Um palácio para Inácio

Barão de Itararé foi como se autointitulou o jornalista gaúcho Apparício Torelli (1895-1971), que fez uso dos jornais alternativos A Manha e Almanaque, publicados no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, para enfrentar e fazer joça do Estado Novo e dos políticos corruptos da época.

Por pensar e agir assim, consta que foi preso diversas vezes, contudo, nunca perdeu o humor, os trocadilhos e as piadas.  Consta também que, cansado de apanhar da polícia secreta de Getúlio Vargas, teria colocado na porta de seu escritório uma placa com a hoje famosa frase ”Entre sem bater”, que, claro, não tinha o mesmo sentido que tem nos dias atuais.

Apenas para ilustrar, lembro que Itararé é o nome da batalha que não aconteceu durante a Revolução de 1930. Os historiadores registram que era para ter sido o maior confronto entre os constitucionalistas e as forças do governo provisório, mas como ninguém apareceu, não houve a guerra, que mesmo assim, entrou para história.

Algumas pérolas de Apparício Torelli, buscadas ao acaso na internet, e repetidas aqui apenas para reflexão, em face do momento atual que vivemos: ”Tem políticos cuja vida pública é a continuação da privada”, ”O homem que se vende sempre recebe mais do que merece”,e  ”Não é triste mudar de ideias; triste é não ter ideias para mudar”.

Para que lembrássemos a cada eleição, décadas atrás ele escreveu, enfático:: ”Queres conhecer o Inácio, coloca-o num palácio”.

Essas despretensiosas reflexões servem apenas, como se pode dizer, uma reafirmação, talvez até desnecessária, de que nós somos responsáveis pelas nossas escolhas.

Nesse sentido, advirto, mesmo descambando para o excesso, que aqueles que trocam o voto por um favor ou uma cortesia, decerto que não contribuirão para mudar  essa nefasta cultura brasileira, segundo a qual estar no poder é a oportunidade para dele se apropriar e tirar proveito, na senda daquela velha e canalha máxima nacional de que “farinha pouca,  o  meu pirão primeiro”, ou em face do desvirtuamento não menos abominável do apotegma  “é dando que se recebe”, ou, ainda, da máxima, da mesma forma canalha, de que, “em política só é feio perder”.

Por isso, sem temer pelo excesso, lembro ao eleitor que quem compra seu voto, ou tenta,  por qualquer meio,  influenciar, ilegitimamente, no seu poder de escolha,  não é digno de confiança.

Não venda, pois, não troque, sob qualquer pretexto, o seu voto. Não faça nenhum negócio que envolva a sua liberdade de escolha, pois voto, definitivamente, não é brinquedo, sobretudo num país como o nosso, carente de estadistas, de pessoas que pensem o poder delegado como instrumento para servir os que lhes concedem a outorga.

Poder, no Brasil, infelizmente, é sinônimo de benesses, de troca de favores, de institucionalização da propina, da bandalha, da corrupção, da vantagem indevida, da perpetuação da esperteza  e  da falta de idealismo.

Por isso, pense bem na escolha que vai fazer. Não vote por simpatia. Vote em propostas. Examine o passado dos candidatos. Colha dados sobre a sua história. Não se deixe levar pelas primeiras impressões. Cuidado com a propaganda enganosa. Não compre um candidato como se fosse um mero  produto dos marqueteiros.

Quatro anos é tempo mais do que suficiente para fazer o mal. Por isso, o cuidado com a escolha.

Democracia é uma conquista que vai se sedimentando aos poucos. Por isso, temos apanhado, temos errado, algumas vezes, nas nossas escolhas. Mas, ainda assim, convém insistir. Afinal, nesses mais de quinhentos anos, já aprendemos muito, e são muitas as conquistas no campo democrático que devemos festejar. Todavia, não custa advertir, cuidado, muito cuidado com as escolhas!

Boa eleição para todos.

Somos assim

Tenho verificado, com muito mais ênfase nos dias atuais, em tempos de puro egoísmo e ambição material desmedidos, que, aos olhos dos semelhantes, o problema do vizinho é só dele, e que o meu problema, noutro giro, não é problema do vizinho.

Somos assim, fácil constatar, desde que o mundo é mundo. Vivemos, mais do que nunca, tempos que induzem  que cada um cuide de si. Vivemos, com efeito, tempos de solidariedade muito próxima de zero. Por isso, temos sido mais solitários que solidários, mais sozinhos  que vizinhos (E. Mougenot Bonfim)

Repito: somos assim, ou melhor, quase sempre somos assim. Digo quase sempre, porque existem as exceções. Mas eu não estou refletindo em face das exceções; reflito em face da regra. Por isso, não se há de negar que somos, sim, na maioria das vezes, egoístas, personalistas, egocêntricos, intolerantes e intransigentes.  E, sempre que pensamos e agimos assim, aviltamos o sentimento de solidariedade que deveria presidir as nossas ações, inspirados no sentimento mesquinho de que o melhor mesmo é levar vantagem de ordem pessoal, pouco importando a dor ou o sofrimento do irmão.  É dizer, desde que a manga do vizinho não caia sobre o meu telhado, pouco me importa se as minhas destruam o dele, já que os meus interesses, sejam quais forem as circunstâncias, deverão, sempre,  ocupar lugar de destaque na minha vida, sem concessão a quem quer que seja.

Pensando assim, vamos fragilizando as relações com o semelhante, vamos nos isolando em nosso casulo, com os olhos voltados apenas para nós mesmos, como se fosse possível construir o mundo sob a perspectiva tão somente do que os meus olhos podem ver, e o meu coração possa sentir ou ambicionar.

 Conforme sabemos bem, tudo nessa vida depende do ponto de observação de cada um de nós. Vemos os fatos e os interpretamos de acordo com as nossas conveniências, as nossas crenças, os nossos interesses. Falta-nos, lamentável dizer, desprendimento, sensatez, sentimento de cooperação e, muitas vezes, altivez para reconhecer, por exemplo, o direito do contendor.

Trazendo as reflexões para o mundo do direito, consta-se que, numa demanda judicial, há, quase sempre, uma resistência, exatamente porque os contendores, dependendo do seu ponto de observação, dos seus interesses, dos seus valores e das suas conveniências, julgam, muitas vezes, por espírito de emulação, que é melhor demandar, eternizar o litígio, do que ceder; é como se fosse uma questão de honra aviltar a lei do bom senso.

No mundo em que vivemos, de competição exacerbada, é muito raro encontrar alguém com humildade suficiente para reconhecer que o outro tem razão. Isso acontece, muitas vezes, em virtude da visão obliterada e mesquinha que tem dos fatos, a enevoar a sua capacidade de discernimento, o que resulta, infelizmente, da busca frenética e incessante, por vezes desleal, de levar vantagem,

Há cerca de dois anos fui atropelado, na Estrada da Vitória, próximo ao Hospital Sara. O motorista do veículo cuidou de me socorrer. Mostrou-se transtornado com a situação e as consequências que dela poderiam advir. Quando entrei no seu veículo, a caminho do hospital, sangrando muito, sem a exata dimensão do alcance das lesões, a primeira coisa que disse ao autor do fato é que ele não tinha culpa; assumi, sem titubeio, que o culpado tinha sido eu, que atravessei a pista de rolamento, sem as cautelas devidas.

Todavia, nem sempre é assim. Os exemplos se multiplicam sob os nossos olhos. As pessoas têm uma certa dificuldade para assumir o erro, admitir que não têm direito. É que, para muitos, o seu umbigo é o centro do universo. Daí por que analisam os fatos sempre à luz das suas perspectivas e dos seus interesses, às vezes mesquinhos.

E, assim, vamos dando aos fatos a interpretação que nos convém, de acordo com a nossa equivocada visão de mundo, dificultando as relações, fomentando o litígio, dando vazão à discórdia, passando as pernas em uns e tripudiando sobre os interesses de outros, a reafirmar que, sobre a terra, o animal mais perigoso é mesmo o homem que, por isso, não cansa de surpreender.

Desde o meu ponto de observação, até aonde alcança a minha percepção, entendo que ninguém deve se orgulhar (a menos que seja doente) de fazer o mal, de passar a perna em alguém ou de ser prepotente, arrogante, raivoso, psicótico e cruel, indiferente às consequências da sua maldade, como principia por admitir o protagonista do estupendo Notas do Subsolo (ou Memórias do Subsolo), de  Fiódor Doistoiévisk.

É, infelizmente, somos assim.

 

 

 

Caturrices de velho?

Ouço de muitos o desejo, uma quase sofreguidão, de sair da rotina; é como se a rotina, por si só, fosse um mal, algo a ser evitado, quando, na minha avaliação, ela é indispensável a quem, como o magistrado, tem que desenvolver um especial esforço intelectual para, com sensibilidade e equilíbrio, decidir o conflito de interesses contrapostos e deduzidos em juízo.
Como uma reafirmação da minha condição de, digamos, excêntrico, gosto, diferente de muitos, da minha rotina; tenho-a como necessária para a minha atividade intelectual. Nesse sentido, tenho por inviável uma vida produtiva, sem me submeter a minha rotina; rotina, muitas vezes, espartana, razão pela qual, quando tenho que dela me afastar, sinto-me perseguido por um déficit mental que compromete, definitivamente, a minha a capacidade intelectual, em detrimento, claro, da apreensão do objeto cognoscível, a exigir, nessa senda, redobrado esforço intelectual.
Por isso, e muito mais, tento não sair da rotina, porque dela dependo para preservar a minha capacidade intelectual, limitando-me a afronta-la tão somente em face de uma excepcionalidade, de algo invencível, insuperável, que independa das minhas forças e da minha vontade, com o que me defronto, aqui e acolá, como sói ocorrer.
Quando saio da minha rotina, por uma ou outra razão, sobretudo quando o rompimento se dá de súbito, sem um tempo mínimo para promover o necessário equilíbrio mental, penso estar vivendo num mundo estranho ao meu. Nesse cenário, é como se a vida parecesse sem sentido. Por isso, posso reafirmar, à ilharga da rotina não sou a mesma pessoa. Nessa condição, até eu mesmo, que penso ser normal, sinto-me como se reafirmasse a opinião dos que juram, de pés juntos, por maldade ou ciência própria, que eu padeço de alguma patologia ainda não diagnosticada.
A quase obsessão pela minha rotina tem me levado por caminhos que certamente não levariam uma pessoa, digamos, normal. Tentei, por exemplo, lecionar na Universidade Federal e na ESMAN, mas logo desisti. O magistério me compelia sair de casa à noite. Para mim era um tormento. No dia definido para lecionar, eu já acordava apoquentado com iminência de hostilizar a minha rotina. Pensei, pensei e desisti, na convicção, definitiva, de que nada se compara ao prazer de estar em casa, e poder desfrutar da companhia da minha família.
Tenho trabalhado, tenazmente, para controlar a minha ansiedade. Em muitos aspectos da vida a controlei, definitivamente. Hoje, maduro, posso dizer que sou do tipo que nem engarrafamento e antessala de médico conseguem me irritar. Aprendi a esperar. Deixo fluir o tempo. Estar vivo, para mim, é o que me basta.
Todavia, não sou sempre assim. Não sou tão normal assim. Há circunstâncias da vida que ainda não controlo a minha ansiedade, exatamente porque condiz com a minha rotina, que reluto em aceitar que seja maculada, ciente, entretanto, que, para os mais jovens, acostumados com os novos tempos, tudo não passa mesmo de caturisses de um velho.
A ansiedade toma conta de mim, por exemplo, quando chega a hora de ir para casa almoçar com a minha família. Essa é a ansiedade que não consegui controlar, porque ela bate de frente com a minha rotina, que tento preservar a todo custo, de sorte que quando soube, antes mesmo da votação, que meu nome seria alijado da composição do órgão especial, apesar de decepcionado com a lista sêxtupla previamente elaborada, não sucumbi, pois, se é verdade que frustraram as minhas expectativas, já que, apesar das minhas manias, não deixo de ser profissional, pude, ainda que involuntariamente, voltar a cumprir a minha rotina.
É claro que é decepcionante não ter sido escolhido para compor o órgão especial, vez que, todos sabem, coloco as minhas idiossincrasias de lado quando está em questão interesse público. Todavia, poder voltar à minha rotina, importa dizer, não é algo de que possa me queixar, conquanto, reafirmo, mesmo em face das minhas manias, sou, acima de tudo, profissional e responsável, razão pela qual, se tiver um dia que voltar ao Pleno, saberei compatibilizar a minha rotina com o interesse público, afinal, movido a desafios, não sou do tipo que capitula diante dos obstáculos; não sou, definitivamente, nessa questão e noutras do mesmo jaez, tão radical quanto o general Patrício Macário, personagem marcante do romance Viva o Povo Brasileiro, do saudoso João Ubaldo Ribeiro, que, em determinada passagem do magistral obra, expõe a sua recusa, definitiva e sem concessões, de mudar de hábitos por causa dos outros; conquanto pareça olhos de uns poucos, caturra não sou, definitivamente.

Sísifo e o Poder Judiciário

Sísifo, na Mitologia Grega, foi considerado o mais astuto dos mortais, tendo recebido o título de mestre da malícia. Todavia, cometeu um grave pecado. Ousou ofender os deuses, tendo, por isso, recebido uma punição severa, para toda eternidade, que consistia em rolar com as mãos uma grande pedra de mármore até o cimo de uma montanha. Entrementes, para que se perpetuasse a punição, como queriam os deuses, todas as vezes que ia alcançando o topo da montanha, a pedra caia de novo, ladeira abaixo, pelo seu próprio peso, chegando novamente à planície, compelindo-o a tentar, outra vez, levá-la ao cume; sempre embalde, todavia, pois as suas forças se esgotavam antes de chegar ao objetivo. Isso porque os deuses entendiam não existir punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

É certo que “diferem as opiniões sobre os motivos que lhes valeram ser trabalhador inútil dos infernos” (Albert Camus), questão que não é relevante para os argumentos que pretendo consolidar nessas reflexões, como o farei a seguir, afinal, “os mitos são feitos para que a imaginação os anime” (Albert Camus).

Pois bem. Nos julgamentos dos quais participei, tanto nas Câmaras Criminais Reunidas quanto na 2ª Câmara Criminal, e ao tempo em que compunha o Pleno do Tribunal de Justiça, por diversas vezes fiz menção a essa alegoria, para, a partir dela, tentar retratar as minhas impressões sobre o Poder Judiciário, que, reconheço, produz muito, mas que, aos olhos da opinião pública, é como se nada fizesse, pois há sempre a sensação, não sem razão, de que as demandas apenas se eternizam, tamanho o volume de litígios formalizados, sobretudo depois que o acesso se tornou menos onírico para uma parcela significativa da nossa sociedade.

A verdade, no entanto, é que, examinada a questão sem paixão, fazemos muito, produzimos muito, lutamos diuturna e incessantemente, mas não conseguimos, e nem conseguiremos, decerto, dar vazão aos mais de 96 milhões de processos em andamento nas mais esferas do Poder, fruto de uma cultura ultrapassada de que todos os conflitos e problemas sociais devem ser resolvidos mediante o ajuizamento de um processo (Ricardo Lewandowski).

Diante desse quadro, avulta, com singular importância, a Conciliação como a via alternativa eficaz para solução dos conflitos, que tem sido implementada em todo país, com singular destaque para o estado do Maranhão, pelo seu Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, prática estimulada, em boa hora, pelo Conselho Nacional de Justiça (resolução 125/2010), e a ser formalizada pelo legislador ordinário, de lege ferenda.

Em vista da realidade que acima descrevi e ante a convicção que tenho de que o Poder Judiciário, como Sísifo, em face da pena a ele infligida, não tem condições, pelos seus 15 mil juízes, de atender, a tempo e hora, às demandas formalizadas, tenho lutado, com a minha excepcional equipe de trabalho, contando com o respaldo decisivo dos três últimos presidentes do TJMA, no sentido de consolidar a Conciliação como via eficaz e alternativa de solução dos conflitos, como o são, no mesmo passo e na mesma medida, a mediação e a arbitragem.

Ainda recentemente, com o respaldo decisivo da presidente do Tribunal de Justiça, desembargadora Cleonice Freire, e de alguns dos nossos colegas de primeiro grau, implementamos o projeto de Conciliação Itinerante, em convênio com a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), contando com a participação determinada de várias outras instituições e empresas demandantes e demandadas com resultados expressivos e alvissareiros, a nos impelir ao caminho da interiorização do mesmo projeto, cujas bases lançamos recentemente nas comarcas de Balsas e Imperatriz.

Nesse mesmo afã, já demos a largada para a realização da 2ª Semana de Conciliação Itinerante, desta feita em convênio com a Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), para atendimento aos jurisdicionados dos diversos bairros que circundam a instituição de ensino, todos de certa forma órfãos das ações inclusivas do Estado.

O Lixo moral produzido pelo vale-tudo eleitoral

Não tem jeito! Sempre que me proponho a levar uma reflexão ao leitor fico agastado ante a possibilidade de ser mal interpretado. Esse mesmo sentimento parece ter tomado conta do espírito de Erasmo de Roterdã, quando se dignou escrever Elogio da Loucura, sentimento que externou em carta endereçada ao amigo Tomás Moura, na qual fez questão de anotar que buscava apenas se divertir com a obra. De minha parte, é claro que não escrevo esse artigo apenas para me divertir, mas, sobretudo, para advertir, para instigar, provocar – com cuidado, claro, para não ferir suscetibilidades. Todavia, ainda assim, me preocupa que a ele seja dado o alcance que não deve ter; e que não terá, decerto, em face da convicção que tenho de que apenas constato um fato sobre o qual poucos haverão de discordar.

Feita a digressão, passo às reflexões.

Pois bem. Depois do vale-tudo eleitoral, da ressaca moral que decorrerá das acusações recíprocas (muitas delas levianas e infundadas) entre os contendores, sob os olhos espavoridos do eleitor, nos restará indagar a nós mesmos, desiludidos, o que esperar  de um(a) candidato(a), que, para se eleger, faz uso de quaisquer expedientes, sobretudo se almeja a  chefia do Poder Executivo, de quem se espera postura  similar a de um magistrado.

Importa refletir, nessa esteira, se merece o respeito dos concidadãos, aquele que, para se eleger, mente, escarnece, vilipendia, achincalha, ataca, menospreza, maquina,  agride e  finge, sem constrangimentos, sem limites e sem pudor, sem peias e sem amarras morais, a qualquer custo e a qualquer preço,  sejam quais forem as consequências e as vítimas das suas sandices, mentiras e maquinações.

Nesse panorama, releva avaliar, também, por que determinadas pessoas que, nas suas relações pessoais, condenam a ganância moral e as ignomínias que são praticadas em nome do povo,  se desgarram das mais comezinhas normas de conduta, quando se dispõem a participar de uma peleja eleitoral, menosprezando, nesse passo, elementares regras de convivência, jogando numa lata de lixo, sem escrúpulos e sem pudor, a sua própria história.

Não é excessivo questionar, de mais a mais, por que nós, eleitores, aceitamos e absorvemos, passivamente, a produção do lixo moral que decorre dos embates eleitorais, legitimando, com o nosso voto, determinadas condutas que, de rigor, costumamos condenar em qualquer pessoa com a qual travemos uma relação social.

Tenho para mim que é, no mínimo,  uma contradição exigir das pessoas comuns que, nas suas relações pessoais, ajam com denodo e retidão, ante os péssimos exemplos ministrados pelos que almejam nos representar – e mesmo no exercício da representação -, ou seja, em face do espetáculo de horror e de degradação moral que somos compelidos a testemunhar, a cada dois anos, nos embates eleitorais – e, depois, o que é mais grave, no exercício do poder que decorre da outorga, agora a pretexto de nos representar.

O mais desalentador é constatar, por fim, que a refrega, a desinteligência, a pantomima, as agressões, enfim, levadas ao paroxismo nas pugnas eleitorais, não decorrem do desejo, do afã de defender os interesses dos representados. O que temos testemunhado, com efeito, é que, infelizmente, os protagonistas desse excremento moral, quando, finalmente, ascendem ao poder, passam a defender os seus próprios interesses, em detrimento dos interesses dos seus representados, vítimas da ganância moral que permeia as ações de boa parte dos nossos homens públicos.

Diante desse quadro, só nos acalentaria a ação enérgica dos órgãos persecutórios, mas desses, infelizmente, pouco se espera, principalmente quando se trata da clientela mais favorecida, o que me conduz à lembrança de Nego Lelé, personagem de João Ubaldo Ribeiro, em Viva o Povo Brasileiro, o qual, para justificar a vingança privada, argumenta mais ou menos nos termos a seguir: Que negócio de justiça é esse?! Que besteira é essa?! Isso não existe! Pode existir no estrangeiro, mas aqui não existe. Que Justiça?! Mas, home creia, que Justiça?! Onde é que tu já ouviu falar de justiça? Justiça é uma palavra dos livros, isso que a justiça é! Justiça quem faz para mim é eu mesmo. Eu que não me desdobrasse nem me virasse em oito, em oito vezes oito. Eu que ficasse quieto, esperando justiça, que hoje o que a gente estava era comendo capim. E olhe lá!

É isso.

Doses diárias de Eugenio Raúl Zaffaroni

No período de 26 a 29 de agosto próximo passado, participei, na condição de espectador, do 20º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, realizado na cidade de São Paulo. Desnecessário dizer da relevância de participar de um evento dessa envergadura, sobretudo em face da excelência dos temas apresentados, desenvolvidos por criminalistas da mais elevada estirpe, reconhecidos mundialmente em face das teorias e teses por eles desenvolvidas.

Na oportunidade, fomos contemplados com palestras de juristas da envergadura de  Claus Roxin (O Significado da Política Criminal para os Fundamentos do Direito Penal),   Eugenio Raúl Zaffaroni (Dogmática Penal e Liberalismo), Guilherme de Souza Nucci  e Gilmar Ferreira Mendes( Habeas Corpus: Função e Papel no Processo Penal Brasileiro), César Roberto Claro Bittencourt (Aplicação da Pena e sua Dosimetria), Jorge Figueiredo Dias (Problemas Dogmáticos-Sistemático Fundamentais da Doutrina do Crime), dentre outros.

Em eventos desse jaez, para além dos temas em debate,  exacerbando a minha veia de cronista, procuro observar o comportamento do ser humano, seja de um anônimo, seja de um pop star. Isso decorre da minha quase obsessão de perscrutar, de tentar conhecer o ser humano, espécime, desde os meus olhos, quase sempre enigmático, a estimular, por isso, as mais variadas interrogações.

O comportamento do homem tem sido, desde sempre, objeto da minha atenção, sobretudo em face da minha vocação para a ciência criminal.  Admito ser quase obsessivo nessa questão, pois, dependendo do contexto, quase nada passa ao largo da minha percepção. Fico a distância, à socapa, de soslaio, quase como um animal farejando a caça, colhendo os detalhes da conduta do ser humano que, por isso, tem sido objeto de muitas crônicas da minha autoria.

Em eventos desse jaez, quase sempre falo pouco, mas ouço muito e observo sempre, para que possa fazer as minhas reflexões e tirar as minhas conclusões, muitas deles, claro, precipitadas, equivocadas, como às vezes costuma ocorrer.  E por que procedo dessa forma? É que sempre acho que do ser humano se pode esperar algum comportamento excêntrico, algo inusitado, digno de nota; seja um olhar malicioso, um sorriso maroto, uma atitude irrefletida, um ato de exibição, uma conduta exótica ou uma atitude esquizofrênica. Por isso, fico atento, sem descuidar de mim, sem esquecer que, como ser humano, sou igualzinho àqueles que elejo como objeto das minhas observações. Ademais, é bem provável que eu também possa estar sendo alvo de observação e,  quem sabe?, de censura.

Nesse afã, no último dia do evento, deparei-me com um fato inusitado, sobretudo porque o protagonista foi, ninguém mais, ninguém menos, que Eugênio Raúl Zaffaroni, jurista argentino, festejado como um dos mais importantes juristas da sua época, que, ao terminar de proferir a sua palestra, protagonizou uma situação excêntrica, própria, assim penso, de pessoas inteligentes e humildes, como descrevo a seguir.

Pois bem.  Ao deixar a sala de conferência, Zaffaroni foi seguido, como um ídolo popular, por mais de cinquenta participantes do evento, tendo às mãos, cada um, um exemplar de um livro de sua autoria, em busca de um autógrafo.  Zaffaroni, sem surpresa, vez que, por onde anda, é recebido com o mesmo entusiasmo e assédio, vendo aquela fila de fãs em seu encalço, todos ávidos por um autógrafo, e sem encontrar, no primeiro momento, um lugar para sentar, não se fez de rogado: sentou numa almofada, no hall do hotel, e passou a distribuir autógrafos, colocando os livros sobre as pernas, num evidente desconforto, recepcionando, com carinho, atenção e humildade, os fãs brasileiros.

Essa cena me remeteu a outro evento igualmente inusitado, mas pelo lado negativo. Lembrei-me de ter encontrado, certa feita, um advogado pelos corredores do Tribunal de Justiça, já próximo do meu gabinete, com uns memoriais às mãos. Aproximou-se de mim, de forma humilde e respeitosa. Indagou, então, se poderia me entregar os memoriais ali mesmo, no corredor onde nos encontramos.

Fiquei surpreso com a pergunta e questionei o porquê de tanto embaraço ante uma situação tão corriqueira.  Ele me respondeu, constrangido, que há alguns minutos tentara fazer o mesmo em relação a um(a) colega, mas que recebera em troca uma descompostura, uma reprimenda. Segundo ele, o(a) colega entendeu a abordagem no corredor como um desrespeito à liturgia do cargo, embora, registro, não tivesse usado exatamente  essa expressão.

 Conforme se pode observar, enquanto Eugenio Raúl Zaffaroni, reconhecido mundialmente pela excelência de sua obra, destacado integrante da Corte Suprema da Argentina, conferencista de renome mundial, senta-se praticamente no chão, no hall de um hotel de luxo, de terno e tênis Nike, para brindar os seus leitores com um autógrafo, há quem se julgue tão importante, a ponto de tratar com descortesia um advogado, apenas porque ousou entregar peças de um memorial nos corredores de um Tribunal, certamente por entender que o advogado deveria pedir uma audiência para essa finalidade.

Aos que pensam e agem assim, recomendo uma dose diária de Eugenio Raúl Zaffaroni, logo ao amanhecer, antes, portanto, de se deslocar ao trabalho, durante trinta dias. Persistindo os sintomas, procure um médico, de preferência um que saiba cuidar das coisas da mente.

Esclarecimento

Há muito tempo não tenho alimentado este blog. Todos lembram que no último post anotei que deixava a ribalta, isto é, deixaria de expor as minhas reflexões.

Pois bem. A despeito dessa decisão, a despeito de ter deixado de alimentar o blog, observo que todos os dias muitos leitores continuam acessando as suas páginas, inclusive com comentários e pedidos de informações.

Em face disse, decidi fazer uma concessão: vou publicar, aqui também, a crônica que publico, originalmente, no Jornal Pequeno. Com isso, permitirei que os leitores do meu blog, sobretudo os que moram em outras cidades, tenham acesso às minhas reflexões quinzenais.

Todavia, adianto: não tenho condições de alimentar o blog como fazia antes. Me limitarei, pois, a veicular a crônica a que me reportei, em atenção e respeito àqueles que insistem em prestigiar as páginas deste blog.