo instaurado para apurar a política de doping da antiga RDA. Mas a neura da atleta, diferente do que se pode imaginar, não foi a possibilidade de ficar estéril. O que a deixa sem chão, o que a torna infeliz, segundo relatou, é que jamais saberá se poderia ter sido a nadadora excepcional que foi se não tivesse se submetido à maquina de fabricar campeões da Alemanha comunista.
Narro esse fato, buscado aleatoriamente na mente e confirmado depois de alguma pesquisa, apenas para dizer que cada um de nós tem as suas próprias neuras, muitas das quais, de rigor, parecem até ilógicas para quem não as tem, daí por que, algumas vezes, não compreendemos como alguém que, tendo tudo para ser feliz, feliz não é, em face de um detalhe, de uma obsessão, algo que, de rigor, não causaria em outras pessoas a menor preocupação, o menor desconforto, a corroborar o quão complexo e complicado é o ser humano.
Fatos como esse que acabo de narrar apenas reafirmam o óbvio, ou seja, que somos todos diferentes, que cada um de nós tem uma percepção diferente, singular, diante das coisas do mundo, motivo pelo qual é muito difícil julgar as atitudes do semelhante, o que não nos impede de continuar julgando o próximo, muitas vezes impiedosamente.
Fatos dessa natureza reafirmam, ademais, ser embalde qualquer tentativa de levar alguém a pensar ou agir como pensamos ou agimos. Cada qual, portanto, no seu cada qual. Cada um é cada um, e suas neuras. Nisso ninguém pode interferir, pois o que me atormenta pode até ser algo prazeroso para outrem.
O mundo, reafirmo o óbvio, é habitado por uma variedade infinita de personalidades, cada uma delas administrando as suas neuras, à sua maneira. Por isso, o que me apraz pode ser o que o vizinho abomine. Daí a razão pela qual deixamos de nos identificar com umas pessoas para nos derretermos de simpatia por outras.
Em face das nossas neuras, pessoas que abominamos são, muitas vezes, adoradas por outras, dado que nos causa, sem espanto, até uma certa inquietação, própria de quem não conhece o ser humano, se é que é possível conhecer essa máquina tão complexa.
Eu, como qualquer ser humano, também tenho as minhas neuras, algumas das quais creio que jamais incomodariam qualquer pessoa minimamente sã; mas a mim me incomodam, sem que eu permita – tento, pelo menos – que saiam da minha esfera individual para incomodar as pessoas que estão no meu entorno.
Mas as minhas neuras, antecipo em dizer, não me fazem um ser de difícil convivência, como podem atestar os que me conhecem como efetivamente sou. Procuro, sim, não me infelicitar – e nem infelicitar as outras pessoas – em face delas, pois com elas não travo nenhuma batalha; simplesmente não me permito dar a elas liberdade de ação para me dominarem.
Para administrar as minhas neuras, procuro não ir além e nem ficar aquém. Procuro, sempre, um ponto de equilíbrio, conquanto admita não ser algo muito fácil de alcançar. Nesse afã, não antecipo derrotas e nem vibro com a vitória que ainda não veio.
Quando cuidamos de neuras, a verdade é que somos todos incompreendidos. O que me irrita, o que me causa estupor e, até, revolta – sem me infelicitar, repito -, pode não ser capaz de irritar o mais irritadiço dos homens, a reafirmar, também por isso, as nossas diferenças, a reafirmar que cada um de nós é único.
É isso.

A reação em face do retrocesso

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“[…]Ante a certeza do retrocesso que virá com a mudança de entendimento do STF o único antídoto contra a impunidade seria, a meu sentir, fruto da experiência que acumulei em mais de 30 anos lidando com essas questões, a determinação dos juízes brasileiros de priorizarem os feitos criminais, numa verdadeira cruzada tenaz/cívica/moralizadora, sabido que, historicamente, referidos processos têm sido tratados com certo desprezo, como se de segunda categoria fossem, e para os quais, por isso mesmo, não se têm dado a devida atenção, de cuja omissão tem resultado, fácil constatar, a danosa sensação de impunidade que a todos nós nos incomoda, pois não são poucos os que são fulminados pela prescrição, cuja extinção da punibilidade tem ocorrido ainda em segunda instância[…]”

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Porque o tema está na ordem do dia, convém recordar alguns detalhes da decisão histórica e revolucionária do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito da prisão em segunda instância, para, ao final, expor a minha sugestão para tentar superar o revés que decorrerá da iminente mudança de orientação da nossa Suprema Corte.Pois bem. O STF entendeu, no mês de outubro de 2016, que o artigo 283, do Código de Processo Penal, não impede o início da execução da pena após uma condenação em segunda instância e, nesse sentido, indeferiu liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44.
Todos haverão de lembrar que o Partido Nacional Ecológico (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autores das ações, pretendiam a concessão da medida cautelar para suspender a execução antecipada da pena de todos os acórdãos prolatados em segunda instância. Alegaram que o julgamento do Habeas Corpus (HC) 126292, em fevereiro deste ano, no qual o STF entendeu possível a execução provisória da pena, vinha gerando grande controvérsia jurisprudencial acerca do princípio constitucional da presunção de inocência, porque, mesmo sem força vinculante, tribunais de todo o país passaram a adotar idêntico posicionamento, produzindo uma série de decisões que, deliberadamente, ignoram o disposto no artigo 283 do CPP.
O caso começou a ser analisado pelo Plenário em 1º de setembro, quando o relator das duas ações, ministro Marco Aurélio, votou no sentido da constitucionalidade do artigo 283, do CPP, concedendo a cautelar pleiteada.
Contudo, com a retomada do julgamento, prevaleceu o entendimento de que a norma em comento não veda o início do cumprimento da pena, após esgotadas as instâncias ordinárias. O Ministro Edson Fachin inaugurou a divergência, dando ao artigo 283 do CPP interpretação conforme a Constituição, afastando aquela segundo a qual a norma impediria o início da execução da pena quando não esgotadas as instâncias ordinárias. Ele defendeu que o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso a cortes superiores.
Fachin destacou que a Constituição não tem a finalidade de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão com a qual o réu não se conforma e considera injusta. Para ele, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar ao STF e ao STJ exercer seus papéis de uniformizadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional. Retomar o entendimento anterior ao julgamento do HC 126292, pontuou o ministro, não é a solução adequada e não se coaduna com as competências atribuídas pela Constituição às cortes superiores. Por fim, afastou o argumento de irretroatividade do entendimento jurisprudencial prejudicial ao réu, entendendo que tais regras se aplicam apenas às leis penais, mas não à jurisprudência.
O ministro Luis Roberto Barroso, de seu lado, argumentou, a propósito, seguindo a divergência inaugurada pelo Ministro Luis Edson Fachin, ser legítima a execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos por ele tutelados, aduzindo que, no seu entendimento, a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais que têm a mesma estatura. “A Constituição Federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do estado”, afirmou. “A presunção da inocência é ponderada e ponderável em outros valores, como a efetividade do sistema penal, instrumento que protege a vida das pessoas para que não sejam mortas, a integridade das pessoas para que não sejam agredidas, seu patrimônio para que não sejam roubadas” (Fonte: sitio do STF).
Feitos os registros sobre a questão jurídica em comento, devo admitir agora, tomado de desalento, que tenho a exata percepção de que essa decisão será revista proximamente, o que, admitamos, será um grande retrocesso no combate à criminalidade, logo agora que temos assistido a uma quebra auspiciosa de paradigma que decorre das ações implacáveis da Lava-jato, voltadas precipuamente a uma elite encastelada no Poder e que, de rigor, salvo uma ou outra exceção, sempre esteve imune às ações persecutórias.
Os que cerram fileiras pela mudança de entendimento do STF argumentam – para mim sem razão, mas essa é outra vertente que não será analisada aqui – que a interpretação da maioria fere a Constituição brasileira. Eu, cá do meu lado, tenha uma compreensão um pouco diferente e mais realista, e, nesse sentido, vou direto ao ponto: o que inspira os argumentos dos que buscam, incessante e freneticamente, a revisão da já famigerada prisão em segunda instância não é o respeito à Constituição, porque, afinal, não há desrespeito algum, pelo menos desde o meu ponto de observação. O que se busca, em verdade, é impunidade, pura e simplesmente, sabido que da espera do esgotamento de todas as instâncias resultará, com muita probabilidade, na inviabilidade da persecução pela certeza da prescrição, na maioria dos casos, do que resulta a constatação elementar que o que se almeja mesmo é a frustração das ações persecutórias deflagradas contra uma casta brasileira que se acostumou a viver à margem da lei.
Ante a certeza do retrocesso que virá com a mudança de entendimento do STF o único antídoto contra a impunidade seria, a meu sentir, fruto da experiência que acumulei em mais de 30 anos lidando com essas questões, a determinação dos juízes brasileiros de priorizarem os feitos criminais, numa verdadeira cruzada tenaz/cívica/moralizadora, sabido que, historicamente, referidos processos têm sido tratados com certo desprezo, como se de segunda categoria fossem, e para os quais, por isso mesmo, não se têm dado a devida atenção, de cuja omissão tem resultado, fácil constatar, a danosa sensação de impunidade que a todos nós nos incomoda, pois não são poucos os que são fulminados pela prescrição, cuja extinção da punibilidade tem ocorrido ainda em segunda instância.
É razoável compreender que só a decisão de priorizar os feitos criminais não resolverá, como num passe de mágica, o problema da impunidade, que, não tenho dúvida, será potencializado com a revisão do Supremo em face do cumprimento de pena após o esgotamento da segunda instância. Tenho certeza, todavia, que será um grande passo que daremos para evitar a impunidade, pois nada é mais estimulante para quem vive à margem da lei que a certeza de passar ao largo de uma persecução criminal.
É isso.