AOS QUE AMAM ODIAR

O contraditório – ao lado da ampla defesa – é, sem dúvidas, uma das mais relevantes e destacadas conquistas civilizatórias. Logo, dar a chance para que alguém possa se contrapor em face de um argumento ou em face de uma acusação, concretiza um marco civilizatório relevante e necessário de qualquer nação democrática. Nesse sentido, as Constituições democráticas, para garantir a igualdade entre as partes, tão plena quanto possível, preconizam, nos processos administrativo e judicial, o contraditório e a ampla defesa (Constituição Federal do Brasil, artigo 5º. LV)

Mas não só nos procedimentos formais se impõe a observância do contraditório e da ampla defesa. Na vida pessoal, no ambiente familiar, nas nossas relações informais, enfim, é de rigor que se dê ao outro, ainda que seja um desafeto, a possibilidade de se contrapor em face de uma acusação, e de fazê-lo à luz do exercício pleno de defesa, que é exatamente o que não acontece nas redes sociais: uma vez acusado, a condenação, sem defesa e sem contraditório, ocorre inapelavelmente.

Disso resulta que, em vez do contraditório e da ampla defesa ( Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório que brota o exercício da defesa. Pellegrini Grinover, Ada; Scarance Fernandes, Antonio; Gomes Filho, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1992, p.63), tem-se reservado a muitos apenas o sentimento mesquinho da vingança, da imputação irresponsável, do escárnio e da sordidez. Daí que as redes sociais, na sua face mais obscura e perversa, se transformaram em verdadeiras redes de inquisição, ante a precipitada conclusão de que o homem nasce culpado e corrompido pelo mundo (“el animal humano nace culpable; estando corrompido el mundo, basta excavar en un punto culaquiera para que aflore el mal”).

É dever de todos o repúdio à imolação das pessoas em face da ação pérfida e predadora dos haters que habitam as redes sociais, que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam, como se fosse pecado discordar, se contrapor, assumir linha de compreensão diversa, sob a equivocada compreensão de ser possível a construção de uma sociedade plural sem o contraditório.

Falo isso para redizer que o contraditório, tão relevante na construção de uma sociedade plural, não pode e nem deve ser confundido como algo descartável e deferido como um favor. Ao contrário disso, deve ser a todos oportunizado como um exercício da cidadania, quer num procedimento formal, quer nas relações informais, na certeza de que o homem deve ser educado racionalmente para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente (Luís Roberto Barroso).

Importa redizer, para concluir, que num mundo povoado de haters, permeado de notícias falsas, onde se dissemina o ódio gratuitamente, mais do que nunca é preciso ouvir o outro lado, oportunizar o contraditório e a ampla defesa, permitir, enfim, que todo e qualquer cidadão, antes de uma maledicência ser veiculada, arrostando a sua honra, se manifeste, exponha a sua posição e a sua defesa, para que sejam evitados os linchamentos morais tão ao gosto dos odiadores que habitam o hoje descontrolado mundo da internet.

Para usar a expressão do escritor britânico Samuel Butler, é preciso ouvir a versão do diabo. Digo, para completar: mesmo que ele tenha rabo, chifre e tridente ameaçador, é preciso reconhecer a todo cidadão o direito ao contraditório e à ampla defesa, razão pela qual, forte nessas reflexões, cá do meu canto, ressabiado, checo tudo; tanto no trabalho, quanto na vida pessoal, pois não me aventuro a, de forma irresponsável, acreditar na primeira informação, para, em seguida, replicá-la.

É isso.

blog: joseluizalmeida.com

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

NÃO É POUCA COISA

CONVENHAMOS, NÃO É POUCA COISA

Nunca busquei o poder a qualquer custo. Nesse sentido, sempre deixei que as coisas fluíssem. Não me submeto, assim, a qualquer condição para ascender. Contudo, não penso e nem ajo nesse sentido para parecer diferente, já que o normal mesmo é, estando no poder, buscar ascensão, alcançando cargos de direção, para engrandecer o curriculum, ser destacado numa galeria de fotografias ou para receber homenagens, o que não é bem a minha praia; ademais, porque sou carente de dois predicados básicos para qualquer pleito eletivo: simpatia e carisma.

Essa minha posição confronta a teoria segundo a qual todas as nossas motivações e energias não passam de aspirações pelo poder; até mesmo o sexo, o que, segundo essa teoria, seria uma das categorias de poder, “seja porque queremos possuir o corpo de outra pessoa – e, portanto, possuímos a pessoa completamente -, seja porque achamos que, ao possuí-la, impedimos outros de fazê-lo” (Leszek Kolakowki, in Pequenas Palestras sobre Grandes Temas, editora Unesp, p. 12).

Nessa linha de compreensão, Hobbes entendia que o movimento primário de todo ser humano é em direção ao poder. É dele a conclusão: “[…] evidencio uma inclinação geral de toda a humanidade, um perpétuo e incansável desejo de poder após poder, que só cessa com a morte[…]” (apud Martin Cohen, Casos Filosóficos, 2012, p.135).

É compreensível, pois, é à luz dessas menções teóricas – confirmadas na prática -, que muitas energias são despendidas pelo homem na busca pelo poder. Daí que não são poucos os que, obstinados, perseguem o poder de toda forma, despendendo até as forças que não têm. Todavia, a busca do poder não deve levar os postulantes a uma luta fratricida e sem limites, impondo aos contendores, bem ao reverso, o necessário e inefável respeito à sua própria dignidade.

O homem público se credencia para o exercício do poder em face da sua história; daí por que a sua conduta deve, como imperativo moral, ser ilibada, escorreita, imaculada, ainda que a ascensão, muitas vezes, resulte frustrada. Assim pensando, compreendo que não se deve transigir com o erro e com as concessões covardes e pouco republicanas em face do poder.

Faço essas reflexões apenas para deixar consignada a minha especial admiração por Sérgio Moro – não só em face de ter liderado a maior e mais exitosa operação de combate à corrupção que se tem notícias na história do Brasil, como também por não ter se submetido aos caprichos do supremo mandatário da nação para alcançar uma indicação ao Supremo Tribunal Federal, sabido que não são poucos os que, por ela, trocariam a própria dignidade. Digo isso porque ele bem que poderia ter aquiescido com todas as vontades de Sua Excelência para, assim, ficar “de boa” e pavimentar seu caminho em direção à suprema indicação, como vem fazendo André Mendonça, “em ações tão espetaculares quanto ridículas” (Elio Gaspari). Sérgio Moro, ao contrário, com a honradez e dignidade poucas vezes vistas, firmou posição definitiva em face de suas convicções e, com elas inabaladas, abriu mão de sua indicação, no afã de fazer a coisa certa.

Nada obstante a admiração que nutro por Sérgio Moro, como de resto nutrem por ele todas as pessoas de bem cansadas dos desvios de conduta dos nossos homens públicos, anoto que sempre vi, com reservas (cum grano salis, portanto), determinadas posições do ex-juiz, que, como todos nós, errou aqui e acolá, malgrado, reconheça-se, com absoluta preponderância dos acertos, razão pela qual eu não o absolvo de seus pecados e nem o canonizo pelos acertos, impondo-me o dever, todavia, de destacar que, num mundo em que há pessoas capazes de qualquer expediente pelo poder, ele, no particular, como em tantas outras ações, deu um exemplo de rara dignidade ao Brasil: primeiro, ao deixar o Poder Judiciário para servir ao país e, depois, ao abrir mão da indicação ao STF, em defesa de suas convicções pessoais, o que, convenhamos, não é pouca coisa.

É isso.

REDES DE INTRIGAS

Nessas reflexões, volto a um tema candente, sobre o qual já refleti outrora, depois de ter assistido – estupefato, mas sem surpresa – ao documentário O Dilema nas Redes, disponibilizado no serviço de streaming. E o faço levado pelo ambiente de radicalismo que se instalou no Brasil, com campo fértil de intrigas nas redes sociais, de onde despontam, em linhas opostas e inconciliáveis, os radicais de todos os matizes, incapazes de enxergar as virtudes dos que eles elegeram como adversários/inimigos, muitos dos quais destroçados, em sua dignidade e reputação, pela propagação de inverdades.

Antes, antevendo eventual incompreensão em face da minha condição de magistrado, a exigir de mim muito mais cautela e recato na emissão do pensamento, devo dizer que é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideias, que não tenha compreensão do mundo, nem visão da realidade (Eugênio Raúl Zaffaroni, jurista portenho).

À guisa de registro, importa anotar, agora, que desde sempre, ainda nos bancos da Faculdade de Direito, localizada na Rua do Sol, década de 70, exponho, sem receio, a minha visão sobre os mais variados temas, sem nunca ter me permitido o direito à indiferença, por me recusar a ser um juiz asséptico e acrítico.

A verdade é que, compreendido aqui e incompreendido acolá, eu me mostro por inteiro, forte nas minhas inabaláveis convicções, razão pela qual tenho necessidade de expor o meu pensamento, como o faço agora, para dizer que, nos dias presentes, estamos carentes de um juízo de ponderação, de tolerância e de equilíbrio, sobretudo nas redes sociais, que se transformaram, sem olvidar do que elas têm de bom, em verdadeiras redes de intrigas e de propagação do ódio.

Confesso que, nos dias atuais, com tanta perfídia permeando as relações, da qual decorrem as malquerenças que encontram campo fértil nas redes sociais, me incomoda não escrever com mais liberdade, não deixar o pensamento fluir, não dar vazão aos meus sentimentos, disso resultando a compreensão de que os mais equilibrados têm o dever de repudiar a ação malévola e predadora dos odiadores que habitam as redes sociais, “que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam”(cf. Aos que Amam Odiar, in http//joseluizalmeida.com)

Nesse ambiente deletério, e por uma imperativa necessidade de autopreservação em face de ataques iminentes que podem vir de um lado ou de outro do espectro político mais fanatizado, eu me recuso, até, a opinar sobre temas de interesse público, para não dar vazão à paranoia que tomou conta do país, com a malfazeja divisão entre “os de lá” e “os de cá”, que leva os mais radicais a concluírem, sem base factual, que “os de cá”, ou seja, os que se alinham ao seu pensamento, estão sempre certos, e o que dele divergem – “os de lá”, portanto – assim o fazem porque são seres humanos de pouca ou nenhuma virtude; rebotalhos, enfim.

E assim, num ambiente no qual despontam os inconsequentes, tenho percebido que não são poucos os que, assim como eu, optam pela prudência, para, como anotado acima, não estimularem reações heterodoxas, muitas delas manipuladas, dolosa, maldosa e deliberadamente pelos que consomem os serviços das redes sociais.

Na defesa das minhas convicções, sou intenso, sim, mas com limites, máxime nos dias atuais, pelas razões acima expostas. Daí por que, nas minhas reflexões, imponho a mim mesmo um juízo de ponderação que, ao ensejo, concito o leitor a praticá-lo nas redes sociais, para distensionar o ambiente político, pois os discursos de ódio e as fake news são, sim, uma “ameaça à democracia” ( Felipe Campelo, cientista político, da Universidade Federal de Pernambuco), bastando, para essa compreensão, voltar os olhos às manifestações recentes com ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal.

É isso.

DITADORES TAMBÉM CHORAM

Há cronistas que juram de pés juntos que a inspiração para uma crônica é uma “luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente, que acende a mente e o coração (João Nogueira). Confesso que, de minha parte, não recebo as minhas crônicas com a mesma rapidez. Tenho até muitas dificuldades para escrevê-las. É que elas precisam de um fato concreto e relevante para se manifestarem, daí que estou sempre atento aos acontecimentos para que, a partir deles, flua a minha inspiração.

A política nacional, por exemplo, pela ação dos nossos representantes, é, para mim, uma fonte inesgotável de inspiração. Nesse sentido, eu bem que poderia, à falta de outro tema, refletir, aqui e agora, por exemplo, sobre a propalada “nova política”, em face do protagonismo do famigerado “Centrão”, onde habitam os mais fisiológicos homens públicos da nossa pátria. Não devo fazê-lo, no entanto, em face da minha condição de magistrado, na compreensão de que há limites para exposição do meu pensamento.

Aprendi, desde sempre, que não convém a um magistrado expor o seu pensamento sobre qualquer tema; máxime temas sensíveis como os políticos. É necessário prestar vassalagem ao bom senso e à ética, os quais devem ser a bússola a orientar as manifestações públicas de um julgador. Nesse sentido, não convém uma exposição demasiada sobre questões políticas, ainda que eu tenha em linha de conta que o juiz não deva ser um eunuco político.

À luz dos fatos e noutro giro, eu bem que poderia, se a mim me fosse permitido, comentar, com a devida profundidade, a decisão de soltura de André do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello, via liminar, bem assim a contraordem emanada do presidente do Supremo Tribunal Federal. Todavia, da mesma forma, não convém fazê-lo. É preciso, também nesse caso e do mesmo modo, tributar homenagem irrestrita ao Código de Ética.

O certo é que outras tantas condutas dos nossos homens públicos poderiam, sim, levar-me à elaboração de um artigo. Afinal, eles não cansam de surpreender com as suas ações, algumas delas pouco ou nada republicanas; outras, em face da sua relevância, desafiando, tão somente, uma detida reflexão.

Com essas cautelas, vou me deter, portanto, na notícia que mais me chamou a atenção nos últimos tempos, pelo que ela tem de inusitada: o choro do ditador norte-coreano Kim Jong-in, no fim de semana passado, durante o desfile militar em comemoração ao 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, seguido de um pedido de desculpas ao povo coreano, admitindo, num rasgo de humildade, ter fracassado na condução do país em tempos de pandemia e tufões.

Confesso que nem nos meus delírios imaginei testemunhar o choro de um ditador e, no mesmo passo, uma manifestação de humildade desse mesmo ditador. Um ditador vertendo lágrimas perante seus súditos é algo que eu supunha não ser possível, ciente de que são, de rigor, pessoas insensíveis, quase sempre más, que não hesitam em mandar matar, em trucidar um adversário ou um inimigo político para se perpeturem no poder, como registram os fatos históricos.

Dito isso e ao ensejo, importa consignar, para não perder a oportunidade – e aqui faço o registro em minha defesa também -, que pessoas com a feição casmurra também choram. Daí porque não me surpreendi, como o fiz em face do ditador, quando vi o ministro Gilmar Mendes com a voz embargada na despedida de Celso de Mello, da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Os fatos aos quais fiz menção acima deixam uma lição comezinha: o homem, por mais forte que pareça, por mais frio que seja, por mais poder que tenha, ainda que seja uma pessoa destemida, violenta e aparentemente insensível, também chora, seja ele um ditador, um ministro do Supremo Tribunal Federal ou um simples mortal, como o signatário destas reflexões.

É isso.