“INTIMADO PORRA NENHUMA”

 

A verdade é que os Poderes estão em crise; crise de credibilidade. Com efeito, não temos fé – e nem esperança – no Executivo, no Legislativo, nas mais diversas esferas, e, o que é gravíssimo, aos poucos o Poder Judiciário, como os demais, vai caindo em descrédito, em face da conduta despudorada de alguns dos seus membros – poucos, é verdade -,que não têm controle moral, que não medem as consequências de sua ação, cuja ambição os fazem agir como um carro sem freio e sem condutor descendo uma ladeira íngreme em desabalada carreira, para atingir em cheio a credibilidade da instituição.

 

Foi assim que reagiu o deputado Roberto Góes (PDT-AP), depois de ser avisado por um oficial de justiça,via telefone, que estava intimado a comparecer a uma audiência no Supremo Tribunal Federal, marcada para o dia 15 de fevereiro do corrente, num dos seis inquéritos em curso, tendo-o como investigado, segundo matéria veiculada no jornal Folha de S. Paulo do dia 02 de julho do ano em curso.

Segundo a matéria,quando um dos quatro oficiais de justiça do Supremo recebe um mandado para intimar o deputado G oés, já sabe que serão dispendidas muitas horas e ligações na missão, na tentativa de localizá-lo, pois ele simplesmente se esconde para não ser intimado, além de criar toda sorte de empecilhos.

Entre as dificuldades para localizar o parlamentar estão, por exemplo, as ausências da Câmara Federal. Levantamento feito pela Folha nos registros da Casa mostra que Góes esteve ausente em 75 das 94 sessões ordinárias e extraordinárias realizadas neste ano, até quarta-feira, 28 de junho.

Um dos oficiais de justiça, cansado das tentativas de intimar o parlamentar, narrou, em certidão, que “de todos os investigados e processados perante o Supremo, o deputado é o único que adota uma postura reiterada de não se dispor a receber as comunicações processuais”.

Da reação desvairada e desrespeitosa do deputado, da sua vida prenhe de deslizes – para dizer o mínimo -, enfim, posso tirar várias conclusões. Posso inferir, por exemplo, que o eleitor do Amapá não sabe escolher bem os seus representantes. Mas a mim não me importa aprofundar essa questão, porque, afinal, o eleitor brasileiro já deu inúmeras provas de que essa afirmativa é verdadeira, oque pode ser corroborado por tudo o que temos testemunhado em face da Operação Lava Jato.

Outra conclusão que se pode tirar do episódio e das informações do jornal, é a de que, infelizmente, apesar dos avanços, a lei parece mesmo não se destinara todos indistintamente, como preconiza a Constituição brasileira, o que pode ser constatado em face dos seguintes dados: Dos 500(quinhentos) congressistas acusados de atos criminosos desde a promulgação da Constituição de 1988, somente 16(dezesseis) foram condenados, e apenas 08 (oito) chegaram a cumprir pena. Em muitos casos, segundo o site Congresso Em Foco, “os processos simples prescreveram sem que os ministros do STF tivessem julgado o comportamento dos réus”.

A propósito, Luís Flávio Gomes adverte que “A igualdade, no direito penal, é um mito. As pessoas, nessa área, não são tratadas de forma isonômica. A desigualdade vem do tempo da sociedade aristocrática (1500-1888). Os iguais (ou considerados tais) pelas elites governantes sempre tiveram privilégios (de pena menor, de serem julgados pelos seus pares etc.), que perduraram mesmo durante a república (1889 até os dias atuais). Um dos grupos escandalosamente privilegiados é o dos parlamentares, que desfrutam (ainda hoje) de várias imunidades e prerrogativas” (cf. Quais são as imunidades dos parlamentares? Podem ser presos? In site Jus Brasil).

Outras tantas conclusões poderiam ser tiradas em face da conduta sub-reptícia do desbocado deputado, o qual, malgrado contumaz, ainda escarnece da Suprema Corte do país, quiçá porque, em face da leniência das instâncias persecutórias e frouxidão da legislação brasileira, ainda está em liberdade, conquantoexista contra si, inclusive, título executivo penal.

Para mim, inobstante, a reação do deputado Roberto Góes decorre, basicamente, de duas singelas evidências: certeza da impunidade e descrença nas instituições, pois, quem vive à margem da lei, contando com o beneplácito das instâncias persecutórias – e são incontáveis os mandatários, quer no executivo, quer no legislativo nessa condição –, e não recebe, de rigor, nenhuma punição, sente-se no direito de abespinhar as instâncias de controle, consciente de que nada lhe ocorrerá.

A verdade é que os Poderes estão em crise; crise de credibilidade. Com efeito, não temos fé – e nem esperança – no Executivo, no Legislativo, nas mais diversas esferas, e, o que é gravíssimo, aos poucos o Poder Judiciário, como os demais, vai caindo em descrédito, em face da conduta despudorada de alguns dos seus membros – poucos, é verdade -,que não têm controle moral, que não medem as consequências de sua ação, cuja ambição os fazem agir como um carro sem freio e sem condutor descendo uma ladeira íngreme em desabalada carreira, para atingir em cheio a credibilidade dainstituição.

A verdade é que, em face de tantas decisões incompreensíveis, de tantas posições ambivalentes diante dos mesmos temas, de tanta exposição pública desnecessária de alguns dos seus membros, de tantas decisões que afrontam a consciência média, de tantas e tantas decisões contraditórias em face da mesma quadra fática, de tantas e reiteradas notícias de enriquecimento ilícito de alguns dos seus membros, o Poder Judiciário não podia mesmo manter os níveis de credibilidade que se deseja.

Nesse cenário, dois vizinhos, por exemplo, jamais compreenderão como o Poder Judiciário pode, por exemplo, diante de casos absolutamente similares, prolatar decisões díspares, em face das divergências em duas turmas ou duas câmaras, como, infelizmente, temos assistido, aqui e em outras instâncias.

A solapar a credibilidade do Poder Judiciário, ademais, consigno que nenhum cidadão se sente confortável com os desvios de condutas de prefeitos municipais – e são muitos, incontáveis – que,  de rigor,não recebem do Poder Judiciáriopunição exemplar, quer em face das prescrições penais, quer em face da sua absolvição em virtude de um filigrana jurídico, de um detalhe técnico, como, por exemplo, em casos reiterados de afronta à Lei de Licitações, ante a alegação de ausência de dolo específico, como se algum alcaide, num rasgo de sinceridade, admitisse ter fraudada uma licitação com o fim específico de tirar proveito pessoal.

Convenhamos que situações desse jaez, a seletividade punitiva, as decisões que terminam por perpetuar a impunidade dos poderosos e outras coisas mais só podem mesmo nos levar ao descrédito, o que, convenhamos, é péssimo para a democracia, pois é em face dessa realidade que testemunhamos homens públicos sem nenhuma credibilidade se sentindo no direito de qualificar com impropérios decisões de magistrados cuja história e postura moral, aos olhos de quem quer ver, é digna dos mais destacados elogios.

ESPETÁCULO DE INCOMPREENSÕES

 

“[…]Em defesa dessa mesma liberdade de interpretar, faço questão de consignar, ademais, que ao magistrado compete  dar sentido ao enunciado normativo, ou seja, é quem dispõe de autoridade para interpretá-lo, livremente, sem se sujeitar a pressões exteriores, sobretudo quando os textos normativos não veiculam comandos precisos, como se deu no caso concreto acima mencionado, a possibilitar interpretação dúplice, sem que se possa afirmar, nessa perspectiva, que tal juiz decidiu equivocadamente, pois ambas as posições, sob a ótica da hermenêutica, podem estar corretas[…]..

 

Tenho mais de 35 anos de vida pública, motivo pelo qual posso dizer que já vivi um pouco de tudo, e aprendi, também, que o exercício da função pública impõe aos agentes do Estado um elevado preço, sobretudo, quando a função que exercemos nos compele a decidir, acatando, ou não, os pleitos formalizados pelas partes.

Decidindo assim ou assado, contrariamos a uns e agradamos a outros, razão pela qual, nesse cenário, somos aplaudidos ou criticados, inelutavelmente.  Não há, nesse panorama, meio-termo, visto que não temos como declarar a demanda empatada e condenar o secretário judicial nas custas e honorários advocatícios, para usar uma ironia do eminente professor e ministro Luís Roberto Barroso.

Dependendo do lado em que se colocam os contendores, eles podem fazer elogios ou serem críticos enfurecidos de uma decisão judicial, tudo de acordo com as suas conveniências e/ou interesses.

Nesse espetáculo de incompreensões, tudo está a depender dos interesses daquele que contende, pouco lhe importando os fundamentos da decisão, porque esse detalhe relevante pouco interessa quando estão em jogo interesses contrariados, o que, de certa forma, é até compreensível.

Nós, agentes do Poder Judiciário, vivemos, como sói ocorrer, essa suscetibilidade crítica em face das nossas decisões, melindre que, nada obstante, por dever de ofício, deve ser encarado com resignação e resiliência, conquanto nos causem, sim, certo desconforto, sobretudo quando temos a certeza de ter decidido em face das nossas convicções e em vista da nossa consciência.

Um episódio que demarca bem essa situação pode ser destacado em face dos famigerados 21,7% dos servidores públicos, objeto de recente decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão, no IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, suscitado pelo desembargador Paulo Velten Pereira.

Para os que se sentiram prejudicados em seus interesses, com efeito, os que decidiram contra a implementação dos 21,7% decidiram alinhados aos interesses do governo, o que, convenhamos, é uma rematada tolice, que só se compreende em face da certeza que temos de que do ser humano se pode esperar qualquer coisa.

Os que votaram a favor dos interesses dos funcionários, ao reverso, são aplaudidos como se fossem eles os únicos com capacidade de discernimento em torno da questão; são os heróis de hoje, até que sobrevenha outra decisão a partir da qual, dependendo da posição assumida, serão escarnecidos como verdadeiros vilões.

Nem uma coisa e nem outra. Não estão alinhados aos interesses do governo os que votaram contra a implementação do 21,7%; nem é verdade, lado outro, que só os que decidiram a favor dos interesses dos funcionários o fizeram com isenção e imparcialidade. Tanto os primeiros como os segundos decidiram tão somente – é o que se espera, enfim, de um julgador isento – à luz da interpretação que fizeram, livremente, da quaestio submetida à intelecção. E me recuso a pensar de outra forma.

Tenho dito, trafegando pelo lugar comum, que, diante do objeto do conhecimento, o ponto de observação do intérprete faz toda a diferença. Por isso é que, diante da mesma questão e de duas decisões possíveis, uns decidem de uma forma, e outros, muitas vezes, de maneira diametralmente oposta, sem que se possa dizer que um está errado e o outro certo, de acordo com o julgamento canhestro dos interessados no desfecho da demanda.

Logo, não se pode pretender que um Tribunal, composto de pessoas com diferentes formas de pensar, agir e interpretar, decida em uníssimo em face das questões colocadas a exame, sobretudo em face de uma questão que de há muito se sabe controvertida.

Mauro Capelletti, a propósito, leciona que, embora se reconheça que o Poder Judiciário exerce a função de aplicar o direito ao caso concreto, a atividade dos juízes vai além da atuação da vontade da lei. Há, na verdade, segundo Capelletti, uma dimensão criativa na atuação do magistrado, assim como ocorre no labor de qualquer intérprete, pois, ainda que este se esforce por permanecer fiel a determinado texto, “ele será sempre, por assim dizer, forçado a ser livre, porque não há texto musical ou poético, tampouco legislativo que não deixe espaço para variações e nuances, para a criatividade interpretativa” (Juízes Legisladores?, Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Porto Alegre, 1999, p. 22).

É a favor dessa liberdade criativa que me predispus a escrever este artigo, pois me recuso a ser um mero aplicador dos enunciados linguísticos, sem perscrutar acerca das possibilidades que deles decorrem para fins de interpretação, como se fora apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, na sempre lembrada conclusão de Montesquieu.

Em defesa dessa mesma liberdade de interpretar, faço questão de consignar, ademais, que ao magistrado compete  dar sentido ao enunciado normativo, ou seja, é quem dispõe de autoridade para interpretá-lo, livremente, sem se sujeitar a pressões exteriores, sobretudo quando os textos normativos não veiculam comandos precisos, como se deu no caso concreto acima mencionado, a possibilitar interpretação dúplice, sem que se possa afirmar, nessa perspectiva, que tal juiz decidiu equivocadamente, pois ambas as posições, sob a ótica da hermenêutica, podem estar corretas.

Ademais, quando os comandos normativos se apresentam como fórmulas abertas, cabe ao intérprete dar a eles sentido, razão por que cada um formula a sua interpretação de acordo com a sua posição diante do objeto do conhecimento, disso resultando a elementar constatação de que num órgão multifacetado, as decisões tendem a ser também multifacetadas, sem que se possa concluir, em face disso, que o magistrado decidiu-se por essa ou aquela interpretação em razão de uma força exterior a impulsionar a sua atividade mental.

Logo, não presta um bom serviço à democracia aquele que, inconformado com esta ou aquela posição do intérprete, se põe a desferir contra ele aleivosias, apenas e tão somente porque teve um interesse contrariado. É preciso amadurecer. É necessário ter juízo, vez que grandeza mesmo, infelizmente, não se pode esperar de todo mundo.

Não podemos infantilizar as nossas ações, direcionando os nossos aplausos e as nossas críticas de acordo com as nossas conveniências pessoais, conforme os nossos interesses, sem atentar para outras variáveis muito mais relevantes e mais apropriadas aos seres racionais, pois aplausos e críticas convenientes são danosos para o Estado de Direito.