Simplificar para desqualificar

Os iconoclastas (destruidores de imagens) costumam simplificar, ou seja,, sintetizar, num conceito menor, o que pensam dos que pretendem destruir a imagem, para, a partir de um rótulo, defini-los e marcá-los com cores vivas e chamativas, para que todos saibam, já a distância, de quem se trata, segundo a sua torpe visão..

Dois exemplos – um de ontem, e o outro, de hoje.

Mário de Andrade, cujos 70 anos de morte foram recentemente lembrados, e cuja construção literária todos reconhecem, tem sido muito mais lembrado pela sua não assumida condição de homossexual (?) do que em face de sua monumental obra.

Todos querem saber. É uma curiosidade esquizofrênica. Afinal: era ou não era homossexual o autor de Macunaíma? Teria sido para não desvendar esse mistério, que tanta curiosidade desperta, que, por tantos anos, os seus descendentes proibiram que a sua biografia fosse lançada?

Finalmente, a biografia de Mário de Andrade vai sair. E, para satisfação dos curiosos, o biógrafo Jason Tércio, autor de Órfão da Tempestade, biografia de José Carlos de Oliveira, vai desvendar o mistério: seria ele, segundo dados antecipados da biografia em comento, bissexual. Nessa revelação vem embutida a seguinte, pergunta: Qual a importância dessa informação para a literatura brasileira? Decerto que ninguém sabe responder, mas os curiosos, ou iconoclastas, finalmente saciarão a sede.

Luis Felipe Scolari, alcunhado Felipão, é um técnico vitorioso. Campeão do mundo pelo Brasil e com trabalho destacado pela sua qualidade, por muitos analistas mundo a fora. Todavia, é lembrado, sempre, como o técnico que levou o Brasil à sua segunda maior humilhação em Copas do Mundo.

 Pronto! Esse está ferrado, marcado como gado, para o resto da vida. Desse estigma, dessa mácula nunca mais se livrará. Faça o que fizer, será sempre lembrado como o técnico protagonista dos 7 x 1 para a Alemanha.

Por instinto de preservação, falo de mim agora, sem, no entanto, esquecer a lição de Padre Antonio Vieira, segundo o qual melhor que luzir em todo o tempo, é luzir somente a tempo, pois, assim, se enganam os olhos da inveja, assim se concilia nos ânimos a estimação.

Durante muitos anos, quando as pessoas queriam me desqualificar, simplificavam a minha história com uma única e mágica palavra: arrogante. A ideia era que, a partir desse rótulo, as portas não se abrissem para mim:

Simples assim. Tudo o mais que eu fizesse seria debalde em face da minha condição de arrogante, adjetivo que, atualmente, parece ter esmaecido, mas que, aqui e acolá, ainda é lembrado, quando pretendem me desmerecer.

Nos dias presentes, quando querem simplificar a minha ação enquanto magistrado criminal, me rotulam (alguns, claro) de garantista, no seu sentido mais perverso e deturpado, ou seja, aquele que, em nome da lei, passa a mão na cabeça de meliantes.

Entrementes, devo lembrar aos que fazem uso da etiqueta por maldade, que já não me incomodo com os rótulos, motivo pelo qual não tergiversarei quando tiver que decidir para reparar uma arbitrariedade.

Definitivamente, me recuso a ser um juiz positivista, segundo o qual lei é lei, e ao juiz só resta cumpri-la cegamente. Nesse sentido, serei sempre um intransigente defensor do Estado Democrático de Direito, ainda que, por pensar e agir assim, tenha que, aqui e acolá, decidir de forma contramajoritária.

Garantismo, para mim, é algo muito caro, conquanto reconheça que, no meu caso, o rótulo objetiva mesmo – pelo menos por parte de alguns críticos mais radicais, pois há quem o faça respeitosamente por compreender as minhas posições – é a simplificação malsã, numa palavra, num epíteto, da minha vocação para respeitar as leis do meu país, ainda que o seja para favorecer a um recalcitrante meliante.

A minha história, definitivamente, se contrapõe a essa simplificação, pois, durante a minha vida inteira, nunca tergiversei no combate à criminalidade, ainda que o tenha feito somente em relação ao pequeno delinquente, sabido que, no Brasil, salvo algumas exceções, a ação das agências de controle sempre esteve a serviço do criminoso egresso das classes menos favorecidas.

Portanto, que fique claro que, pelo menos no meu caso, garantismo não se confunde com impunidade, tibieza, leniência ou falta de compromisso, pois os que trabalham comigo sabem que costumo agir com sentimento voltado para bem servir a coletividade, e que, ademais, só mesmo  um flagrante e inequívoco desrespeito ao Estado Democrático de Direito me conduz à concessão de liberdade a um meliante violento e/ou recalcitrante.

É sempre bom reiterar que o meu compromisso com a Justiça é permanente, ainda que, por desídia de alguns, seja compelido, na condição de juiz de segundo grau,  a reparar uma injustiça ou um erro judiciário.

O bom juiz, o juiz rigoroso não é o justiceiro, o que pensa que, com sua ação isolada, pode mudar o mundo. Juiz bom é aquele que, sem temer pela incompreensão, é capaz de reparar uma injustiça, ainda que o faça contramajoritariamente ou em desacordo com o que quer e pensa a maioria.

A propósito, é sempre oportuno lembrar as reflexivas palavras de Aury Lopes Junior, segundo o qual o juiz imparcial e que verdadeiramente desempenha sua função (de garantidor), deve estar acima de qualquer pressão ou manipulação política. Não que com isso, prossegue o jovem jurista, estejamos querendo o impossível – um juiz neutro – senão um juiz independente, alguém que realmente possua condições de formar a sua livre convicção, pois, afinal, o juiz, num Estado Democrático de Direito, tem uma nova posição e a legitimidade de sua ação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais.

Digo mais, na esteira do mesmo doutrinador. A função do juiz não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais, ainda que para isso tenha de adotar, como consignei acima, uma posição contraria à opinião da maioria, afinal, como lembra Luig Ferrajoli, o objetivo justificador do processo penal é a garantia das liberdades do cidadão, razão pela qual, digo eu,  nenhum magistrado, num Estado Democrático de Direito,  pode ficar inerte diante de violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais, pouco importando quem seja a vítima da violação, se um réu primário ou recalcitrante..

Cumpre registrar, finalmente, forte no escólio de Gilmar Mendes, que a lei cumpre uma função de proteção contra o arbítrio, ao vincular os órgãos do Estado. Importa reafirmar, ademais, que a principal finalidade dos direitos fundamentais (Ana Paula de Barcellos), é conferir aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, a limitar a liberdade de ação dos órgãos do Estado, pois, afinal, como lembra a mesma professora Ana Paula de Barcellos, a Constituição tem a forma de um repositório geral de esperança, cujos direitos fundamentais nela inseridos, digo eu, devem assegurar a esfera de liberdade individual contra as interferências ilegítimas e/ou arbitrárias das agências de controle.

É isso.           ‘

O que nos enlouquecem são as nossas certezas

Muitas vezes, pensamos de nós e concluímos sobre nós o que nem sempre é a percepção dos outros. Ao constar essa realidade, nos flagramos, de regra, decepcionados e tristes – quando não deprimidos. Assim como qualquer outra pessoa, também, às vezes, faço de mim o juízo que não corresponde à avaliação dos meus congêneres.

Nesse sentido, lembro-me de que, certa feita, estando com a minha família em viagem de férias, procurei, como sempre, servir e agradar, de todas as formas, aos meus filhos e à minha mulher, o que é próprio da minha personalidade.

Não sei e não gosto de infelicitar as pessoas; se eu não tiver condições de estabelecer uma relação prazerosa com os que estão em volta de mim, seja no trabalho, seja na minha família, eu não fico bem comigo mesmo.

Conforme eu dizia, nessa viagem de férias procurei fazer de tudo que estivesse ao meu alcance para que todos ficassem numa boa, para que as férias fossem prazerosas e, se possível, inesquecíveis, por tudo o que de bom fosse desfrutado por nós.

Determinado dia, depois de muitas concessões a todos e bem poucas a mim, sem nada reclamar, para não ser desagradável, mesmo em face do brusco rompimento da minha rotina, resolvi bater o martelo e decidi que naquele dia eu voltaria para o hotel a fim de almoçar no meu horário (meio-dia) e para tirar uma sesta, já que estava com saudade da minha rotina. Isso foi o bastante para que me elegessem, em votação aberta e por unanimidade, o, digamos, menos simpático da viagem, – sem nenhuma concessão, sem apelo.

O mais grave é que eu, na minha (falsa) percepção – e aqui está o ponto principal dessas reflexões – imaginava exatamente o contrário, a reafirmar, mais uma vez, como diz o título desse artigo, que somos enlouquecidos pelas nossas certezas, daí o perigo de uma falsa percepção de nós mesmos, como é comum ocorrer, sobretudo com os que têm a vaidade desmedida e que consideram seu umbigo como o centro do universo.

Não preciso dizer da minha inquietação, da minha frustração, do meu desapontamento com a minha “eleição”, muito embora, depois, tudo tenha se transformado em uma grande gozação, o que, afinal, era mesmo o que pretendiam os meus filhos e minha mulher, competentes e fiéis administradores das minhas manias.

Mas, ainda assim, fiquei com uma pontinha decepção, porque vi nessa manifestação a constatação de um fato, que eu, com as minhas equivocadas certezas, não tinha conseguido perceber. Ainda tentei argumentar em minha defesa, mas não fui nem um pouco convincente, pois, quanto mais eu tentava argumentar, mais eles reafirmavam que eu tinha sido pouco simpático, cheio de manias, cheio de rotinas, e que as rotinas, em viagem,  eram para ser quebradas, o que, de rigor, estou de acordo, tanto que só pedi um dia de concessão, o que me foi terminantemente negado.

Mas o que importa mesmo é a constatação de que os loucos iguais a mim vivem os seus delírios, creem nos seus sonhos, se equivocam nas suas certezas e sofrem por isso.

Quanto ao incidente aqui relatado, posso afirmar com alegria que no final tudo se transformou em uma grande festa, daquelas que ocorrem, naturalmente, numa família unida e que se ama verdadeiramente

A certeza que eu tinha de ter me doado ao máximo aos meus filhos para lhes proporcionar as férias dos sonhos, quase me “enlouquece”, ao constatar que, diferente do que eu pensava, eu apenas delirava.

Mas o que importa mesmo é que, ao fim e ao cabo, depois de tudo, vivemos e vivenciamos  momentos inesquecíveis na companhia um do outro. É que a “eleição” foi apenas um detalhe, uma grande gozação, que nos divertiu e nos uniu ainda mais, pois, afinal, o que sobreleva, o que assoma, o que se consolida mesmo, com força voraz e incontrolável, em torno dessas e de outras questões, é o amor que nos une e a necessidade que temos de estar juntos, respeitando sempre a individualidade de cada um, entendendo que se deve ceder, sempre que for necessário, em nome do amor e da união que devem prevalecer nas relações familiares.