IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

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“[…]Logo, é fundamental, para tipificação do ilícito, que haja dolo e que a vítima empreste o seu dissenso.
Se assim não for, ou seja, se a parte ofendida não emprestar o seu dissenso e se o autor do fato não o fizer conscientemente, com a finalidade, portanto, de satisfazer a sua lascívia ou de outrem, crime de importunação sexual não haverá, pois o consentimento da ofendida ou inexistência de dolo afastam a própria adequação típica do ato praticado.
É preciso, pois, compreender, e faço questão de reiterar, em face dos tempos de intolerância que estamos vivendo, que, havendo consentimento e sem que o autor do fato tenha agido com a intenção de importunar sexualmente a vítima, não se há de falar em contrariedade ou ofensa à liberdade sexual da pessoa[…]”

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Por já ter vivido muito, posso dizer que já vi de tudo um pouco. Portanto, é natural que eu não me surpreenda mais com certas notícias, com certas atitudes, pois, afinal, tenho dito, do homem pode-se esperar qualquer coisa.
Conhecendo, com alguma profundidade, a alma humana, fruto da minha experiência como filho, pai, irmão, avô, advogado, promotor de justiça e magistrado, eu sempre afirmei que, de todos os animais que há sobre a terra, o menos confiável, o mais surpreendente, o mais traiçoeiro, o mais dissimulado é o homem, que por isso mesmo é, para mim, o mais perigoso.
Pois bem, quando eu supunha que nada mais seria capaz de me surpreender em face das ações do homem, eis que a imprensa, no ano passado, noticiou que um determinado indivíduo ejaculou no pescoço de uma passageira de transporte coletivo, de cuja atitude resultou enorme alarido. E eu, que pensava não mais me surpreender com o homem, mais uma vez fui surpreendido por ele.
Como profissional do direito, cuidei de examinar onde se enquadrava, no Direito Penal, a ação libidinosa do referido indivíduo, nitidamente voltada à satisfação da lascívia própria.
Contudo, não encontrei no ordenamento jurídico um enquadramento típico para essa ação degradante e aviltosa; grave atentado à dignidade sexual da vítima, vilipendiada e humilhada por uma conduta repugnante.
Depois desse episódio, ficamos todos sabendo que esse tipo de importunação sexual não era um caso isolado, e que várias mulheres, nos transportes coletivos, já teriam experimentado desconforto dessa natureza, quase sempre caladas, temerosas da reação do seu algoz ou até mesmo para não serem submetidas a constrangimento público.
As vítimas desses abusos, de regra mulheres – mas pode também ser o homem -, como sói ocorrer, ficam impotentes diante do inusitado porque não sabem como se defender, visto que, muitas vezes, por uma ou outra razão, ainda são acusadas de serem responsáveis pela importunação, como se fosse possível justificar esse tipo de conduta condenando a vítima e não o ofensor.
Diante das noticiais em torno do tema, busquei, embalde, no sistema jurídico nacional, como disse acima, o enquadramento típico para esse tipo de ação, sem, no entanto, encontrá-lo com a necessária precisão e com a preconização de pena proporcional ao gravame.
Essa busca inquietante por uma adequação típica finalmente acabou com a promulgação da Lei 13.718/2018, que altera o Código Penal, para inserir o artigo 215-A, que tipifica o crime de importunação sexual, redigido nos seguintes termos:
“Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
A pena cominada para o ato é de reclusão de 1 (um) a 5(cinco) anos, se não constituir crime mais grave.
A providência do legislador ordinário preenche, assim, uma grave lacuna em nosso sistema penal, entregando aos órgãos de controle uma legislação que, se não for capaz de coibir a prática deletéria da importunação sexual, decerto possibilitará que, doravante, o executor de tão degradante afronta à dignidade sexual da mulher seja punido exemplarmente, desde que as vítimas se predisponham a denunciá-los.
Todavia, é preciso alguma cautela ante uma ação que só aparentemente se constitui crime de importunação sexual.
Vou explicar.
O crime em comento tipifica como conduta delituosa qualquer ato de libidinagem e não apenas o já clássico caso da ejaculação.
Nesse sentido, é também considerado crime de importunação sexual o chamado “encoxamento”, que é uma das práticas mais corriqueiras nos transportes coletivos, ou mesmo quando alguém, sem que a vítima perceba, apalpe as suas regiões pudendas (nádegas, seios, pernas, genitália etc).
Mas, atenção!
Não é qualquer contato físico que pode tipificar o crime de importunação sexual, pois que é preciso que o autor do fato o faça dolosamente, de forma consciente, isto é, com a vontade deliberada de satisfazer à sua lascívia ou de outrem.
Noutro giro, é necessário, ademais, para tipificação do crime em comento, que a vítima não empreste a sua aquiescência, o seu consentimento.
Logo, é fundamental, para tipificação do ilícito, que haja dolo e que avítima empreste o seu dissenso.
Se assim não for, ou seja, se a parte ofendida não emprestar o seu dissenso e se o autor do fato não o fizer conscientemente, com a finalidade, portanto, de satisfazer a sua lascívia ou de outrem, crime de importunação sexual não haverá, pois o consentimento da ofendida ou inexistência de dolo afastam a própria adequação típica do ato praticado.
É preciso, pois, compreender, e faço questão de reiterar, em face dos tempos de intolerância que estamos vivendo, que, havendo consentimento e sem que o autor do fato tenha agido com a intenção de importunar sexualmente a vítima, não se há de falar em contrariedade ou ofensa à liberdade sexual da pessoa.
O só fato, com efeito, de uma pessoa estar próxima da outra, como ocorre com frequência nos coletivos, não configura, por si só, o crime de importunação sexual, se faltar ao pretenso criminoso, como efetivamente ocorre na absoluta maioria das vezes, a vontade consciente de importunar sexualmente a vítima.
Ressalte-se, pois, que não é qualquer evento, qualquer situação, qualquer contato físico num determinado ambiente, especialmente nos coletivos, que tipifica o crime de importunação sexual.
Faço a advertência para que as pessoas não saiam por aí denunciando o crime de importunação sexual em face de situações que somente na aparência se configuram crimes, sob pena de, também por isso, se contribuir para transformar a vida em sociedade cada dia mais insuportável.
É isso.

A PERIGOSA SENSAÇÃO DE QUE VALE A PENA TRANSGREDIR

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“[…]É de se compreender, com efeito, que sempre que as instâncias de controle atuam efetivamente, elas não só alcançam os transgressores, como desestimulam os que têm propensão para o ilícito, ante o receio de que possam ser alcançados por elas, o que não ocorre, infelizmente, no Brasil, já que somente uma parcela diminuta, quase insignificante dos transgressores, recebe a devida resposta penal; e quando a recebe, os criminosos sabem que o tempo de prisão é muito pequeno e que, logo, logo, estarão na rua para, mais uma vez, transgredirem a ordem, com grande probabilidade de não serem alcançados novamente pelas instâncias persecutórias[…]”

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Dou início a essas reflexões anotando que elas têm como ponto de partida a minha conclusão de que a lei penal se constitui um imperativo categórico (Kant), que deve ser aplicada como um fim em si mesmo, em face da necessidade de se castigar quem cometeu um delito, na perspectiva de sua utilidade, como medida de defesa social.
Nesse sentido, para cada delito deve(ria) corresponder, efetiva e eficazmente, à imposição de uma pena, como uma resposta ao sentimento de justiça, como uma retribuição mora, que, em face de sua exemplaridade, atuaria sobre o espírito sensível da população, afastando dela a atraente sensação de que é vantajosa a prática delituosa ( Miguel Reale Júnior), como se deu, por exemplo, como a política de Tolerância Zero, sobre a qual me deterei a seguir.
Pois bem. Antes da implantação da política de Tolerância Zero, nos EUA, baseada na Teoria das Janelas Quebradas, Nova York convivia com uma epidemia de crimes. Nesse ambiente, para ficar apenas num dos exemplos mais expressivos, a cidade arcava com prejuízos, só com passagens de metrô, anualmente, da ordem US$ 80,000, 000.00.
Com esteio na Broken Windows Theory, o prefeito de Nova York passou a combater essa situação, colocando policiais à paisana junto às catracas do metrô. Assim é que, quando um grupo pulava as catracas sem pagar, todos recebiam imediatamente voz de prisão. Em seguida, eram conduzidos à delegacia, identificados, revistados, fichados, intimados para depor e então liberados.
O simples fato de pular uma catraca de acesso ao metrô, para eximir-se do pagamento da passagem, não era motivo suficiente para manter alguém detido. Desobedecer a uma intimação para depor, entretanto, autorizava a prisão. Assim sendo, aquele que descumprisse a intimação para prestar depoimento, que precedia a soltura, em uma segunda detenção, agora sim, poderia ser preso e assim permanecer.
A população que pagava regularmente a sua passagem, começou a aplaudir cada vez que aconteciam essas conduções em massa. Daí, foi-se disseminando a compreensão de que valia a pena agir dentro da lei, valia a pena agir corretamente, pois, afinal, a Polícia estava agindo de acordo com a lei e garantindo o seu cumprimento.
Com essa simples medida e com a percepção das pessoas de que valia a pena agir de acordo com a lei – o que não ocorria antes, num ambiente de verdadeira anarquia -, o número de pessoas que pulavam as catracas diminuiu drasticamente, sob os aplausos das pessoas de bem.
Digno de registro é que uma parcela significativa dos que pulavam as catracas portava armas ou drogas, ou estava sendo procurada por crimes anteriores. É dizer, as pessoas que optavam pelo expediente de pular as catracas para não pagar as passagens, já tinham um histórico de transgressão; contudo, não pagar as passagens, para elas, acostumadas a outros desvios de conduta, era apenas mais um desvio, que, decerto, não sendo combatido com tenacidade, servia de estímulo às pessoas com propensão à transgressão.
O certo é que, com o combate efetivo e eficaz de uma pequena transgressão – pular as catracas do metrô para não pagar – as autoridades responsáveis pela política de Tolerância Zero fizeram com que criminosos refluíssem da prática de outras transgressões mais graves, como porte ilegal de armas de fogo e de drogas, assaltos e homicídios, tudo isso em face da percepção de que os órgãos de controle estavam agindo e, principalmente, em face da percepção de outras pessoas potencialmente perigosas de que não valia a pena transgredir.
Com o Tolerância Zero, compreendeu-se que o melhor mesmo é andar de acordo com a lei, a evidenciar que, com a ação efetiva e eficaz das instâncias de controle, desestimula-se a criminalidade, porque as pessoas acabam por se convencer de que o ideal mesmo é andar na linha, é fazer o correto, é não transgredir, não vilipendiar a ordem.
É de se compreender, com efeito, que sempre que as instâncias de controle atuam efetivamente, elas não só alcançam os transgressores, como desestimulam os que têm propensão para o ilícito, ante o receio de que possam ser alcançados por elas, o que não ocorre, infelizmente, no Brasil, já que somente uma parcela diminuta, quase insignificante dos transgressores, recebe a devida resposta penal; e quando a recebe, os criminosos sabem que o tempo de prisão é muito pequeno e que, logo, logo, estarão na rua para, mais uma vez, transgredirem a ordem, com grande probabilidade de não serem alcançados novamente pelas instâncias persecutórias.
De mais a mais, é de se reconhecer que o Brasil sofre de um mal crônico, que estimula a grande delinquência, que condiz com a seletividade do sistema, que só pune mesmo os miseráveis, deixando impune a quase totalidade dos criminosos de colarinho branco, para os quais prisão é apenas uma quimera, uma hipótese excepcional, que de tão excepcional só mesmo o azar os faria ser alcançados. Daí que, tenho dito, a persistir, como ocorre no Brasil, salvo uma ou outra exceção, o combate seletivo e discriminatório da criminalidade não mudará o rumo da nossa história, pois, nesse cenário, não há como se criar a necessária e profilática cultura de que fazer o correto é o melhor caminho.
A continuar as coisas como sempre foram, haverá sempre os que tendem a seguir transgredindo, estimulados pela impunidade, cientes, enfim, de que as instâncias de controle não os alcançarão, porque, afinal, essa é a regra, constatação que se pode inferir em face, por exemplo, das incontáveis fraudes aos processos licitatórios, das quais decorrem significativo desvio de dinheiro público, sem que os fraudadores sejam punidos exemplarmente.
E não o são porque a interpretação que se dá ao comando legal é sempre em benefício dos transgressores e em detrimento do interesse público, pois sempre haverá quem argumente que não houve prejuízo ao erário, em face da aprovação das contas do gestor, ou que, noutro viés, não restou provado o dolo específico, como se uma aprovação de contas tivesse o condão de provar a inexistência de mau uso dos recursos públicos, ou como se, no caso do dolo, algum transgressor viesse a juízo, num rasco de sinceridade, admitir que fraudou uma licitação com o fim específico de desviar dinheiro público.
É de sabença que todo e qualquer transgressor – e falo aqui dos que têm capacidade cognitiva – avalia os riscos e o sucesso de uma empreitada criminosa. Sopesado os prós e os contras, ele se decide pelo crime ou aborta a empreitada.
No Brasil, no entanto, a quase certeza da impunidade, a proverbial tolerância das instâncias de controle, a probabilidade de, ao fim e ao cabo, receber o criminoso uma pena diminuta, e a certeza, finalmente, de que em breve tempo estará em liberdade para novamente delinquir, funcionam, definitivamente, como um estimulo à prática de ilícito e fazem de nós uma nação marcadamente frouxa quando o assunto é combate à criminalidade, a incutir nas pessoas – dentre elas uma enormidade de gestores públicos – a sensação de que transgredir vale a pena.
É isso.

CONVICÇÕES OPORTUNISTAS*

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“[…]Nessa faina oportunista e, sobretudo, inescrupulosa, os postulantes levam a reboque o eleitor, sobretudo o incauto, que vai assimilando o discurso pendular, sem se dar conta que está sendo envolvido em uma artimanha.
Essa demonstração explícita de total falta de convicção dos candidatos é de tamanha envergadura que, do que se vê e se extrai dos discursos, a única convicção que eles parecem ter é a de que, pelo poder, o melhor mesmo é não ter convicção[…]”

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Em notas preliminares – antes, portanto, do tema que elegi para hoje -., vou narrar um fato e fazer um breve registro.
O fato, para ilustrar; o registro, à conta de cautela.
O fato condiz com a minha passagem pela sétima vara criminal; o registro, em face do momento em que estamos vivendo, e em vista da necessidade que tenho de preservar a minha isenção diante de questões políticas.
Primeiro, o fato.
Como juiz da 7ª Vara Criminal convivi com excelentes Defensores Públicos – classe que, pelo zelo e brilho, tem a minha total admiração.
De um determinado Defensor me lembro especialmente por algo que costumava dizer a mim, em face das minhas decisões:
-Posso não concordar com o senhor em muitas coisas, mas reconheço que senhor não surpreende.
Fácil explicar a afirmação.
É que, diante da mesma quadra fática e da mesma conformação jurídica, eu sempre decidia – como o faço até hoje – da mesma forma.
Simples assim.
Não podia – e não pode – ser diferente.
Com essa postura, o juiz prestigia a segurança jurídica e reveste de previsibilidade – e credibilidade, consequentemente – as suas decisões.
É dizer: procuro decidir à vista das minhas convicções.
Sou, enfim, um profissional de convicções, das quais decorrem, às vezes, algumas incompreensões.
Agora, o breve registro.
Não trato de política nos meus artigos.
É o mínimo, aliás, que se espera de quem tem a difícil, árdua e nobre missão de julgar.
Quero ser livre para julgar, sem estar atrelado, preso a uma manifestação imprópria que tenha feito no passado.
Assim agindo, não se poderá apanhar, no passado, uma manifestação da minha autoria que possa colocar em dúvida a minha imparcialidade.
Compreendo que todos nós – magistrados especialmente – devemos ter postura.
É o mínimo que se espera do juiz.
De um juiz se espera, ademais, que seja prudente, que tenha pudor, que seja equilibrado e sensato; esses atributos, decerto, emprestam maior credibilidade às suas decisões.
Pensando assim, ao escrever, escolho temas que me permitam expor o meu pensamento, sem deixar que as minhas preferências aflorem.
Consciente do meu papel e da relevância da palavra, sobretudo da escrita, imponho a mim restrições que não me permitem sair por aí palpitando impensadamente
Não me furto, no entanto, de refletir sobre alguns temas relevantes que permeiam a nossa vida, com o único empenho de instigar, de fazer as pessoas refletirem.
Nesse afã, pretendo hoje expender o meu pensamento sobre algo que tem sido cada vez mais raro, sobretudo entre os que almejam uma outorga popular.
Refiro-me à falta de convicção de muitos candidatos, ou melhor, sobre as convicções de ocasião, as convicções de araque, diria; aquelas que vão sendo apresentadas ao sabor das circunstâncias.
Nesse sentido, observo, com certa descrença, que os candidatos desdizem hoje o que afirmaram ontem, numa atitude arrivista que me leva ao desânimo.
Nessa faina oportunista e, sobretudo, inescrupulosa, os postulantes levam a reboque o eleitor, sobretudo o incauto, que vai assimilando o discurso pendular, sem se dar conta que está sendo envolvido em uma artimanha.
Essa demonstração explícita de total falta de convicção dos candidatos é de tamanha envergadura que, do que se vê e se extrai dos discursos, a única convicção que eles parecem ter é a de que, pelo poder, o melhor mesmo é não ter convicção.
Mudar ao sabor das circunstâncias é o comando, porque, afinal, o que vale mesmo, deve concluir o postulante à outorga, é fingir acreditar naquilo que o eleitor quer que ele finja que acredita.
Nesse cenário, a mim me transparece translúcido que as convicções que dizem ter os candidatos, são, na verdade, apenas a face mais perversa de um oportunismo político que incomoda.
Nesse ambiente, temas relevantes – maioridade penal, pena de morte, tortura, aborto, liberação da maconha, dentre outros – vão sendo, apresentados, geridos, discutidos de acordo com as conveniências impostas pela pugna eleitoral, sem a mínima convicção.
Nesse panorama desalentador, lembro, à guisa de exemplo, que alguns, que outrora tinham a mais firme convicção de que a Lava-Jato era um ambiente de pérfidas arbitrariedades, hoje, por pura esperteza, destacam a sua importância no combate à corrupção.
Ademais, os que outrora usaram de fakes news para delas tirar proveito eleitoral, hoje, constrangidos, e em situação adversa, as abominam com todas as forças de suas “convicções”.
Vou além, em vista do que tenho testemunhado.
Os que ontem renegaram o juiz Sérgio Moro, muitos dos quais o apontavam até como um criminoso digno de cadeia, hoje, “convictos”, enaltecem o seu trabalho, apontando-o como um exemplo de magistrado, reservando a ele apenas críticas pontuais.
Testemunho, ademais, com a mesma inquietação, que os que ontem esbravejavam contra as prisões provisórias e as delações premiadas, hoje, pasmem, pregam, por interesse político, a imediata prisão de desafetos, para forçarem-lhes, quem diria, a aderirem à deleção premiada.
Não param por aí as convicções de conveniência.
Com efeito, os que antes queriam distância das forças de Centro do espectro político, nos dias que antecederam ao pleito que hoje se encerra delas se aproximam e agora veem nelas as virtudes que antes não viam.
Da mesma forma, movidos pelos mesmos sentimentos, os que pregaram outrora contra o Bolsa Família, hoje pensam até em ampliá-la, prometendo o que o orçamento público não poderá suportar.
Com essas e outras tantas manifestações oportunistas, que transformam o pleito eleitoral numa batalha de convicções de conveniência, vamos às urnas eleger o novo presidente da República, na certeza de que, seja qual for o eleito, a sua escolha se dará em face das convicções que ele não tem, mas que, por conveniência, finge ter.
O bom de tudo isso é que essas convicções oportunistas se dão num ambiente democrático, que deve sempre ser enaltecido, cumprindo lembrar, por oportuno, um velho adágio segundo o qual “A cura para os males da democracia é mais democracia”.
É isso.

*Artigo veiculado no Jornal Pequeno no dia do segundo turno da eleição presidencial

INTERDIÇÃO DO PENSAMENTO

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“[…]A verdade é que, nos dias presentes, não se vê, por parte do Estado, interdição de discursos, óbices às manifestações do pensamento, impedimentos às manifestações culturais, conquanto, aqui e acolá, algum controle se mostre necessário, o que não deve ser confundido com censura, nos moldes que testemunhamos nos regimes ditatoriais[…]”

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Reconheço, e acho que sobre isso ninguém tem dúvidas, que vivemos numa democracia, que, por essas paragens, pode não ser a melhor do mundo – às vezes relativizada, às vezes absoluta, algumas vezes ameaçada em face de uma ou de outra ação intempestiva, por razões que não vale a pena declinar neste espaço, porque desbordariam do tema que elegi para este artigo -, mas que, de rigor, é sim, uma democracia, com as imperfeições de toda obra do homem.

Hoje, não se há de negar, podemos dizer – salvo alguma autocontenção, própria do momento em que vivemos, questão sobre a qual me deterei mais adiante -, pela via escrita ou oral, o que nos apraz, o que nos convém, na certeza de que podemos vir a ser responsabilizados pelos excessos que viermos a cometer, pois, afinal, num ambiente democrático podemos muito, mas não podemos tudo. É que há limites, há regras, escritas e não escritas, que nos impõem limites. E é bom que assim o seja. E é bom que todos saibamos disso. Em cada um de nós deve mesmo ser cultivado um espaço de racionalidade.

A verdade é que, nos dias presentes, não se vê, por parte do Estado, interdição de discursos, óbices às manifestações do pensamento, impedimentos às manifestações culturais, conquanto, aqui e acolá, algum controle se mostre necessário, o que não deve ser confundido com censura, nos moldes que testemunhamos nos regimes ditatoriais.

Todavia, paradoxalmente, a intolerância, nos dias atuais, por parte da própria sociedade, em face do que pensamos e externamos, tem funcionado como um limitador da nossa capacidade de pensar e externar o que pensamos, a interditar, ou, pelo menos, limitar a nossa criatividade. É que as pessoas, nos dias presentes, como lembra o ex-ministro Carlos Ayres Brito, confundem faca nos dentes com pensamento afiado.

Nesse ambiente de intolerância, potencializado em face da divisão da sociedade entre os “de cá” e os “de lá”, fruto de um discurso político irresponsável, a gente nunca sabe mesmo, em face da toxicidade do momento, como a nossa mensagem será recebida.

A intolerância que todos nós temos testemunhado é de tal envergadura – sobretudo a que decorre das manifestações odientas que encontram ressonância nas redes sociais – que consegue, sim, interditar as nossas manifestações, nos reprimir, inibindo a nossa capacidade de pensar e de traduzir em palavras o que pensamos.

Nesse panorama, é cediço que, de certa forma, todos nós – pelo menos comigo isso ocorre – , sobretudo os que escrevem para uma parcela relevante da sociedade, estabelecemos os nossos próprios limites, que condizem com o excesso de cautela com as palavras, temerosos das consequências de uma expressão mal colocada, sabido que aquele que lê um texto pode ser o mesmo que, de uma janela, se detém na lama que se esparrama pela rua, em vez de elevar a sua vista para a beleza do céu estrelado.

Nos dias atuais, reafirmo, não há uma ditadura estatal sendo exercida sobre o pensamento, sobre as nossas escritas, sobre as nossas posições em torno desse ou daquele assunto. Isso é fato. Nesse cenário, cada um de nós tem liberdade de dizer o que quiser, de escrever o que deseja escrever, cabendo a cada brasileiro, de outra banda e com efeito, decidir o que quer ler ou o que deseja assistir.

Apesar da inexistência de censura oficial, é preciso convir que há, sim, substituindo-a, no seu lado mais tenebroso, erupções de ódio, que são, a meu sentir, pelas suas nefastas consequências sobre o pensamento e a liberdade de expressão, uma forma de censura protagonizada, importa reafirmar, com espanto e inquietação, pela própria sociedade, a mesma que viveu os rigores da censura estatal no período ditatorial de triste memória.

Nesse cenário desalentador, proliferam, marcada e precipuamente, nas redes sociais, os insultos, as maledicências, a perfídia, os ataques despropositados em face dessa ou daquela posição assumida, a inibir, importa repetir, as mais diversas manifestações do pensamento e mesmo as manifestações culturais, o que, admitamos, é de lamentar, a considerar que o Estado, em boa hora, recolheu as suas armas censórias e que, como anotei no preâmbulo dessas reflexões, vivemos numa democracia, onde, de rigor, a todos os cidadãos deveria ser assegurado, substancialmente, o direito de se expressar como bem lhe aprouvesse, tendo em contrapartida, tão somente, assumir o ônus em face dos excessos que praticar.

Eu mesmo, cá do meu canto, que tenho compartilhado o meu pensamento com um número razoável de leitores, vejo-me, aqui e acolá, me autocensurando, com receio de não saber como vai ser recebida essa ou aquela manifestação, sabido, reafirmo, que vivemos uma quadra de intensa e despropositada intolerância, a inibir a criatividade das pessoas.

Situações como as que temos vivenciado, impondo a nós um comportamento de absoluta cautela – para não dizer autocensura -, em face daquilo que pretendemos dizer em nossos escritos, são inibidoras da nossa capacidade criadora, sobretudo a considerar que, na língua portuguesa, não são poucos os termos abertos, de cuja amplitude de sentido resultam as mais variadas interpretações, muitas delas, dependendo do intérprete, marcadamente maledicentes.

É difícil, num ambiente desses, deixar a liberdade de pensamento fluir. Nesse ambiente perigoso e, às vezes, violento, não há como o pensamento emergir na sua inteireza. E por mais inspirado que seja o articulista, a possibilidade, sempre presente, de ser incompreendido, funciona como uma óbice que não deixa o pensamento vicejar.

Ressalte-se que a triste realidade é que vivemos uma quadra de tamanha insensatez e intolerância que as pessoas só defendem, com unhas e dentes, o direito de o semelhante dizer o que pensa, até o momento em que começam a ouvir aquilo que não querem ouvir.

É isso.

TUDO PARA DIZER QUE EU QUERIA SER J. R. GUZZO

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“[…]Dos analistas, tenho uma especial preferência por Ricardo Boechat, pela manhã, e por Vera Magalhães, à tarde; o primeiro na Bandnews, e a segunda, na Jovem Pan.
Boechat e Vera Magalhães são dois comentaristas na medida certa.
Os dois têm postura, são equilibrados e fazem comentários com base em fatos, mas não são tendenciosos; não brigam com os fatos. Fazem deles a sua inspiração; ajudam-me a compreendê-los.
Mas ouço também os radicais, pois é preciso ouvir os extremos para poder filtrar, tirar conclusões.
Há deles que, de tão radicais, de tão parciais, são risíveis; às vezes, irritantes[…]

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Sou homem de rotina; me satisfazem as coisas simples.
Hábitos comuns os tenho.
Sou assim!
Levo uma vida simples; simples mesmo!
Nada de ostentação; não faz a minha cabeça.
Obsessão pelo poder? Não a tenho. Exerço-o como algo natural em face dos meus ideais, das minhas conquistas.
Meus dias parecem iguais; iguais para quem os testemunha a distância.
Para mim, todavia, a sensação é que estou sempre fazendo algo novo.
Sinto-me a cada dia mais motivado para fazer o que gosto.
Ler um bom romance e assistir a um bom filme, por exemplo, é estar além da rotina, do trivial; é como embarcar numa aventura. Várias, incontáveis aventuras. Nesse sentido, posso dizer que vivo de aventuras; então, não há rotina.
Gosto das coisas simples. Dos ambientes simples. Das pessoas simples.
Todos os meus programas são familiares.
Sou intenso, forte nas minhas convicções; pareço, às vezes, passar do ponto na defesa das minhas posições.
Não sou um fanfarão; um bufão não sou.
Eu nem sei conviver com gabarola.
Inicio o dia, sempre, ouvindo o noticiário radiofónico.
Rádio, para mim, é uma necessidade vital.
Ouvindo rádio eu espanto qualquer tipo de solidão;e mesmo estando só, não me sinto solitário, se estou sintonizado numa emissora de rádio.
Minha paixão pelo rádio é tamanha que ainda sonho comandar um programa de rádio, onde eu possa compartilhar com os ouvintes as minhas inquietações.
Ainda tenho a esperança de comandar um programa de rádio, com uma única condição: liberdade de expressão.
Não assisto, pela manhã, aos jornais televisivos; prefiro ouvir as notícias e as análises políticas nas emissoras de rádios.
O rádio é prático; tenho-o em qualquer lugar, e só preciso ocupar os ouvidos.
Estando em casa, se não estou lendo, estou sempre sintonizado em alguma emissora de rádio.
Com frequência faço caminhadas, bicicletadas e corridas; ouvindo rádio.
Rádio, que é entretenimento para muitos, para mim, é uma quase necessidade; tenho-o por insuperável.
Agora, com a tecnologia, ouço-o no smartphone ou nos tablets.
A Internet exorcizou o chiado, a dificuldade de sintonia.
Não ouço músicas em rádio; gosto de debates, análises políticas, entrevistas etc.
Dos analistas, tenho uma especial preferência por Ricardo Boechat, pela manhã, e por Vera Magalhães, à tarde; o primeiro na Bandnews, e a segunda, na Jovem Pan.
Boechat e Vera Magalhães são dois comentaristas na medida certa.
Os dois têm postura, são equilibrados e fazem comentários com base em fatos, mas não são tendenciosos; não brigam com os fatos. Fazem deles a sua inspiração; ajudam-me a compreendê-los.
Mas ouço também os radicais, pois é preciso ouvir os extremos para poder filtrar, tirar conclusões.
Há deles que, de tão radicais, de tão parciais, são risíveis; às vezes, irritantes.
Por serem radicais, parecem (?) não ter limites. Usam expressões grosseiras, elegem desafetos, são deselegantes, fazem do microfone uma trincheira para desonrar as pessoas que elegem inimigas.
E, o que é pior, muitas vezes brigam com os fatos, para, nessa lida, caírem no descrédito.
Minha preferencia por rádio, sobretudo AM, não tem limites; paixão que começou ainda na minha infância, tentando captar, num transglobe de oito faixas, o som das rádios Globo, Tupi e Nacional, do Rio de Janeiro.
No dia a dia, com a cumplicidade da tecnologia, vou sintonizando, via aplicativo, as mais diversas emissoras de rádio: Jovem Pan, CBN, Bandeirantes, Bandnews, Tupi, Globo, Gaúcha e outras.
Aos finais de semana, dou um tempo às estações de rádio e me debruço sobre os grandes jornais e revistas do Brasil.
Leio a Folha e o Estadão, de São Paulo, e O Globo, do Rio de Janeiro.
Quanto às revistas semanais, leio Época, Veja, Carta Capital e Istoé.
Leios sempre sob o filtro do bom senso, para formar a minha convicção em torno desse ou daquele tema.
Tenho preferência por alguns colunistas: Hélio Schwartsman, Merval Pereira, J. R. Guzzo, Elio Gaspari, Mário Prata, dentre outros.
Os artigos que eu gostaria te ter escrito são os assinados por J. R. Guzzo. Imperdíveis, insuperáveis, absolutos.
Sempre que leio um artigo de Guzzo me dá uma enorme frustração por não ter a menor capacidade de escrever como ele escreve, de desenvolver o racicínio que ele desenvolve, de ser definitivo, absoluto como só ele sabe ser.
Por culpa dele, as minhas maiores frustações enquanto articulista.
Ele é meu norte, meu rumo, meu prumo – e a minha frustração também.
Nele deposito a minha mais benfazeja inveja.
Como articulista, eu queria ser ele.
Mas como não sou ele, vou escrevendo, tentando dizer o que penso, sem a mesma capacidade, sem a mesma perspicácia, sem a mesma inteligência, sem o mesmo descortino, sem a mesma elegância, sem o mesmo brilho.
A cada artigo que escrevo, fica sempre a sensação de que eu podia ter feito melhor. Por isso, depois de publicado, não os leio mais.
Sou o maior crítico das bobagens que escrevo.
Apesar disso, vou insistindo.
Sei que nunca serei um Guzzo, porque me falta e inteligência e cultura para sê-lo.
No entanto, tenho a convicção de que, por ser verdadeiro nas minhas reflexões, mesmo não sendo um José Roberto Guzzo, posso me dar ao direito de persistir expondo as minhas inquietações, sendo pelo menos José.
É isso.

A relativização da moral

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Não são poucos os que passam horas intermináveis navegando na internet flertando com futilidades, bisbilhotando a vida dos outros, fazendo comentários de ódio, assacando críticas acerbas contra as pessoas que elegem desafetas, condenando uns, absolvendo outros, mas sem a mesma disposição para dar uma “espiadinha básica”, como diz o notável Pedro Bial, para saber o que andou aprontando o seu candidato, como ele enriqueceu numa legislatura, os projetos que apresentou, os processos a que responde etc.

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Dizem que o brasileiro é cordato, tolerante, prestativo e cordial. Não digo que não, nem digo sim; eu apenas relativizo, pois, como tudo na vida, não é possível caracterizar um povo, de forma absoluta, tolerante, prestativo e cordial, como, de resto, não se pode dizer, ademais, que somos um povo indolente e malandro. Logo, não é prudente a adoção de conceitos absolutos, que podem guardar um erro de avaliação e, até, uma injustiça.

Quando se diz, por exemplo, que fulano e sicrano são ótimas pessoas, “uma parte de mim pensa e pondera” (Ferreira Gullar, Traduzir-se), sem permitir que a outra parte de mim se perca em delírios, pois, em torno dessas questões, como de tudo o mais que envolva julgamentos, é preciso prudência, sensatez, moderação e equilíbrio.

Todavia, se há uma questão em torno da qual o brasileiro, para mim, é quase imbatível, absoluto, é na sua passividade em torno de algumas questões morais, especialmente em face dos malfeitos dos nossos representantes. Aí sim, sim, somos campeões; não por maldade, mas por acomodação, pura acomodação.
É de impressionar como o brasileiro parece não se importar com o passado de seus representantes; e, em face desse desleixo, continua elegendo os mesmos que, uma vez eleitos, persistem, sem nenhum constrangimento, à vista de todos, na defesa dos seus interesses.

A internet está presente em nossa vida. Todo mundo tem um smartphone. Há sites de toda ordem fornecendo informações sobre os candidatos às eleições vindouras: www.unidoscontraacorrupção.org.br; www.vigieaqui.com.br; www.capitaldoscandidatos.com.br; www.políticos.org.br; www.poderdovoto.org; www.publique-se.org.br, dentre outros.Apesar disso, o brasileiro – reconhecidas as exceções – prefere replicar fake news, defender candidatos fichas sujas, destilar ódio contra as pessoas que elege como inimigas, como se vivêssemos numa sociedade conflagrada.

O brasileiro podia, se esse fosse o seu desejo, tirar um minuto do seu tempo para se informar sobre a vida pregressa dos candidatos, e, assim, fazer uma boa escolha, para salvar o nosso país, para que não seja entregue aos mesmos, aos que só trabalham na defesa dos seus interesses pessoais.

Não são poucos os que passam horas intermináveis navegando na internet flertando com futilidades, bisbilhotando a vida dos outros, fazendo comentários de ódio, assacando críticas acerbas contra as pessoas que elegem desafetas, condenando uns, absolvendo outros, mas sem a mesma disposição para dar uma “espiadinha básica”, como diz o notável Pedro Bial, para saber o que andou aprontando o seu candidato, como ele enriqueceu numa legislatura, os projetos que apresentou, os processos a que responde etc.

Além disso, ninguém indaga, a ninguém causa estupefação, por exemplo, que um candidato gaste dois, dez, vinte milhões para se eleger deputado ou senador, por exemplo, ciente de que esse valor ele não receberá de volta licitamente ao longo do exercício do mandato.

É que nesse estado de letargia, ninguém questiona como muitos dos nossos representantes, num único mandato, quadruplicam, quintuplicam, a sua fortuna, pois isso parece não interessar a ninguém.

Diante desse quadro desalentador o povo parece embriagado, inerte, incapaz de reagir, numa passividade enervante. Pior que isso, não são poucos os malfeitores que sujaram a sua biografia no exercício do poder, que, ainda assim, estranhamente, têm seguidores tenazes, defensores fanáticos, admiradores apaixonados. Mais grave ainda: defensores entre pessoas de uma elite intelectual, capaz de defender um farsante qualquer como não seria capaz de fazer em face de sua própria biografia, numa relativização da moral, o que chega a incomodar.

Em face de tudo que nós testemunhamos, de tantos desvios de conduta, de tanta perversão, causa-me inquietação, sim, a passividade do povo brasileiro. Causa em mim maior inquietação testemunhar que pessoas que admiramos – pela postura moral, pela obra intelectual que nos legaram, pela história que escreveram, por tudo que representaram no passado, verdadeiros ídolos da minha geração, que combateram o bom combate – fecharem os olhos, fingirem não enxergar os desvios de conduta de certas figuras públicas, persistindo intransigentemente em sua defesa, dando um mau exemplo às gerações mais novas, que ficam sem entender o que significa mesmo a moral do brasileiro.

Mas esse apego, essa defesa intransigente de certas personalidades da nossa história, como se elas tivessem um passado imaculado, não é privilégio dos brasileiros aos quais me referi acima.
Em A mente Imprudente-Os Intelectuais e a Atividade Política, tradução Clóvis Marques, ed. Record, 196 págs, o sociólogo Mark Lilla, da Columbia University (EUA) também tentou entender a estranha postura de mentes brilhantes por certas figuras e fatos desprezíveis da nossa história.

Carl Schimitt, por exemplo, especialista em direito, até hoje muito estudado, defendeu o nazismo, um estado sem direito para boa parte da população. Martin Heidegger, filósofo dos mais respeitados, leitura obrigatória em qualquer curso que pretenda ser levado a sério, entrou no partido nazista e cortou relação com colegas judeus, por razões tão difíceis de entender quanto a sua filosofia. Walter Benjamin manteve-se fiel a Stalin, mesmo quando a maioria dos pensadores de esquerda passou a migrar para a sombra mais confortável de Trotski.

O mesmo autor, no mesmo livro, cita, ainda, Alexandre Kojève, Michel Foucault e Jacques Derrida, os quais também adotaram posição incompreensível em face de determinadas personagens e fatos históricos que a muitos de nós causam tanta inquietação e, até, revolta.

Definitivamente, não tenho pendores pare entender o ser humano.

Mais difícil ainda é entender a passividade e a capacidade de muitos brasileiros de relativizarem a moral.

É isso.

LIVROS, POR QUE NÃO DOÁ-LOS?

Vou iniciar este artigo narrando um fato cujo protagonista fui eu mesmo.
Decerto que, pela minha proverbial deficiência de memória, posso não ser fiel, em algum detalhe, ao que efetivamente ocorreu. No entanto, o que narrarei será fiel, no essencial, aos fatos.
Pois bem. Em 1974, cursando o segundo período de Direito, na antiga faculdade da Rua do Sol, tive a honra de ser aluno de um dos mais conspícuos professores de Direito Civil daquela faculdade, o qual se destacava no meio jurídico maranhense pela sua inteligência e capacidade intelectual; àquela época, já provecto.
Determinado dia, por eleição dos meus colegas de equipe, fui instado a fazer a defesa oral de um trabalho que realizamos na área do Direito Civil, sob a orientação do mestre.
Cumpri o ritual, com a mesma naturalidade com que defendo as minhas posições no TJ; sempre com muita ênfase, com alguma eloquência, a deixá-lo curioso quanto a minha pessoa.
O tempo passou, e fomos submetidos a novo teste – desta feita prova escrita – pelo eminente professor, o qual, em face da defesa oral que fiz e a qual me referi acima, estava atento ao meu desempenho na prova discursiva, segundo me revelou depois.
No dia da entrega das notas, lembro como se fosse hoje, o eminente professor não entregou a minha na sala de aula, como fez com os demais colegas; pediu que eu fosse à secretaria para ter uma conversa com ele, o que me deixou, claro, apavorado.
Achei tudo isso muito estranho. Fui ao seu encontro extremamente preocupado, pois, afinal, eu era apenas um aluno mediano, sem nenhum destaque, estudando com livros emprestados, enfrentando toda sorte de dificuldades; tudo me fazia crer que eu não tinha me saído bem na prova discursiva.
Chegando à secretaria, o professor me chamou em particular e me disse, se não com essas palavras, mas muito próximo disso.
-Senhor Almeida, lhe chamei aqui para lhe ajudar. Observei, na defesa oral do trabalho de sua equipe, que você articula bem as palavras. Observei, no entanto, na sua prova escrita, que você não tem pendores para a escrita. Escreve mal, muito mal. Precisa melhorar muito. Acho que lhe falta leitura. Aconselho-o, doravante, a ler. Leia bastante. Leia Machado de Assis, sobretudo. Não esqueça de Josué Montelo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo etc. Isso vai lhe ajudar. Falo para o seu bem.
Agradeci, constrangido, os conselhos que ele me deu. Daí em diante, passei a viver um dilema. Eu não tinha livros para ler e nem tampouco meios de adquiri-los. Busquei a Biblioteca Pública e a Biblioteca da Faculdade.
E assim, com dificuldade, fui buscando acesso aos livros. Lia de tudo. Pedia emprestado e devolvia no dia aprazado, para ter direito a fazer novos empréstimos.
Transformei-me num obstinado, num voraz leitor, conquanto tivesse dificuldades para assimilar alguns conteúdos mais sofisticados na linguagem, motivo pelo qual eu anotava tudo.
Em cada livro que eu lia, eu via o rosto do mestre me advertindo. Não bastasse a falta de convívio com a literatura, eu era também desinformado; cuidei de me informar.
Na época, vivíamos o período ditatorial; quase tudo censurado, o que trazia uma dificuldade enorme de acesso a informações. Felizmente, existiam os noticiários veiculados em rádio, e eu ouvia de tudo; lia tudo que era possível. Aliás, lia e relia. E assim, fui aprendendo a escrever, graças aos conselhos recebidos e aos livros aos quais tive acesso.
Com mudança de status, formei, com o tempo, uma biblioteca razoável. Mas, curiosamente, aquela quantidade enorme de livros me incomodava. Ou melhor, me incomodava vê-los fechados, em algum lugar da estante, depois de lidos, sabendo que, em face do tempo e em vista da quantidade enorme de livros por ler, a possibilidade de reler um livro era remota.
Pensando assim, passei a me questionar. Para que tantos livros guardados com tantos, como eu no passado, precisando deles? Decidi, então, já há algum tempo, doar todos os meus livros; fui doando aos poucos. Nos dias atuais acabo de doar os que restaram. Preservei, claro, alguns raros.
Formei nova biblioteca, desta feita eletrônica, que, de tão alentada, jamais serei capaz de ler tudo que nela contém; e contém de tudo, do mais sofisticado ao mais simples, de Tolstoi a Mia Couta, passando por Saramago e Garcia Marques.
Concluída a doação dos últimos exemplares sinto-me mais leve. Sei que muitos farão bom uso dos livros que doei. Ademais, não tinha sentido, para mim, manter uma biblioteca que enchia os meus olhos, que podia até impressionar uma visita, mas não enchia o meu coração.
Quando me indagaram se não seria uma sandice me desfazer dos meus livros fiscos, eu respondi que sandice é deixar de compartilhar com quem deles precisa.
Essa é a minha contribuição aos que, como eu no passado, tendo sede de conhecimento, não têm acesso à leitura.
É isso.

TRISTE ESPETÁCULO

“[…]O que testemunhei – absorto e, até, indignado -, ante as reações apaixonadas que decorreram da referida decisão judicial, foi, para dizer o mínimo, uma verdadeira afronta ao Estado Democrático de Direito, típico das republiquetas mais atrasadas e sem perspectiva de futuro[…].

 

Todos nós testemunhamos, absortos e indignados, dias de intolerância, de muita insensatez, quando não dias de fúria.

É grave constatar que determinadas condutas incivilizadas, insensatas e inconsequentes promanam de pessoas das quais esperamos, pela sua história, pelo que dizem e pelo que escrevem, discernimento, sensatez, equilíbrio e bom senso.

A quadra é ainda mais desesperançadora quando constatamos que não são poucos os homens públicos que parecem não ter equilíbrio para enfrentar adversidades.
Essa é uma constatação histórica.

Sempre foi assim; e assim sempre será, infelizmente.

Mesmo as mais provectas lideranças, mesmo as mais calejadas pelo tempo, padecem desse grave defeito, a depender somente das circunstâncias e das conveniências de estar de um lado ou de outro em face de um determinado evento.

Tenho dito que quando ações inconsequentes e insensatas dimanam de pessoas pouco esclarecidas, ou mesmo daquelas para as quais o destino reservou apenas a parte mais amarga da vida, eu até tento compreender as insólitas reações que protagonizam em face de um determinado fato da vida.

Contudo, se a falta de civilidade, de sensatez e descortino advêm de pessoas esclarecidas, das quais espera-se sempre uma ação – ou reação – equilibrada ante uma adversidade, aí sou instado a crer que caminhamos em direção a um precipício vertical perigoso, na direção mesmo da escuridão.

Faço essa linha de introdução para externar a minha inquietação, para dizer o mínimo, em face das reações apaixonadas, fanáticas e inconsequentes que testemunhei, dias atrás, em face de uma decisão judicial de primeiro grau, como de resto sempre acontece quando uma decisão alcance algum interesse mais destacado.

Em qualquer nação civilizada, diferente do que tenho testemunhado aqui no Brasil, e especialmente no Maranhão, as pessoas, mesmo as incultas e iletradas, diante de uma decisão judicial, reagem com o equilíbrio que se espera de quem sabe que as instituições estão em plena atividade.

Nessa perspectiva, ou com a decisão concordam, e se submetem aos seus comandos, ou dela recorrem para uma instância revisora.

Simples assim; claro como a luz do sol.

Não precisa teatro, estardalhaço, carnavalização, desrespeito, menoscabo para com o autor, ou autora, da decisão.

Por essas paragens, onde tudo exala um perturbador cheiro de atraso, com pitadas de incivilidade, ataca-se a decisão prolatada, abespinha-se a instância decisória, tenta-se desqualificar o(a) autor(a) da decisão, como se decisão judicial fosse algo inusitado, do outro mundo, objeto estranho deixado por um extraterreno, uma bomba nuclear prestes a ser acionada, tudo decorrente de um ambiente político contaminado por paixões quase radioativas; paixões políticas que, em face dos seus efeitos nocivos, reafirmam o nosso atraso.

Nesse ambiente tóxico, pouco importa a honra, a história de quem prolatou a decisão, pois, para dar vazão às paixões políticas, o que importa, diante de um revés judicial, ainda que provisório, é desqualificar quem ousou subscrever o édito, como se os fatos deixassem de existir ante a desqualificação do prolator da decisão, reação que, convém pontuar, não é privilégio desse ou daquele grupo, mas de todo o espectro político local.

Nessa faina, produzem-se, a cântaros, fake news, invocam-se, sem escrúpulos, todas as maledicências do mundo, como se fosse possível curar a febre quebrando o termômetro.

Em qualquer país, onde a disputa pelo poder é apenas uma disputa para servir, sem outra ambição que não seja o bem comum, uma decisão judicial, seja qual for a sua envergadura, não é nada mais que uma decisão judicial; tão somente uma decisão com a qual se concorda ou não.

Todavia, na nossa província, onde a imaturidade política parece fincar as suas garras com mais sofreguidão, uma decisão judicial, algo normal, repito, em qualquer sociedade civilizada, serve de instrumento de vendeta, ganha as manchetes de jornais, suscita questionamentos, põe em xeque a credibilidade das pessoas, para, no mesmo passo, fragilizar as instituições.

No nosso mundo, permeado de atitudes provincianas, mesmo daqueles dos quais se espera grandeza nas atitudes, uma decisão judicial, dependendo de suas consequências políticas, é usada como um troféu para escarnecer ou fazer troça do adversário, como se o subscritor da decisão estivesse, necessariamente, a serviço de grupos políticos; grupos que aplaudem ou criticam a decisão sempre à luz dos seus interesses.

Nesse panorama, o juiz que decide pode ser levado ao pedestal ou conduzido ao cadafalso: na primeira hipótese, pelos que se beneficiam politicamente com a sua decisão; na segunda, pelos que se julgam prejudicados.

De uma forma ou de outra, o prolator da decisão só será considerado um bom juiz, um juiz imparcial, um exemplo de magistrado, um homem digno e honrado para aqueles que, de alguma forma, se beneficiem, ou possam tirar algum proveito, da sua decisão, caso contrário, não passará de um juiz parcial e sem escrúpulos, a serviço desse ou daquele grupo político.

Não nos iludamos. Os que hoje elogiam algumas decisões judiciais, porque as julgam favoráveis às suas pretensões, são os mesmos que, no passado, diante de uma decisão desfavorável, colocaram as garras de fora e partiram para tentar desqualificar o juiz prolator.

Por tudo isso, nenhum de nós deve se sentir prestigiado, ou desagravado, em face de algumas manifestações de aparente respeito e solidariedade, que nada mais são que ações de pura conveniência e/ou oportunismo politico.

Triste espetáculo.