O dever que temos de suturar as rapturas produzidas pela desinteligência humana

A sociedade está ávida por  punição. Noticia-se a prática de um crime e logo vêm as manifestações populares clamando por punição exemplar aos infratores. Se o infrator for integrante da classe social mais favorecida, a cobrança se faz muito mais tenaz. E nessa cobrança perde-se o senso.

Impende anotar que não há nada de anormal na cobrança por uma punição exemplar aos infratores, como, de resto, na há nada de anormal quando um delito é praticado. Em todas as sociedades é assim. Na nossa não é diferente. Cá,  como em qualquer lugar,  os crimes ocorrem, inapelavelmente.

O que nos distingue, inobstante,  de outras sociedades é a incerteza da punição. Aqui, infelizmente, a impunidade tem sido a regra, sobretudo quando se trata de acusados com boas condições financeiras.

Nós não podemos, todavia, perder a  esperança de  que  o Direito Penal, com sua peculiar natureza de controle social formalizado, tenha a capacidade de suturar as rupturas produzidas pela desinteligência dos homens (Cezar Roberto Bitencourt), sem distinção de posição social, sob pena de fomentar-se a prática deletéria da autodefesa, própria das sociedade mais rudimentares,  e só admita entre nós excepcionalmente.

Infelizmente, ao que vejo e sinto, as instâncias formais de controle social têm agido aquém dos que delas se espera. É por isso que, quando se comete um crime de grande repercussão, almeja-se, equivocadamente, que se puna com brevidade, olvidando-se que  não se pode tangenciar o direito de nenhum acusado, quer esteja na base, quer esteja no ápice da pirâmide social, quer seja primário, quer seja contumaz infrator.

É preciso reafirmar que não se pune apenas para ouvir os apelos da sociedade. Pune-se, sim, quando se tem provas, quantum satis, da existência do crime e de sua autoria. Nem mais, nem menos, ainda que se tenha que suportar a insatisfação dos que querem punição a qualquer custo.

Caso Alessandro Martins

Todos os habeas corpus do já famigerado “Caso Alessandro Martins” foram distribuidos a minha relatoria. Hojé já decidi acerca das liminares. Não posso adiantar os termos das decisões, pois que as partes ainda não tiveram ciência das mesmas.

Devo dizer, a propósito, que, diferente do que se imagina, nenhuma pessoa, de quaquer grau, interveio em favor de quem quer que seja. As únicas pessoas que me procuraram, por dever de ofício, foram os advogados.

Com isso espero deixar claro que as minhas decisões não sofrem influência de quem quer que seja e que, ademais, são todas elaboradas com a sublimação dos preceitos éticos e técnicos.

Fico feliz por poder fazer a afirmação que faço e por poder decidir com essa isenção.

Se é verdade, como se propalou, que Alessandro Martins tem proteção dentro do Tribunal, confesso que, na condição de relator do seu habeas corpus, não vislumbrei, nem de longe, essa proteção.

Os erros que eventualmente cometa, em face das decisões preliminares que exarei, são da minha inteira responsabilidade. Digo isso, para preservar a instituição das maledicências dos que trabalham para desacreditar o Poder Judiciário.

E digo mais: nós não somos um grupo de canalhas, trabalhando em favor de um grupo de privilegiados. Essa generalização que se faz é fruto de pura covardia.

Não se faz cortesia com o direito alheio

É sempre assim: o Tribunal de Justiça, por um dos seus órgãos fracionários (Câmaras Criminais), concede uma ordem de habeas corpus, e o mundo desaba sobre a cabeça dos desembargadores. É como se fôssemos uns insensíveis. É como se, nessa condição, tivéssemos virado as costas para o interesse público. É como se não morássemos na mesma comunidade. E como se estivéssemos à salvo da criminalidade. É como se os nossos filhos vivessem na Suíça ou na Dinamarca. É como se o nosso mundo não fosse o mesmo mundo dos nossos jurisdicionados.

Mas não é bem assim. É preciso muito cautela – e responsabilidade, sobretudo – no exame dessa questão. É preciso olhar a questão com os olhos de bem ver, para que não se cometam injustiças. Nós não somos os seres frios e calculistas que muitos pensam. Não é verdade que não nos importemos com a criminalidade, pois ele, sob qualquer ângulo que se queira ver a questão, atinge a todos nós, indistintamente. Diante dela e em face dela não há ministros, desembargadores, juízes, promotores de justiça ou delegados ou policiais. Somos todos iguais, rigorosamente iguais.

Ao magistrado, tenho dito, reiteradas vezes, não é dado o direito de fazer cortesia com o direito alheio. Ainda que as suas decisões sejam incompreendidas por parcela significativa da sociedade, ainda que, aparentemente, conflitem com o interesse público, o magistrado não pode, só por isso, deixar de conceder uma liberdade provisória a que faça jus o acusado, ou relaxar uma prisão ilegal.

É de relevo que se diga que não se constrói uma sociedade minimamente justa, se ao aplicador da lei não for permite reparar a ilegalidade de uma prisão, com receio do que possa pensar a opinião pública.

Quando um magistrado, de primeiro – ou de segundo grau – decide-se pela liberdade de um traficante, ad exempli, em face da manifesta ilegalidade da sua prisão, está afirmando, no mesmo passo, que qualquer pessoa que se veja em situação similar, poderá se socorrer do mesmo expediente para reparar uma ilegalidade que eventualmente lhe tolha a liberdade de ir e vir. Isso é estado de direito. Isso é exercício de cidadania, que nada tem a ver com o Estado tirânico.

É necessário compreender, nessa linha argumentativa, que uma prisão ilegal só encontra conforto num Estado vingador e/ou perseguidor, o que não é o nosso caso.

Não se pode, à luz dessa constatação, manter preso, provisoriamente, sem uma definição, quem eventualmente tenha tangenciado as leis do estado, apenas porque vivenciamos uma verdadeira guerra civil urbana, com a violência se esparramando pelos quatro cantos das aglomerações urbanas.

É preciso ter em conta que não se repara uma ilegalidade praticando outra ilegalidade. O Estado não pode ser protagonista de ilegalidades, ainda que o agente público que o represente seja incompreendido e, muitas vezes, como se tem visto, até espezinhado.

Nossa geração testemunhou o desconforto, pra dizer o mínimo, de viver num Estado totalitário, para o qual os fins justificavam os meios e no qual viu-se, estupefatos, o abespinhamento das as franquias constitucionais dos cidadãos. Não podemos, por isso, fazer apologia do escárnio às leis, para ser simpáticos à opinião pública.

Não pode um magistrado, num Estado de Direito, ser acossado, desrespeitado, atacado, às vezes de forma vil e covarde, apenas porque cumpriu a lei, apenas porque reparou a ilegalidade de uma prisão. Isso, importa consignar, com a devida ênfase, é intolerância; intolerância que não guarda sintonia com uma sociedade civilizada.

No caso específico da Comarca de São Luis, temos, por força das circunstâncias, concedido, sistematicamente, ordens de habeas corpus a muitos acusados da prática de tráfico ilícito de entorpecentes, sem que a população compreenda as razões do desate, mesmo porque os juízes não têm por hábito sair por aí propalando, nos cantos da cidade, as razões que o levaram a decidir dessa ou daquela forma. Todavia, em face da gravidade da situação, em face das sucessivas concessões de habeas corpus é necessário dizer que assim o fazemos porque a única vara de entorpecentes da comarca está estrangulada, sem condições de julgar os processos a tempo e hora, disso decorrendo que, não raro, há excesso de prazo na ultimação da instrução, excesso que nos compele determinar a soltura de tantos quantos sejam vítimas da prepotência do estado, incapaz, em casos que tais, de julgar em tempo razoável, como preconiza a nossa Constituição.

Importa dizer, para que fica bem claro, que não nos sentimos confortáveis diante dessa situação. Ao reverso, essa situação nos agasta, sobretudo porque entendemos que se deva combater o tráfico de entorpecentes com rigor. Esse rigor, inobstante, não pode ser convolado em arbítrio, em ilegalidades. O magistrado que se compraz em oficializar o arbítrio, pode não estar preparado para o exercício do mister.

Urge, em face da situação caótica em que se encontra a única vara de entorpecentes da comarca de São Luis, que se tome uma providência; providência que passa, necessariamente, pela criação e instalação de, no mínimo, mais duas varas especializadas, sem mais tardança. Como está não pode ficar. Diante desse quadro, a liberdade dos acusados de tráfico será a tônica, ainda que, por isso, sejamos espezinhados por uma parcela da população que, estupefata diante da violência, não consegue compreender por que se prende hoje e se solta amanhã.

No que se refere, especificamente, ao tráfico de entorpecente, a grita é mais estridente porque há um dispositivo na Lei de Drogas que estabelece ser insuscetível de liberdade provisória o crime de tráfico e entorpecentes. Mas isso é um rematado equívoco. A verdade é que o legislador se excedeu nessa questão, a ponto de hostilizar a Constituição Federal. E tanto se excedeu que, hoje, já não se tem dúvidas de que esse dispositivo é inconstitucional, daí que a impossibilidade de concessão de liberdade provisória ao indiciado/acusado por tráfico de drogas é uma falácia, fruto da exacerbação dos nossos legisladores.

A propósito, convém assinalar que eles, os legisladores, pensam, equivocadamente, que basta fazer uma lei para resolver o problema da criminalidade, como num passe de mágica. Tem sido assim. O Estado legislador, nessa questão, tem sido profícuo, conquanto seja avarento em questões outras muito mais relevantes.

A verdade, que não escapa ao olhar mais fugidio, é que basta que o crime repercuta para que, na sua balada, pegando carona na sua cauda, venha, a reboque um projeto de lei preconizando penas mais rigorosas. É como se prisão resolvesse a questão da criminalidade. É como se bastassem leis preconizando penas mais rigorosas para fazer refluir a criminalidade.

Os legisladores, nessa e noutras questões de igual matiz, agem como se dissessem: fizemos a nossa parte, o resto agora é com a Justiça. É dizer: tiram dos seus ombros o peso da criminalidade e o jogam, sem pena e sem dó, nos ombros do Poder Judiciário, a quem cabe a responsabilidade e o ônus da concessão de uma liberdade ou da decretação de uma prisão.

O Estado, todos sabemos, tem por finalidade a consecução do bem comum, que jamais será alcançado sem a preservação dos direitos dos cidadãos. Mesmo quando o Estado intervém com o jus puniendi, tem que respeitar o direito dos seus integrantes, ainda que, repito, tenham tangenciado as leais penais, sabido que, mesmo punindo, não se pode olvidar da dignidade da criatura humana.

Nessa linha de pensar, reafirmo que, diante de uma prisão ilegal, o Estado, por seus agentes, não pode se omitir, ainda que o preço seja a incompreensão dos seus integrantes.

Judiciário maranhense: outra vez na berlinda

O Poder Judiciário do Maranhão está, outra vez, na berlinda. A matéria da revista Carta Capital desta semana é destruidora. Dos seus termos pode-se ver que não escapa ninguém. A minha história, a minha, a sua, a nossa luta, a luta dos que só têm compromisso com a Justiça, de nada vale. Somos todos apontados como instrumentos a serviço do poder dominante em n0sso Estado.

Faço questão de consignar, inobstante, que não aceito ser jogado na vala comum. Não sou canalha. Não sirvo a ninguém. Não amealhei fortunas. Não inscrevi meu nome na história servindo a quem quer que seja. Não escrevi a minha história fazendo bandalheiras.

A minha dedicação, a minha vida tem sido de total dedicação ao Poder Judiciário. Vivo do que ganho. Não uso o poder para dele tirar proveito. O meu gabinete nunca foi utilizado para negócios escusos. Por isso a minha revolta, por isso a minha inquietação com a reportagem, que não preserva ninguém, que não respeita ninguém. Somos todos uns patifes, aos olhos de quem produziu a matéria.

Entendo que se há, no Poder Judiciário do Maranhão, os que estão a serviço dos senhores do Estado, que sejam identificados, em respeito aos que não se prestam a essa finalidade.

Mistérios da toga-repercussão

Repercutiu muito mais do que eu esperava a crônica Ministérios da Toga. Os que eventualmente discordaram das reflexões na crônica emolduradas preferiram o silêncio. Não houve uma só manifestação contestando os termos da crônica, o que enaltece verdades nela contida.

Ao longo do exercício da judicatura amealhei muitos desafetos – todos gratuitos. Nunca fiz nada pra ter inimigos. Ainda assim sei que muitos são os que não me digerem, em face mesmo de eu não ser uma pessoa simpática. É muito provável que muitos desses desafetos imaginem que a crônica foi feita pra mim mesmo. Quem me conhece, entrementes, sabe que posso não ser simpático, mas não sou arrogante como muitos imaginam.

Ao longo de mais de 24 anos na magistratura nunca destratei uma testemunha, nunca tratei com descortesia um advogado, nunca deixei de atender qualquer pessoa que viesse a mim em busca de uma informação.

É claro que tive, aqui e acolá, desinteligências com advogados e promotores. Nada que fosse suficientemente relevante ou que decorresse de mera prepotência. Nada que não fosse, ademais, exceção.

Sei, entretanto, que morrerei estigmatizado pela etiqueta de arrogante, pois somente os que têm a oportunidade de lidar comigo sabem que tudo não passa mesmo de um estereótipo criado para macular a minha atuação como magistrado.

Não é a primeira vez que trato dessa questão. É que me causa indignação ver que os verdadeiros arrogantes, que se escondem sob a toga para espezinhar as pessoas, não são distinguidos como tais.

Envelhecer

Amanhã, dia 02 de julho, completarei 57 (cinquenta e sete) anos.

Posso dizer, por isso, que estou ficando velho.

Digo melhor: estou velho.

Acho-me velho, muitas vezes; outras vezes, nem tanto.

Só sei que eu já aparento a idade de quem tem prioridade nas filas de antendimento.

Se isso é indicativo de velhice, então não tem apelo: estou velho mesmo.

Sei não! Nessa questão tenho agido de forma pendular.

Há momentos que sinto estar velho; há outros que me vejo serelepe, faceiro, todo prosa, como se fora um jovem senhor.

Tudo, porém, são confusões da minha mente inquieta.

Tudo encarado, no entanto, com a maior naturalidade.

Ou não? Não sei. Pode ser que sim; pode ser que não.

Compreendo que só em estar refletindo sobre a questão já evidencia que não encaro a velhice com a naturalidade que quero deixar transparecer.

Tudo é puro mimetismo. Puro disfarce. Dissimulação, às claras. Fingimento, à evidência.

Mas a verdade, a mais sobranceira verdade é que acho que estou velho.

Aquela história de que o tempo parece que não passou, para mim não cola.

O tempo passou, sim.

E como passou!

E como foi rápido!

E como deixou marcas em mim!

Vejo-as por toda parte: no rosto, no corpo – e na mente.

Não me desespero, porém, diante da velhice.

Será?

Nessa questão sou bem resolvido.

Será?

Nem eu mesmo sei por que faço essas afirmações.

Elas parecem falsas.

Não soam verdadeiras.

Eu posso até afirmar que elas são falsas, sim.

Eu não sou bem resolvido coisa nenhuma.

Nessa senda eu sou uma contradição a toda prova.

Eu quero viver o tempo que for para viver. Nem mais, nem menos.

Só quero viver, sem conflito com o tempo.

Mas eu vivo em conflito com o tempo.

E não sei bem por que.

Ou sei?

Não esqueço, entrementes, que foi o tempo que me fez realizar o que realizei.

Pouco?

É verdade.

Todavia, ainda assim, realizei alguma coisa.

Realizei a minha historia, sim.

Irrelevante a minha história?

Para mim, não.

Tempo é tempo e nada se pode fazer para pará-lo.

Eu não posso domar o tempo.

Quisera poder domar o tempo.

Pra quê?

Nem eu sei, sinceramente.

Se domasse o tempo não saberia o que fazer com ele.

É melhor mesmo que ele flua à solta, sem embaraços, sem impedimentos.

E que cada um saiba viver o seu tempo, o seu momento, a sua história.

O certo mesmo é viver e ver o tempo passar.

O hoje será o ontem e o amanhã, será o hoje.

E nós, se possível, viveremos para o porvir.

Eu vivo a perspectiva do que virá.

Acho que vivemos dessa expectativa.

Até quando?

Não sei. Não sabe ninguém.

Quisera poder saber.

Olho-me no espelho e quase não me reconheço.

O que eu fiz com a minha juventude?

O que fizeram com a minha juventude?

Como, agora, voltar no tempo?

Impossível, bem sei.

Mas não custa elucubrar.

Não custa pensar.

Pensar não faz mal a alma.

Mas pode, sim, magoar, fazer sofrer – às vezes, desnecessariamente.

Pode, noutro giro, ser uma energia positiva.

Pensando, volta-se no tempo.

Voltando no tempo, belas lembranças da minha juventude envolvem a minha mente.

Que seria de mim se não tivesse a capacidade de pensar, de reviver o tempo passado – até onde é possível, em face da minha (pouca) lucidez.

A barba encanecida, a pela flácida, a barriga proeminente, o andar agora lento, a insônia, a saudade candente e lancinante do que vivi e usufrui dão a exata dimensão do passar do tempo – tempo que a tudo destrói, mas que também, contraditoriamente, é capaz de sarar as feridas.

O tempo passou – e passa – inclemente.

Insano é quem não se dá conta dessa realidade.

Eu quero ter a consciência de ter envelhecido, para, nessa condição, conduzir a minha vida, até onde o tempo permitir.

Velhinho capeta, embusteiro, criador de caso, não sou – não quero ser.

Não sei ser assim. Eu só sei viver em paz.

Velhinho simpático? Também não.

Se não fui simpático na juventude, é muito pouco provável que o seja na velhice.

Mas eu tenho arroubos de simpatia, sim – espasmos de simpatia, posso crer.

O que fica de lição nessas reflexões é que, se não podemos parar o tempo, que aprendamos, com o tempo passado e vivido, a respeitar as diversidades – e as adversidades, sobretudo.

Olho, mais uma vez, para o meu corpo e vejo que não cuidei de mim como deveria.

Não cuidei da matéria – e nem sei se cuidei da alma.

Quisera, sim, voltar no tempo.

Faria muitas coisas diferentes, se pudesse fazer o tempo voltar.

Diferente dos arrogantes, eu admito, sim, que faria muita coisa diferente.

Essa história de que eu faria tudo outra vez, comigo não cola.

Eu faria só parcialmente o que fiz.

Eu, no mínimo, faria a mim as concessões que não fiz.

Daria a mim a oportunidade que dei aos outros de repensarem os erros, de corrigirem a direção.

Eu, muitas vezes, fui rude comigo mesmo. Desnecessariamente, por pura birra. Insensatez, posso dizer.

Exigi de mim muito mais do que deveria.

Nessa questão estive próximo da irracionalidade, pensando ser racional.

Eu sou, sim, esse ser contraditório que as palavras desnudam.

A obsessão de acertar, de ser correto num mundo conturbado como o nosso, me fez envelhecer mais rapidamente ainda.

Agora, não tem mais jeito!

O meu futuro é agora.

Agora é viver.

Brincar de viver, se possível for, já que não posso viver brincando.

Eu até poderia viver brincando, não tivesse feito opção por uma austera forma de ser e de viver.

Olho em volta e, às vezes, não me reconheço.

Abro um álbum de fotografias e me vejo ali: vinte, trinta, quarenta anos atrás, em plena juventude, juventude que não sei se aproveitei, pois o meu espírito envelheceu muito rapidamente, em face das circunstâncias da vida.

A verdade é que tive que me tornar adulto antes do tempo.

Agora, estou eu aqui: velho, quase velho, com o corpo de velho, com o andar trôpego, com as juntas doloridas.

Doem-me as costas, os joelhos, os cotovelos.

Dói-me quase tudo. Mas não me dói a alma.

Tudo isso é conseqüência do tempo transcorrido.

É a vida de quem envelheceu, sem saber envelhecer, sem se cuidar, sem pensar no porvir, na dimensão que deveria ter pensado.

Envelheci, sim.

Todavia, envelheci com dignidade.

Eu não carrego – ou não deveria carregar – a velhice como um castigo; antes, sinto-me lisonjeado – ou deveria, pelo menos – em ter envelhecido, em ter podido ver meus filhos crescerem, estando ainda em condições de prepará-los para o mundo.

Olho para trás e vejo a longa estrada percorrida.

Nessa estrada deixei parte dos meus sonhos.

Nessa estrada construí a minha história.

Nessa estrada consolidei a minha personalidade e me preparei para enfrentar o mundo e suas contradições.

Ou melhor: imaginei ter me preparado para enfrentar e entender o mundo.

Concluo, agora, que ainda falta muito.

Agora, talvez seja tarde demais.

CNJ não pode promover remoção de juiz

POR CESAR DE OLIVEIRA

O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar para anular a remoção do juiz titular da 1ª Vara Cível da Comarca de São João Del Rei, determinada pelo Conselho Nacional de Justiça. Segundo o ministro, esse tipo de decisão cabe ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e não ao CNJ. Até a decisão final no Mandado de Segurança, o juiz permanece no cargo.

O pedido da liminar foi feito pela Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis).

Para justificar a decisão, o ministro disse que quando se trata de processos disciplinares de juízes e membros de tribunais é preciso esgotar a atuação de origem, porque conforme o inciso VIII do artigo 93 da Carta da República, “cabe ao tribunal, de início, o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, observado o voto da maioria absoluta”.

Marco Aurélio alega que houve “queima de etapas incompatível”. O CNJ afastou o juiz, a partir de um requerimento do Ministério Púiblico do Estado de Minas Gerais, sob a alegação de prática de conduta incompatível com os deveres funcionais, após a Corregedoria-Geral de Justiça de Minas Gerais ter aplicado pena de advertência ao juiz. De acordo com o conselho, o juiz foi punido por colocar arma de fogo em cima da mesa, na sala de audiências do foro da Comarca de São João Del Rei, após ser ofendido verbalmente pelo promotor de Justiça eleitoral.

“Os demais temas, ligados ao mérito da decisão do Conselho Nacional de Justiça, hão de ser examinados caso ultrapassado o vício de procedimento, a óptica segundo a qual deu-se, na espécie, verdadeiro atropelo, substituindo-se o Conselho ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Registro concorrer o risco de manter-se com plena eficácia o quadro ante o implemento da providência determinada pelo citado Conselho – a remoção do magistrado, titular da 1ª Vara Cível da Comarca de São João Del Rei”, concluiu o ministro Marco Aurélio.

Leia o voto no Consultor Jurídico

Mistérios da toga

O artigo que publico a seguir foi veiculado na edição de hoje, do Jornal Pequeno. Leia:

“Eu tenho tentado entender o ser humano. Essa tem sido a minha obsessão. O primeiro ser humano que tentei entender foi o meu pai, sem conseguir, entrementes. Depois, na condição de advogado, de promotor de justiça e de magistrado, tentei, com sofreguidão, conhecer o ser humano que se esconde sob a toga. São mais de 30(trinta) anos e ainda não consegui desvendar os ministérios da toga. Não consigo compreender, por exemplo, por que um homem, igualzinho a nós outros, quando coloca uma toga sobre os ombros, se transforma – às vezes, radicalmente.

A metamorfose de alguns sob a toga me impressiona muito! Basta, por exemplo, assistir a uma audiência e ver-se-á um homem comum se transformar, abruptamente, num semideus – na imaginação dele, claro – , ao colocar a toga sobre os ombros. Basta ir a uma sessão de um Tribunal – qualquer Tribunal, de qualquer lugar, de qualquer estatura – para, da mesma forma, ver-se a transformação se operando, de forma inclemente e assustadora.

O homem comum, de súbito, como num passe de mágica, sob a toga, se transforma diante dos olhos estupefatos dos circunstantes. O ser humano, antes cordato, afável, tratável, humilde, se põe a toga sobre os ombros, pronto!, não é mais o mesmo. Para lidar com ele, pacificamente, sem receber uma reprimenda, uma descompostura pública, tem que medir as palavras, pois que já se transformou no mais intratável dos mortais.

Desses togados há os que não suportam a diversidade de opiniões. Todos têm que pensar como ele pensa. Num colegiado, então, a coisa é mais séria ainda. Quem ousa discordar dele, ganha a sua antipatia, que, não raro, resvala para grosseria, tendo a antecipá-la o indefectível Vossa Excelência, para dar um ar solene a incivilidade.

Esse tipo de togado, inebriado, arrebatado, exaltado pela toga, deseja, tenazmente, que todos sigam a sua linha de raciocínio, como se num colegiado todos fossem obrigados a pensar de forma linear, ou melhor, como ele pensa. Como se um colegiado não fosse o lugar apropriado para a diversidade de opiniões, para o exercício da dialética.

Esse tipo esquisito, sob a toga, se julga proprietário da verdade. Divergir? Ele pode; os outros, não. Você pode até ousar discordar das teses dele, mas saiba que a prevalente, a mais apropriada, a que mais se amolda ao tema é a dele. A tese que mais se ajusta ao caso sob análise é, enfim, propriedade dele e de mais ninguém. Ele não admite partilhar a verdade. A verdade é domínio dele. Domínio absoluto, registre-se. E não ouse dissentir, porque ele vai entender a dissensão como uma afronta.

Inteligente? Só ele. Trabalhador? Ninguém faz tanto quanto ele. Estudioso? Só ele abri livros. Decisões esmeradas? Só ele as elabora. Discernimento? Só ele tem. A palavra final? Tem que ser a dele. A posição prevalecente? Se não for a dele, faz muxoxo, faz beicinho, deixa o ambiente, divaga, pragueja, deixa o interlocutor falando sozinho, sai de cena, se isola, para, no isolamento, diante do espelho, na tentativa vã de se convencer de que é o melhor, indagar: espelho, espelho meu, tem algum togado mais inteligente do que eu?

É triste, mas é verdade. Eu já tinha visto esse filme nas últimas fileiras de uma sessão; hoje, vejo esse filme de uma posição privilegiada.

Claro que não me refiro a todos os togados. Há, sim, os que não mudam. Conheço muitos que professam a humildade, sem vacilo. Esses não mudam. São sempre os mesmos homens – com toga ou sem toga. São exemplo de humildade, de sensatez e tolerância. Mas esses, por óbvias razões, não estão a merecer de mim nenhuma reflexão, nenhuma menção.

Tenho dito, em incontáveis escritos, que o exercício do poder, ou de qualquer parcela de poder, exige de todos humildade, como, de resto, está a exigir a nossa convivência com o semelhante.

O homem que tem sob as suas mãos uma parcela relevante de poder, tem que ser mais humilde que qualquer outra pessoa; não pode, definitivamente, ser arrogante, pois essa arrogância o levará, inexoravelmente, ao desatino.

O arrogante, o que pensa que sabe tudo, o que se julga dono da verdade, o vaidoso ao extremo, o irritadiço, o descortês, o excessivamente sensível, o narcisista, enfim, pode ser qualquer coisa, mas não está preparado para o exercício do poder, máxime se o naco de poder que tem lhe autoriza julgar o semelhante.

O exercício da judicatura, por exemplo, deve ser concomitante com o exercício da humildade. E ser humilde, tratar bem os jurisdicionados, receber a todos com presteza, ter paciência de ouvir um colega, compreender que num colegiado deve haver discordância, não arrefece a autoridade de ninguém. Muito ao contrário. Quem exerce o poder sem prepotência, se eleva, se fortalece como pessoa e como julgador.

Para julgar o semelhante, para conviver com os congêneres, tem que se despir da vaidade. Tem que praticar a sensatez. Tem que ser humilde, sem que isso signifique tibieza, frouxidão, subserviência, submissão, falta de autoridade, pois a única autoridade que nos dá sustentação, que nos empresta realce, que nos diferencia dos demais, é a autoridade moral.

O homem não é frouxo porque é humilde. O que nos torna menores do que somos, o que nos enfraquece diante do nosso semelhante, o que nos diminui diante do jurisdicionado, é a arrogância e não a humildade.

O homem prepotente – e excessivamente vaidoso – nunca será respeitado pelos méritos que eventualmente tenha. Ele pode até ser temido, pois nunca se sabe o que um prepotente, com a toga sobre os ombros, é capaz de fazer. Respeitado, porém, ele não será. Jamais! Repito: jamais!”