SOBRE IMPOSTOS, FUNDO ELEITORAL E PRÓTESE

O Estado, para se manter, precisa dos impostos que pagamos. Sem impostos não se constroem hospitais e estradas, por exemplo.
Sem o dinheiro dos impostos, ademais, a máquina do Estado simplesmente não funciona; não se compra sequer gaze para um simples curativo.
Por isso, é justo, é racional que nos cobrem e que paguemos os nossos impostos.
Nesse sentido, e objetivando o bem comum, é natural que a cobrança se faça mediante imposição.
Se é verdade que o Estado não funciona sem os impostos que pagamos, por que então os pagamos com alguma má vontade?
Vou tentar responder a essa questão com apenas dois exemplos do mau uso do dinheiro coletado junto ao cidadão pagador de impostos, os quais, somados a outros tantos, nos levam a um agastamento natural quando somos compelidos a pagá-los.
Mas, antes, retrocedo no tempo, para ilustrar essas reflexões.
Herodes Antipas, o quinto filho de Herodes, o Grande, vinha fazendo tudo para brutalizar e despojar o povo da Galileia de tudo que tinha.
Judas de Gamala se insurgiu contra a cobrança excessiva de impostos, porque, ele sabia, todos sabiam, enfim, serviam mais ao esbanjamento e menos ao interesse público.
Os soldados de Antipas capturaram Judas de Gamala e o crucificaram, tendo antes sido torturado publicamente para que a multidão pudesse testemunhar o seu martírio, presentes ao suplício os seus filhos Jacó e Simão.
As torturas infligidas a Judas de Gamala tinham um claro objetivo, qual seja, lembrar a todos que, gostassem ou não, os impostos tinham que ser recolhidos.
Judas de Gamala foi amarrado nu com as mãos sobre a cabeça e foi açoitado por dois soldados com seus chicotes de cabo curto, cujas três tiras de couro possuíam bolas de chumbo e lascas de osso de carneiro nas pontas, para potencializar o sofrimento.
A cada chicotada, as tiras de couro rasgavam a pele do músculo de Judas de Gamala, enquanto o chumbo e as lascas de osso deixavam feridas profundas, causando hemorragia interna.
O desnudamento e as chibatadas, que antecediam a crucificação, eram uma forma de humilhação, e, de certa forma, mais um exemplo para que as pessoas não se insurgissem contra o pagamento de impostos.
A lei judaica diz que um homem só pode ser açoitado 39 vezes, conforme está escrito: “quarenta menos um”. Mas com os romanos não tinha dessas. A vítima, com efeito, podia ser açoitada incontáveis vezes, até partir para a crucificação.
Judas buscara libertar o povo da Judeia da tributação injusta aplicada por Roma e Herodes, tendo conclamado seus conterrâneos judeus a se erguerem contra os seus opressores, inconformado com a cobrança abusiva e com o mal uso do dinheiro público.
A crucificação, no Império Romano, era, com efeito, a maneira mais dolorida de execução; tão dolorosa que era proibida a prática contra cidadãos romanos.
Decerto que Judas de Gamala não foi o único a se insurgir contra a opressão romana. Como ele muitos lutaram pela liberdade e pagaram com a vida pela audácia; mas foram, também como ele, esquecidos.
Destacado o sofrimento infligido a Judas de Gamala, apenas para registrar que não é de hoje que as pessoas lutam contra o mau uso do dinheiro público arrecadado, retomo à pergunta que fiz no início dessa crônica: se os impostos são tão necessários, por que então os pagamos com tanta má vontade?
Explico a minha compreensão, formulando novas indagações.
Como Judas de Gamala reagiria com a destinação de 3,7 bilhões de reais, dos impostos que pagamos, para o chamado Fundo Especial de Financiamento de Campanha (Jornal o Globo de 12/09), sobretudo ante a ciência de que sobre essa verba, que poderia ser destinada a obras em benefício do cidadão – escolas, hospitais, estradas etc -, o controle e fiscalização são meramente formais?
Num país com tantas carências, com as pessoas mais humildes morrendo nas filas dos hospitais ou jogadas nos corredores desses mesmos hospitais, para ficar apenas no exemplo mais candente, como não se indignar com a destinação dessa verba para o famigerado Fundo Eleitoral, já para as eleições municipais vindouras?
E o tratamento odontológico do Deputado Pastor Feliciano, ao custo de R$157.000,00 (cento e cinquenta e sete mil reais), pago com o dinheiro dos impostos que recolhemos?
Como não reagir?
Como não se revoltar?
Convenhamos, não é para alimentar as extravagâncias das campanhas eleitorais, nem para pagar a prótese do deputado Pastor Marco Feliciano, para ficar apenas nos dois exemplos que escolhi para essas reflexões, que nos sacrificamos para pagar os impostos que pagamos.
Nesse cenário, é mais que justa a minha, a sua, a nossa indignação em face do mau uso do dinheiro público amealhado com o pagamento de impostos.
Diante desse panorama, mais grave que a destinação de três bilhões e setecentos milhões para o Fundo Eleitoral e os R$157.000,00 (Cento e cinquenta e sete mil reais) destinados ao pagamento do tratamento dentário do Deputado Marco Feliciano, é a passividade com que a população recebe notícias desse jaez, muitas vezes veiculadas sem grande destaque na imprensa, como se fosse algo natural, para, em seguida, cair no esquecimento.
É claro que todos temos consciência cívica de que devemos pagar os nossos impostos. Mas é justa, da mesma forma, na mesma medida e com essa mesma consciência cívica, a nossa indignação com descalabros dessa ordem, que, cá do meu canto, recebo como uma afronta, por isso mesmo digna de registro, ainda que sem nenhuma consequência prática.
É isso.

COM OS PÉS NO ATRASO

A inspiração para essa crônica veio da obra monumental de Lilian Schwarcz Moritz e Heloisa M. Starling, Brasil: Uma Biografia.

Segundo as mencionadas autoras, em passagem que entendi inspiradora, o viajante Louis-Albert Gaffre contava que, após a abolição, as negras, de posse de pequenas economias, compravam calçados, acessórios que lhes eram até então interditados.

Segundo o mencionado viajante, a procura desses verdadeiros ícones da liberdade se revelou uma decepção. É que os pés outrora descalços, calejados, acostumados ao contato direto com o chão, não aguentaram “tanta modernidade”.

Noticiam as autoras que as testemunhas da época relatam ter observado, tanto nas ruas da cidade quanto no campo, negras carregando pares de calçados não nos pés, mas apoiados nos ombros, como bolsas a tiracolo ou troféus. Mas a liberdade, de toda forma, significava o arbítrio de poder comprar e o usar o que se quisesse, e de ter nome e identidade.

Em face do funcionamento absolutamente discriminatório e seletivo – irritantemente seletivo e discriminador -, das instâncias persecutórios brasileiras e das ações dos nossos representantes no Congresso Nacional, é possível estabelecer um paralelo dos dias presentes com a situação fática acima descrita, para dizer que, em terras brasileiras, estamos condenados a viver no atraso, condenados a carregar sobre os ombros os maiores sintomas desse subdesenvolvimento, em face da nossa proverbial tendência a privilegiar as classes mais favorecidas, punindo-as apenas excepcionalmente, contaminadas que estão as instâncias de controle e de investigação pelos vícios do passado que as impedem de cumprir bem os seus objetivos, contando, lamentável dizer, com o beneplácito da maioria dos nossos representantes.

É dizer, em terras brasileiras, quando se trata de punição em face de um mal feito, as instituições persecutórias se apresentam, ainda nos dias presentes, com os mesmos vícios que as tornaram – e as tornam – desacreditas na sociedade; como os escravos libertos a que me reportei acima, as instâncias de controle têm os pés fincados num período que relutamos em ultrapassar.

A verdade é que ainda não evoluímos, ainda não alcançamos nenhuma maturidade nesse sentido. E pelo fato de ainda não termos ingressado na modernidade, vivemos com os pés fincados no passado de impunidade, atraso que pode ser potencializado em face da pretendida lei de Abuso de Autoridade no aguardo de manifestação do Poder Executivo.

Nesse cenário, as instituições persecutórias não evoluem, estabelecendo contato direto e exclusivo com a periferia criminosa, salvante um ou outra exceção, bastando, para confirmar o que digo, fazer um levantamento das ações penais em curso, dos encarcerados provisórios jogados em nossas masmorras e dos condenados mantidos segregados nas penitenciárias, com a consagração de um estado de coisas inconstitucional que a ninguém parece incomodar, muito menos aos graduados representantes do povo, cujo exemplo mais evidente de tentativa de perpetuação da impunidade da classe de cima é o projeto que tipifica os crimes de Abuso de Autoridade, ou Estatuto do Criminoso, como jocosamente tem sido chamado o mencionado projeto.

Aqui e acolá, admitamos, há uns poucos atores flertando com a modernidade, verdadeiros heróis – por isso mesmo abespinhados pelo sistema – que insistem na busca pela modernidade, para usar a mesma expressão do viajante Louis-Albert Gaffre; que sonham e lutam, quase sempre embalde, para que a lei seja destinada a todos.

Nesse panorama, é como se ainda andássemos com os pés no chão, como andavam os escravos de antanho. E sempre que tentamos evoluir, calçando os sapatos da modernidade, somos surpreendidos com um retrocesso, como se vê em face do Projeto de Lei antes mencionado, que, se sancionado, nos levará, inapelavelmente, a colocar, metaforicamente, os sapatos sobre os ombros, como a nos advertir que ainda não é chegada a hora da liberdade, do tratamento igualitário entre os destinatários da persecução criminal.

Definitivamente, as instâncias persecutórias só têm os olhos voltados para os mais pobres, para os quais destinam todo o seu rigor, na mesma medida com que demonstram, por seus agentes mais destacados, a sua parcimônia e leniência quando se trata dos mais aquinhoados, protegidos, por ação ou omissão, das ações de agentes públicos inescrupulosos e sem compromisso com o tratamento igualitário preconizado em nossa Carta Política.

Nós não nos libertamos – e nem temos perspectiva de nos libertar – de um sistema punitivo historicamente discriminador, situação que se agrava com o famigerado Projeto de Lei antes mencionado.

Nesse cenário, triste admitir, ainda trilharemos por muito tempo, em face de tudo que tenho testemunhado ao longo de mais de trinta anos nessa lida, com os pés descalços, calejados, sem perspectiva de alcançarmos a modernidade.

É isso.