A CRIAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO

Por prudência e cautela, desde muito cedo senti um certo acanhamento quanto à possibilidade, de nós, juízes, assumirmos o protagonismo no enfrentamento de certas questões sensíveis (criação do direito), em face, sobretudo, da minha formação jurídico-cultural (tradição positivista). Todavia, em pouco tempo, sem as amarras de uma prudência exagerada, compreendi que, no exame de determinadas questões, não se pode descurar da falta de sensibilidade e da omissão do legislador ordinário, não restando ao julgador, nesse cenário, muitas vezes, outra alternativa que não a de assumir um certo poder criador, sobretudo em face da estrutura normativo material da Constituição de 1988, impregnada, como sabemos, de princípios e regras de grande abertura semântica, de forma a permitir ao intérprete um singular espaço de conformação.

Cappelletti ensina: “Nos países de tradição positivista, a doutrina, durante muito tempo, resistiu à ideia de criação do Direito pelo juiz, cuja atividade estava confinada à vontade clara da lei. Todavia, com a complexidade das relações na sociedade moderna e a multiplicidade das demandas judiciais, a própria vontade da lei não mais se mostrava clara. Ao contrário, vaga e ambígua, a lei passa a suscitar variadas interpretações” (Juízes Legisladores? p. 24-25). E nesse ambiente, de regras obscuras e imprecisas, estão postas as condições para a criação judicial do direito, até mesmo para o ativismo judicial.

Nos últimos anos, no Brasil, temos assistido, sobretudo depois da Carta Política de 1988, à expansão do Poder Judiciário, que tem promovido uma verdadeira revolução, em detrimento do formalismo de inspiração liberal, época em que, como sabido, a atividade do juiz era a de declarar, mecanicamente, o direito, valendo-se, tão somente, da lógica dedutiva de interpretação.

No Estado Democrático e Constitucional, o direito já não se aperfeiçoa, não evolui e nem alcança a sua real finalidade se não em face da ação criativa dos membros do Poder Judiciário, que rompeu, definitivamente, com o monopólio legislativo na formulação do Direito, assumindo, de vez, a sua condição de corresponsável pela transformação do Estado, enfrentando sem acanhamento o grande desafio de controlar os outros Poderes, de forma a trazer para o centro do debate político a força axiológica dos textos constitucionais.

A criação judicial do direito, afirmo, à guisa de reforço, inspirado nas lições de Inocêncio Mártires Coelho, “decorre do exercício regular do poder-dever que incumbe os juízes de transformar o direito legislado em direito interpretado/aplicado, caminhando do geral e abstrato da lei ao singular e concreto da prestação jurisdicional, a fim de realizar a justiça em sentido material, que nisto consiste o dar a cada um o que é seu”. (Inocêncio Mártires Coelho, in Ativismo Judicial: o caso brasileiro, palestra proferida no Ministério Público do Estado do Pará).

Consigno, nada obstante, que o magistrado, nessa função de intérprete/aplicador do direito, não pode agir por capricho ou por conta de suas idiossincrasias, sob pena de se igualar aos que, nos demais poderes, agem sem idealismo, mas impulsionados pelos seus interesses pessoais, ou de grupos de lobistas, sem nenhum compromisso com a comunidade.

Para finalizar, uma chamada à consciência judicial: o magistrado deve ter presente, sempre, que certas minorias, certos grupos sociais, religiosos ou econômicos, só encontram nos tribunais, e em nenhum outro lugar, a proteção que estão a merecer (Luís Roberto Barroso). É nesse ambiente que o juiz constitucional assume o seu real, definitivo e mais relevante papel, cumprindo relembrar, nessa linha de intelecção, que a função do magistrado vai muito além da de mero espectador, agente passivo ou figura inanimada e ascética, que se limita a pronunciar as palavras da lei (visão montesquieuniana).

É isso.

OS PERDIGOTOS DOS PRESIDENTES

Não dá para não voltar ao tema. Logo, não deixarei de fazê-lo, enquanto a nau dos insensatos singrar os mares da ignorância, que mata e que infelicita a vida dos que, pensando de modo diverso, navegam pela via, cada vez mais estreita, da solidariedade e da empatia.

Decerto que nem precisaria dizer que vivemos, cá no Brasil como nos Estados Unidos, num ambiente de intensa radicalização política, numa dimensão nunca vista dantes, que tem contribuído para que pessoas, antes conhecidas pela sensatez, pareçam, em determinadas circunstâncias, irracionais, levando-nos à estupefação.

Querelas políticas, descambando para a insensatez e para violência, importa dizer, sempre houve, bastando lembrar, para ilustrar, que, a seis meses da eleição de 1950, o país viveu uma noite de assombro no Largo do São Francisco, no Rio, quando seguidores de Getúlio Vargas e Eduardo Gomes se enfrentaram até que a polícia dissipasse a confusão a cassetete, o mesmo se dando, concomitantemente, no Flamengo, onde brigadistas e getulistas também se enfrentaram (“Samuel Wainer: O homem que estava lá”, de Karla Monteiro, ebooks, Kindle, Companhia das Letras)

Nessa senda, importa anotar, de mais a mais, que é mais do que compreensível que todos nós tenhamos as nossas preferências – políticas, inclusive -, sabido que vivemos das nossas escolhas, e que ninguém deseja mesmo uma população anódina e acrítica -, sem posição, enfim.

Até aqui vai a minha compreensão em face da polarização que testemunhamos no Brasil e nos Estados Unidos, levada ao paroxismo nas pugnas eleitorais. Passando para a página seguinte, no entanto, já deixo de compreender e me coloco, sim, em rigorosa e definitiva linha de dissentimento com os que ultrapassam o umbral da racionalidade e do bom senso.

E, a meu juízo – e aqui passo a ratio dessas reflexões -, se submeter, por fanatismo, por paixão política, por miopia ou insensatez, aos perdigotos de qualquer pessoa, ainda que seja de um presidente da república, com grande possibilidade de contaminação pelo novo coronavírus, como fazem por aqui (Brasil) e por lá (Estados Unidos) os apoiadores de Bolsonaro e Trump, não é só inaceitável, como também estupefaciente pelo que contém de irracional, que só se justifica em face de mentes obliteradas por uma adesão cega que decorre de um fervor excessivo e delirante.

A pergunta que se impõe, em face dos perdigotos dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro: alguém, em sã consciência, tem condições de dizer quantos já foram contaminados, direta e indiretamente, pelos seus jatos de saliva?

Claro que ninguém terá uma resposta cartesiana para essa indagação. Ainda assim, convém fazê-la, apenas à guisa de instigação, em face da incomum predisposição de alguns à contaminação voluntária, por facciosismo que leva à falta de discernimento.

Diante de uma catástrofe, convém reafirmar o óbvio: o que se espera e se exige de quem tenha o mínimo de bom senso é que seja razoável e que cumpra as recomendações dos experts, convindo advertir, para concluir, que, quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você (Friedrich Nietzsche) e que, ademais, a vida é uma tempestade, razão pela qual em um momento você aproveita a luz do sol, no outro, é açoitado pela chuva, importando mesmo, nesse cenário, é o que você faz quando a tempestade chega (Alexandre Dumas), e, pelo que vejo e sinto, diante das intempéries, há muitos que não sabem como se conduzir, ou se conduzem muito mal, dando péssimos exemplos, para, adiante, inevitavelmente, pagarem a conta que decorre das atitudes impensadas que protagonizaram.

É isso.