Ainda falta muito a ser revelado

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSLi, no jornal o Globo, do dia 02/11 do corrente, a matéria sob o título “Detentos impõe ‘código penal’ próprio em presídios”, com a reafirmação, com tintas fortes, mas não definitivas, do que eu já denunciei reiteradas vezes, aqui mesmo, neste mesmo espaço.

A matéria em comento traz informações que não podem passar sem uma detida e responsável reflexão, a concitar a todos nós a nos unirmos para tentar, se não reverter, pelo menos amenizar essa grave situação, a nos envergonhar como nação; a nos conduzir, definitivamente, à conclusão de que não há mesmo, nessas condições, como reeducar, reinserir, preparar o detento para o retorno à sociedade, em face da sua submissão a tratamento cruel e degradante, com o abespinhamento da sua dignidade.

A matéria em comento traz informações mais do que estupefacientes a propósito de canibalismo, esquartejamento, estupro coletivo, decapitação, jogo de bola com cabeças, sevícia com cabo de vassouros, olhos vazados, ida para cela sem luz e com escorpião, que seriam exemplos de punições previstas numa espécie de “Código Penal” dos criminosos, conclusões que decorrem de denúncias da Justiça Global, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça.

Ao lado desse “Código Penal” tem-se, a potencializar a situação degradante que decorre da “Lei Penal dos Encarcerados”, a superlotação, a má alimentação, insalubridade, assistência médica precária, a evidenciar, definitivamente, a incapacidade do Estado em relação ao seu sistema prisional, a exigir de todos nós a adoção de providências tendentes a reverter essa situação que a todos nós nos envergonham.

O mais grave é que essas revelações não esgotam as mazelas do sistema. Novas revelações, tão estupefacientes quanto, decerto chegarão ao conhecimento público. Mas providências mesmo, para reverter essa grave situação, somente no dia em que a prisão tiver por destinatário todo e qualquer brasileiro; quando, enfim, todos forem iguais perante a lei. Nesse sentido, acho que Sérgio Moro dará uma grande contribuição para reverter essa situação. É só esperar para ver.

Há alguns anos refleti, aqui mesmo, neste mesmo espaço, acerca da falência das chamadas instituições totais. Em alguns dos excertos do meu artigo, anotei, dentre outras coisas, que era necessário admitir que as instituições denominadas de totais, como são os estabelecimentos criminais, funcionam, no Brasil, apenas como um depósito de gente, embora sejam apresentadas aos olhos do povo como locais eficientes e aptos a atenderem os seus fins. Disse, demais, que essas instituições são, em verdade, verdadeiras masmorras, por isso mesmo fracassaram; por isso não ressocializam; são uma fábrica de reincidência, de estatísticas estarrecedoras.

Recordo que, na oportunidade, reflexionei com as palavras de Evandro Lins e Silva, segundo o qual não se podia  ignorar que a prisão, nos moldes da brasileira, com todas as suas mazelas, não regenera nem ressocializa ninguém; antes, perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece,funcionando como uma fábrica de reincidência, uma universidade às avessas onde se diploma o profissional do crime.

No mesmo diapasão, lembrei as lições do não menos saudoso Heleno Fragoso, jurista de nomeada, segundo o como instituição total a prisão necessariamente deforma a personalidade, ajustando-a à subcultura prisional, para, noutro excerto, concluir que o problema da prisão é a própria prisão.

Barbero Santo, na sua obra, Marginalidade Social e Direito Repressivo, diagnosticou, na mesma balada, que a prisão é aterrorizadoramente opressora e seus muros separam o interno da sociedade e a sociedade do interno. Esse, prossegue, não apenas perde o direito à liberdade de deslocar-se, mas praticamente todos os seus direitos: de expressão, reunião, associação, sindicalização, escolher trabalho, receber um salário semelhante ao do trabalhador livre, assistência social, etc e até de desenvolver normalmente a sua sexualidade”.

Goffman, citado por Cervine, de seu lado, anotou ser impossível descrever esse ambiente com poucas palavras, pois que, privados da maioria de seus direitos de expressão e de ação por um regulamento meticuloso, os detentos encontram-se em estado de compressão psicológica como um gás sob pressão dentro de um recipiente fechado. Tendem, prossegue, continuamente a romper essa resistência e tal tendência manifesta-se às vezes de uma maneira dramática, por evasões, ataques e motins.

Diante do que se tem noticiado, repetidas vezes, sobre a falência do nosso sistema penitenciário, concluo, na esteira do que tenho reiterado, repetidas vezes, que a questão do preso se deve exatamente porque no Brasil a prisão é destinada apenas aos mais pobres.

Nesse cenário, imagino que no dia que as ações do sistema penal de dirigirem, indistintamente,  a todos os autores das condutas típicas e antijurídicas, passar-se-á a investir com mais responsabilidade para resolução do gravíssimo problema penitenciário brasileiro, sem que o legislador perca de vista que é preciso, sem mais delongas, modernizar, o quanto baste,  a nossa legislação penal, descriminalizando condutas, despenalizando, quando possível, para evitar-se, ao máximo, a carcerização”.

Diante desse quadro, me permito repetir o óbvio, ou seja, que o encarceramento, em nosso sistema prisional fracassado, não melhora o detido, não o corrige para o mundo exterior, não o recupera para o retorno à sociedade que perturbou com sua ação criminosa, razão pela qual muito mais cautela deve ter o julgador, quando se decidir pela condenação de alguém e pelo cumprimento de penas nas chamadas instituições totais.

Pode-se concluir, a par do exposto, que a dignidade da pessoa humana, quando o assunto é prisão, tem sido muito pouco pensada, quer pelos legisladores, quer pelos executores das leis, preponderando, com efeito, o desrespeito ao princípio da humanidade da pena.

Mas não se iludam com o que foi revelado na reportagem que mencionei no início deste artigo. Muito mais ainda será revelado a propósito do nosso falido e desumano sistema penitenciário. É só esperar para ver. À proporção que os envolvidos nas operações – Lava Jato, Zelotes, etc – em curso no Brasil forem sendo presos, as mazelas serão sendo aos poucos reveladas, sendo certo que a prisão, quando finalmente dor destinada, também, a um classe que sempre se julgou imune a ela, terá o poder de proporcionar uma revolução.

 

Propostas para racionalizar os julgamentos no Tribunal de Justiça

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Passados quase dois anos e eis que o órgão Especial do Tribunal de Justiça resulta “extinto” (depende agora de providências legislativas), por votação unânime dos desembargadores presentes na sessão administrativa extraordinária do Pleno do Tribunal de Justiça do Maranhão, realizada no dia 21 do mês de outubro próximo passado, resultado da mobilização de muitos colegas que, como eu, não viam com bons olhos a divisão que se operou na Corte em face da sua implantação.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Maranhão, é preciso admitir, foi instituído sem nenhuma discussão prévia, daí as razões pelas quais, depois, em face das efeitos constatados a posterori, deixou de ser bem visto por muitos de nós, convindo anotar, por honestidade moral, que eu mesmo fui um dos que dei o meu aval à sua criação, sem perscrutar as consequências da sua instalação, sobretudo para o jurisdicionado.
O certo é que, por quase dois anos, o Órgão Especial do TJ esteve em funcionamento, convindo fazer, em face desse tempo, e em vista dos efeitos práticos da sua instalação, algumas ponderações que decerto conduzirão essas reflexões ao seu real objetivo, que é apresentar, para debate, algumas propostas que julgo fundamentais para a racionalização dos julgamentos futuros do Pleno do Tribunal de Justiça do nosso Estado.
Hoje, depois de amadurecida reflexão, posso afirmar, em face do que salta aos olhos de qualquer observador minimamente atento, que, em face do número reduzido de julgadores, as sessões, nesse período, como sói ocorrer, fluíram com mais rapidez, o que não significa dizer que, por isso, o Órgão Especial tenha cumprido o seu desiderato, a considerar que não é meta a ser perseguida por um colegiado a brevidade dos seus julgamentos, sobretudo quando o tema sob análise guardar especial complexidade, a exigir cognição verticalizada.
Sob essa perspectiva é muito pouco provável, desde a minha compreensão, que o Órgão Especial tenha atendido, como se almejava – de boa fé e bem-intencionados -, às expectativas de uma sociedade reconhecidamente plural, a exigir, sob essa singular perspectiva, que os julgamentos das demandas se façam a partir de discussões que envolvam o mais amplo espectro intelectivo, o que só é viável, importa reafirmar, se o exame, tão aprofundado quanto possível, se fizer à luz dos mais variados ponto de vista.
Dessa constatação resulta, por consequência, outra indagação que não pode deixar de ser feita, em vista do raciocínio que pretendendo desenvolver aqui e agora, mesmo antevendo o perigo de incursionar pelo mundo da obviedade, da tautologia, enfim.
Prossigo, pois, indagando se, para as decisões judiciais colegiadas, caracterizadas pela diversidade de interpretação, é melhor que sejam poucos a refletir sobre a matéria, para abreviar os julgamentos, e assim proporcionar conforto pessoal aos julgadores, ou, em sentido antípoda, é melhor que o debate se faça com maior número possível de julgadores, a proporcionar exame mais aprofundado das questões jurídicas, mesmo que os julgamentos se prolonguem no tempo ?
Indago, ademais, sempre na mesma linha de pensar, mas agora de forma instigante e provocativa: se a legitimidade do Poder Judiciário está visceralmente ligada ao interesse do jurisdicionado, que não se confunde com os interesses pessoais dos julgadores, em que o órgão especial aprimorou os julgamentos colegiados, nesses dois anos, a legitimar e justificar a sua existência, se, de certa forma, alijando dos debates e das decisões um número relevante de magistrados, abespinhou uma das mais relevantes marcas dos órgãos colegiados que é a pluralidade interpretativa que decorre dos mais variados pontos de observação dos intérpretes?
Às indagações que aqui formulei, apenas para instigar, provocar, trazer luz ao debate, respondo eu mesmo dizendo, pretensiosamente, sob a visão de quem não possa perceber o alcance dessas reflexões, que, desde o meu olhar, sob a perspectiva do aprimoramento dos julgados, o Órgão Especial não trouxe qualquer benefício, bastando, para dar alento a essa afirmação, a constatação de que, em face dele, como antes anotei, os debates restaram menos aprofundados, se considerarmos, como antecipei alhures, a finalidade, o espírito, enfim, dos órgãos de composição multifacetada.
Ainda que tenha convicção de que só um Tribunal, pela totalidade dos seus membros – claro que me reporto aos Tribunais de porte médio como o nosso – tem condições de prolatar decisões que resultem de discussões mais aprofundadas, como efetivamente todos nós desejamos, reconheço que, em face delas, os debates tendem a ser mais acalorados e as sessões mais demoradas. Mas discussões acalorados e demoradas, com maior verticalização, só podem mesmo ser promovidas por Tribunais cuja composição, por força da natureza humana, seja o mais heterogênea possível, como de resto ocorre em todas as corporações.
Compreendo, inobstante, que, se formos capazes de racionalizar os julgamentos – e aqui está o busílis dessas reflexões -, poderemos, sim, dar celeridade aos mesmos, sem afrontar o principio da colegialidade, e sem alijar nenhum colega dos debates, como pretendo demonstrar a seguir.
A primeira e principal providência é o cumprimento rigoroso do nosso Regimento Interno, sobretudo no que se refere às intervenções, que não podem ser sem razão e sem limites, como tem ocorrido na prática, fomentando discussões paralelas e intermináveis, quebrantando, inclusive e na mesma balada, a formalidade e liturgia que deveriam presidir os julgamentos.
Convém, ademais e concomitantemente, por acordo, já que não existe norma escrita, fixarmos o tempo máximo para apresentação de um voto – salvo exceções que decorram da complexidade da matéria – , como fez o Supremo Tribunal Federal, que fixou o tempo máximo em 30 minutos, e cujos votos, ademais, são distribuídos com antecedência, providência de especial relevância, em face dos benefícios que trará à celeridade dos julgamentos, pois que possibilitará a antecipação do exame da quaestio iuris, com os consectários daí decorrentes, inclusive com a redução considerável dos pedidos de vista.
Por fim, é de relevo que seja fixada uma hora para o encerramento das sessões, ainda que não se tenha cumprido a pauta inteira, sabido que, depois de certo tempo, tendemos a descurar das nossas atenções, que decorrem, naturalmente, do desgaste emocional que a quebra de rotina acarreta, do que resultará mais conforto a todos os julgadores, que, assim, poderão compatibilizar as sua agenda pessoal com a agenda profissional, sem prejuízo de uma ou de outra.
Com essas quatro providências, creio que daremos celeridade aos julgamentos e conforto emocional aos julgadores, convindo anotar que nenhum colega está obrigado a aceitar a fixação do tempo mínimo para apresentação do voto e nem tampouco distribuí-lo com antecedência, conquanto tenha o dever de agir sob a égide do Regimento Interno, maltratado, reiteradas vezes, em detrimento da celeridade dos julgamentos, e da solenidade que deve presidir os julgamentos nas Cortes de Justiça.

O direito não é filho dos céus

Estf2-300x214mbora tenhamos que admitir que muitas das posições que assumimos não sejam simpáticas para alguns, todos nós esperamos, a despeito disso, ter uma convivência pacífica com o semelhante e, sobretudo, tratando-se de corporações, com os pares, dos quais todos nós esperamos que respeitem as posições e as crenças de cada um, mesmo que sejam antagônicas ao seu pensamento.
De minha parte, devo dizer que, nos dias presentes, o que mais desejo é me relacionar civilizadamente com as pessoas que vivem próximas de mim, muito embora, democraticamente, me reserve o direito de assumir posições discordantes, convindo anotar que, quando assumo posição oposta, não o faço por arrogância, mas por convicção; e, importa realçar, eu não acredito no homem sem convicção, do tipo que vai levando a vida ao sabor das circunstâncias.
Como a esmagadora maioria dos magistrados brasileiros, eu nunca decido pensando em mim ou na obtenção de aplausos; aliás, eu sou avesso a esse tipo de manifestação que, muitas vezes, são apenas oportunistas, as quais me fazem até lembrar de dois personagens de Voltaire, no magistral conto Preto e Branco, Ébano e Protázio, um dos quais insistia em ser simpático ao protagonista Rustan, dizendo-lhe apenas o que ele queria ouvir, enquanto que o outro, mais sincero, o advertia para a realidade, sem se preocupar com a sua reação, ou seja, se ia ou não gostar das verdades que lhe dizia.
Nas minhas relações profissionais, faço questão de consignar, não me apraz o confronto. Abomino, com sofreguidão, as disputas que possam descambar para a deselegância, mas elas ocorrem; infelizmente, elas têm que ocorrer.
Mas, é preciso convir, aquele que discorda de mim não é meu inimigo, mas parceiro na construção de uma ideia, de uma decisão, já que somos uma sociedade marcadamente plural.
Somos julgadores, tenho dito, mas não somos máquinas; por isso, algumas vezes, nos incomodam as posições de alguns colegas. Mas as coisas devem funcionar assim mesmo, pois nenhum magistrado, por mais que sua arrogância lhe perturbe a visão, pode se imaginar liberto de suas memórias, dos seus desejos, do seu inconsciente, de sua ideologia, enfim. Existem até os que não conseguem se desvencilhar de suas amizades e, em face delas, vão por ai prolatando decisões, às vezes esquisitas, mas ao agrado das pessoas que eles prezam.
Dessa elementar constatação resulta que, nas nossas relações e nos nossos julgamentos, haverá sempre uma dose relevante – às vezes decisiva – de subjetividade; do tipo que, algumas vezes, entra em choque com a subjetividade de outrem, disso resultando que, às vezes e por isso, as discussões saem do campo do direito para fazer uma conversão perigosa na direção do mundo idiossincrásico de cada um de nós.
Todavia, deve-se compreender que, quando isso ocorre, não se trata, necessariamente, de uma questão pessoal. Temos mesmo que, em certas circunstâncias, partir para o confronto, que se almeja, inobstante, seja apenas no campo das ideais.
De toda sorte, nem a mim nem a ninguém apraz concordar para ser simpático, pois que isso significaria fazer cortesia com direito alheio; além disso, nada pode causar maior dano aos litigantes do que a ação do juiz que, para ser simpático e amigo, faz cortesia com o direito em disputa.
É bem de ser ver, portanto, que as divergências, antes de provocar a ira de alguém, devem ser estimuladas, pois, é a partir delas, que nascem as grandes decisões. Eu não acredito em decisão colegiada, na qual os protagonistas se limitam a seguir acriticamente o relator, pois que, assim agindo, restará maculado o principio do colegiado.
É preciso, sim, ouvir o colega, se debruçar sobre as suas reflexões, penetrar na essência das suas ideais, discutir com enlevo e altivez, reconhecer, se for o caso, quando ele estiver certo, seguir, enfim, as suas posições, se esse for o caminho mais correto.
O juiz deve mesmo ter o senso critico aguçado, atilado; deve estar preparado, com as armas do conhecimento, para o bom combate. Mas não deve fazê-lo apenas para satisfazer ao seu ego, sem conteúdo e sem preparo intelectual; preparo que deve ser perseguido, obstinadamente, antes, durante e depois dos julgamentos, para qualificar o debate.
O que o juiz não pode, desde a minha visão, é ser populista; e populista não sou, conquanto tenha convicção de que as minhas posições, nas diversas crônicas por mim publicadas, encontram ressonância junto à população, que pouco crê nas instituições e muito menos ainda nos homens públicos do nosso país.
Para concluir, convém anotar, para reafirmar a inevitabilidade do confronto no campo das idéias, que o Direito não é filho dos céus (Tobias Barreto), mas produto cultural da humanidade, ou seja, é algo socialmente construído pela via do debate, da força dos argumentos.
De relevo advertir, ademais, que o juiz não tem que ser um sujeito representativo, posto que nenhum interesse ou vontade que não seja a tutela dos direitos subjetivos lesados deve condicionar seu juízo, daí a isenção e a força que devam presidir a defesa dos seus pontos de vista.
Por fim, cumpre consignar que a atuação do juiz não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais, para cujo desiderato ele, por vezes, agrada e desagrada, acerta e erra, o que se compreende em razão da sua condição de ser humano.

Pessimista ou realista?

 

Todo mundo fala que, diante das vicissitudes da vida, devemos ser otimistas, no que concordo plenamente, já que sou sempre otimista, conquanto não deixe de ser realista. Contudo, dependendo da posição do intérprete, isso pode (o realismo), muitas vezes, ser confundido com pessimismo.
Vale ressaltar que ser otimista não significa fechar os olhos para realidade, a ponto de obliterar a mente, a ponto de alcançar a cegueira mental. E por maior que possa ser o envolvimento emocional, é necessário enxergar e interpretar a realidade, com os pés fincados no chão, sob pena de, em face de um erro de interpretação, ser o sujeito do conhecimento levado à percepção equivocada da realidade. Nesse cenário, ou seja, em face dessa simbiose sujeito/objeto do conhecimento/otimismo/pessimismo/realidade, não são poucos os que fazem uma enorme confusão.
Creio que, diante da vida, de tudo que está a minha volta, em face de tudo o que tenho vivido, tenho procurado perscrutar bem a realidade, razão pela qual tenho sido realista diante dos acontecimentos que permeiam a minha vida, o que não impede que alguns prefiram me ver como um pessimista.
Feitas esses breves considerações preliminares, devo confessar, realisticamente, que estou desalentado, contristado, sem esperança e, às vezes, revoltado, com o que tenho testemunhado em face da falta de compromisso e da seriedade de uma enorme leva de homens públicos, em todas as esferas de poder.
Por tudo o que tenho observado, e em face de tudo o que já testemunhei, não vejo, sinceramente, nenhuma ação sincera dos que disputam cargos e poder, assim como não vejo, ademais, sinceridade de propósitos. Por isso, custa-me crer nas promessas que fazem, e isso me deixa desalentado, desesperançado, sem vislumbrar um futuro melhor.
Diante desse cenário, fico sempre com a impressão de que os que estão no poder querem apenas tirar vantagens de ordem pessoal, admitindo, para não ser leviano, que nesse mundo ainda habitam raras, raríssimas exceções.
Vejo, desalentado, desde sempre, que a sofreguidão pelo poder que muitos exteriorizam, objetiva, claramente – e quase sempre -, a defesa de interesses personalíssimos ou, quando não, mas com a mesma gravidade, os interesses dos apadrinhados, ou seja, dos que compartilham as mesmas ambições. Ou será que alguém minimamente realista imagina que a disputa por cargos que testemunhamos decorre do afã de servir ou por espírito público?
A mim transparece claramente que, nessa disputa por cargos e poder, o que está em jogo mesmo são os interesses pessoais e corporativos, e a sensação que tenho, depois das repetidas, reiteradas decepções com os homens públicos do meu país, é que ninguém, de rigor, está preocupado com os destinos da nação, dos estados e dos municípios, reafirmando que existem exceções.
Observo, noutro giro, mas com igual desesperança, que os homens públicos que disputam cargos e poder, como avidez incomum, são os mesmos que não têm opinião formada sobre nada, já que mudam de lado, ou de agremiação, ou de opinião, como mudam de roupa, ou seja, ao sabor das circunstâncias.
Vejo, nos dias de hoje, os que estão no poder e os que estão fora da esfera de mando, circunstancialmente, se servirem dos mesmos discursos, dos mesmos argumentos que antes condenavam. É dizer: o discurso e a ideologia se esvaem ou se incorporam ou se esvaem e se reincorporam, de acordo com a posição que ostenta o ser mutante, ou seja, no poder ou fora do poder, o discurso e as práticas políticas ressaem ao sabor do momento, das conveniências e dos interesses pessoais, nem sempre coincidentes com o espírito republicano que deveria nortear as suas ações.
A verdade é que, desde a minha percepção e de grande parcela da população, ninguém está preocupado com o país, com o estado ou com o município, inferindo-se disso que, se determinada medida for do interesse pessoal do agente público, pouco lhe importam as consequências para o conjunto da sociedade.
Na seara pública, infelizmente, as coisas funcionam assim: passa-se a defender tudo o que se condenou numa determinada época, desde que isso seja conveniente aos interesses do agente. Tudo depende, pois, das circunstâncias, das conveniências políticas de cada um. Não há, lamentavelmente, espírito público. Também não há preocupação com as consequências das decisões para a sociedade.
O inimigo de ontem é o amigo de agora, se isso for conveniente aos interesses de cada um, e às favas os escrúpulos. Assim é que, se for para permanecer no poder, pouco importam as mentiras proferidas, pouco importam os ataques antes desferidos e/ou a honra maculada, pois, afinal, nesse panorama, os fins justificam os meios. Nesse jogo não há como distinguir o bandido de mocinho.
Fator previdenciário, gastos públicos, pedaladas fiscais, CPMF, desonerações, responsabilidade fiscal, impeachment, distribuição de cargos públicos, filas nos hospitais, inflação, desemprego, estradas destruídas, ruas esburacadas, violência, falta de leitos nos hospitais, enriquecimento ilícito, contas nos paraísos fiscais, esses fatos são interpretados, avaliados e condenados sempre ao sabor do momento, de acordo com os interesses em jogo.
Nesses e noutros temas, infelizmente, a posição que assumem são as que condigam com os interesses de cada um ou de cada grupo, convindo anotar, nessa linha de pensar, que, ao longo da minha vida, testemunhei muitos dos que hoje estão no poder lutando pelo impeachment dos que estão hoje alijados desse mesmo poder; testemunhei, da mesma forma, muitos que hoje votam contra o governo, lutarem, com a mesma tenacidade, a favor das medidas que hoje abominam, tudo de acordo com as suas conveniências, sendo de relevo anotar que as consequências dessas ações são, para eles, o que menos importam.

Ninguém suporta pessoas agressivas

Clarice Lispector dizia que “até cortar os próprios defeitos é perigoso”, para, mais adiante, arrematar advertindo que, afinal, “nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício interno”.
Quanto a mim, reconheço, sem que seja preciso que me lembrem, que tenho vários, incontáveis defeitos, o que ocorre em face da minha condição de ser humano. Admitindo os muitos defeitos que tenho, impende anotar que, como eles já são muitos, sinto-me agastado, muitas vezes, quando acrescentam mais algum defeito que julgo não ser “merecedor”.
Admitindo, reconhecendo, com humildade, os meus defeitos, posso dizer que procurei – e consegui -, ao longo da jornada da minha vida, expungir, desgarrar de mim a maioria deles, sem que eles me fizessem falta, levando-me a concluir que nenhum deles dava sustentação ao meu edifício interno, para usar a expressão cunhada por Clarice Lispector.
Depois que consegui me livrar de alguns defeitos da minha personalidade, visando a uma melhor convivência com o semelhante, e estando, hoje, mais afável e menos acre, concluo que todos eles eram demasiados e desnecessários, tanto que vivo melhor sem a companhia deles, admitindo, nos dias presentes, que muitos foram forjados para impressionar a mim mesmo, para passar a impressão de que sou forte ou, noutra linha de pensar, para não expor as minhas fragilidades.
Assim expostas essas linhas introdutórias, devo dizer, em face do tema que escolhi para essa crônica, que não gosto de agressão, seja ela verbal ou, muito menos, física. É dizer: não estão entre os meus defeitos as agressões verbais e o tratamento descortês. Afinal, tenho convicção de que ninguém suporta pessoas agressivas.
A experiência de vida, a maturidade, os cabelos encanecidos e a prudência levaram-me a entender que podemos conseguir muito mais quando agimos com equilíbrio, compreensão, sensatez e prudência. Logo, não dá para viver a vida gastando energia com o revide, com a desforra, com provocações. Por isso, quando sou agredido, deixo que o tempo se encarregue de cicatrizar as feridas, convindo anotar, entrementes, que tudo tem limite, e o meu limite vai até onde a agressão não fira a minha honra e a minha dignidade. Mas, ainda assim, diante de uma quadra fática dessa natureza, não me deixo levar pelo impulso, evito ser o protagonista da discussão; conto até dez, até cem se for preciso; deixo o tempo passar, para, só depois, tomar uma decisão.
É verdade que nem sempre fui assim. Já fui do tipo que não levava desaforo para casa. E – vejam que absurdo! – até me ufanava disso, sem que eu soubesse em que me fiava, porque nunca fui de briga física, sempre fui do tipo franzino, do tipo fácil de ser jogado à lona com um murro de lenço.
Sempre dei especial importância às palavras, tanto que, nos dias presentes – mais maduro, menos impulsivo e mais contido -, advirto os desavisados para o poder das palavras, sobretudo em face da polissemia dos termos que permitem a extração de vários sentidos, muitos dos quais, se descontextualizados, podem se constituir numa incitação ao litígio.
No passado, nas oportunidades em que me senti ofendido, sempre reagi. Nunca deixei barato. Quando não reagia, ficava ruminando, esperando a hora do revide, ou procurando criar uma situação que me permitisse revidar.
Eu era mesmo do tipo insolente, criador de caso, mal humorado, circunspecto, o que me faz lembrar o protagonista do romance Notas de Subsolo, de Fiódor Mikhalovich Dostoiévski, que tinha prazer de dizer que era mau e rude, que vivia doente de raiva, que não se tratava só de raiva, admitindo ser um funcionário público, do tipo cruel grosseiro; do tipo que, convenhamos, ainda existe por aí.
Atualmente, tenho persistido na direção correta, na minha vida pessoal e profissional. Ao lado disso, já há algum tempo, introduzi em mim o sentimento de que o melhor mesmo é o tratamento cortês, a concórdia, a paz entre colegas, pois que, diferente do personagem de Dostoiévski, não me sinto no direito de ser agressivo apenas porque imagino navegar pelo mundo da retidão, pois, afinal, ser reto, probo, educado, responsável, sobretudo quando se trata de um homem público, não é favor, e nem autoriza ninguém a ser deselegante e mal educado.

Falsas verdades

 

Para definir uma situação dramática, as pessoas costumam dizer que estamos no olho do furacão. Segundo os livros científicos, o olho do furacão é o único lugar onde reina a calma, enquanto o furacão vai se expandindo por todos os lados, o que evidencia o equívoco da formulação.
Noutro giro, quando as pessoas têm uma desinteligência qualquer, uma pendência a ser solucionada e uma vez superadas as formas de composição amigáveis, as outras costumam aconselhar a procurar a Justiça. Mas aí confundem tudo. Esquecem que a Justiça, como sabemos, é o lugar próprio para um processo, com a observância de certos rigores formais.
Essas pessoas, em face de uma natural desinformação, costumam imaginar que a busca de qualquer instância de controle, mesmo as administrativas, e ainda que o façam informalmente, é o mesmo que procurar Justiça, ou seja, o Poder Judiciário, o que, certamente, só pode ser compreendido em face de uma descabida ampliação do seu conceito. E o mais grave nessa confusão entre o que seja Justiça e outras instâncias de controle, é que, quando não conseguem encontrar uma solução satisfatória aos seus pleitos nas instâncias percorridas, as pessoas, com natural descrença, costumam dizer que a justiça não funciona.
É natural que assim o seja, é natural que os leigos e desinformados façam esse tipo de confusão, afinal, são poucos os que têm o domínio dessas questões, daí por que a confusão é perdoável.
Tenho para mim, entretanto, que quando o equívoco – e dele a desinformação consequente -, sai da esfera restrita de alguém para alcançar a opinião pública, em face de uma matéria jornalística, aí a situação muda de figura, em face das consequências indesejáveis da confusão que se disseminará.
Explico. No dia 30 de junho do corrente, um articulista da Folha de S. Paulo, a propósito da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos, disse o seguinte: “Ao invés de estarmos discutindo a diminuição desta população (refere-se à população carcerária), assim como a reversão de tal lógica e o uso mais sistemático de penas alternativas, estamos propondo aumentar os casos passíveis de encarceramento, mesmo sabendo que os adolescentes que serão encarcerados não são, em absoluto, apenas aqueles que praticarão crimes hediondos. Estamos falando de um país que, dependendo do juiz, prende pessoas que cometeram furtos de R$ 150,00 e que andam com alguns cigarros de maconha”.
Essa é uma afirmação falaciosa, que se inspira provavelmente em exceções. Não é verdade que se prenda alguém só porque furtou R$150,00. É preciso desmistificar esses equívocos de análise, já que a lei não autoriza esse tipo de prisão e nem há juiz que a pratique. É dizer: ninguém é preso só porque furtou R$150,00, como afirma simploriamente o articulista.
É preciso ter presente que quando uma prisão decorre de uma subtração desse porte, é implementada em face de outras razões: reincidência, recalcitrância, violência empregada na execução do crime, dentre outras.
Um réu primário, de bons antecedentes, de boa conduta, que tenha praticado um furto de valor irrelevante ou qualquer outro crime com resposta penal diminuta, sem violência ou ameaça, nunca fica preso, porquanto a prisão se dá em face da conjugação de outros fatores. O valor do bem subtraído não é, definitivamente, relevante para determinar uma prisão, como equivocadamente afirmou o articulista, sustentando as suas conclusões em dados isolados e que não condizem com o garantismo penal a que todos nós nos submetemos, sem perder de vista a necessidade de proteção da sociedade, a relativizar as garantias penais inseridas em nosso ordenamento jurídico.
No Judiciário há juízes de todas as tendências, de todos os perfis. Há, nesse sentido, os laxistas, os intervencionistas, os minimalistas, os radicais, os liberais e os conservadores. Apesar disso, todos – ou, pelo menos, a grande maioria – têm consciência de que a prisão é a ultima ratio, uma medida extrema que só deve ser praticada no caso de real e indiscutível necessidade.
O que pretendo fixar mesmo, em face dessas reflexões, é que, por equivoco, por desinformação ou por má fé, as pessoas vão interpretando os fatos, tirando conclusões erradas, porque partem de premissas equivocadas. É mais ou menos como acontece no mundo político. Criam-se fatos, na tentativa de destruir os adversários ou a pretexto de negar uma grave acusação, e vão se repetindo, à exaustão, essas “verdades”, que terminam se incorporando na nossa consciência.
A verdade que precisa ser dita é que nunca é o valor do bem subtraído, isoladamente, que autoriza uma prisão preventiva. Tudo depende, portanto, do contexto, à luz do qual é possível até que uma pessoa seja presa sem que tenha sido encontrado nenhum bem jurídico em seu poder, como acontece, por exemplo, nos crimes tentados.
A prisão de qualquer pessoa e a sua manutenção não decorre da forma simplista como propõe o articulista; se partimos do princípio de que o valor da res furtiva é suficiente para definir uma prisão, doravante, quando o réu, nos crimes tentados, não lograsse êxito na subtração, estar-se-ia desautorizado a prendê-lo, em face da inexistência de prejuízo material. Daí pode-se inferir o equívoco do articulista, a merecer essa reflexão.
É verdade, sim, que nunca se prendeu tanto no Brasil. Não é menos verdade, no entanto, que nunca se cometeu tantos crimes. Não é menos verdade, ademais, que essa corrente contra as prisões, sobretudo as provisórias, tem um claro objetivo, que é esvaziar as prisões, em face do colapso do nosso sistema carcerário, que decorre da inércia do Executivo.
Da minha parte, vou continuar mantendo a prisão dos que tenham convivência perigosa em sociedade, sempre o fazendo com discernimento e com a compreensão de que não se devem solapar os direitos do réu, ainda que a pretexto de combater a violência.
O que não podemos é aceitar a crítica de que banalizamos as prisões provisórias, pois que elas são implementadas sempre à luz da sua real necessidade, como, aliás, anotei no artigo intitulado “A sociedade precisa de proteção”, publicado nesse jornal e disponibilizado no meu blog (joseluizalmeida.com)
Antes da critica que se faz ao excessivo número de prisões, o que se mostra mais premente é a construção de presídios, e que, no mesmo passo, se tratem os presos, definitivos ou provisórios, com dignidade e respeito, o mesmo respeito que temos para com as vitimas em particular e à sociedade em geral.

Pais e filhos

 

Na obra O Complexo de Portnoy, de Philip Hoth, o personagem central da trama, Alexander Portnoy, além dos seus próprios conflitos, era obrigado a conviver com posições díspares e controvertidas dos próprios pais que, decerto, exerceram sobre ele uma forte inquietação moral. Assim é que, enquanto a sua mãe adotava a honestidade como prática de vida, o pai aconselhava-o a não ser burro como ele, advertindo-o para que não cassasse por beleza e nem por amor, mas por dinheiro.
É cediço que lições dessa natureza não se veem apenas nas obras ficcionais, já que essa criação distorcida tem-se verificado, infelizmente, em muitos ambientes familiares, razão pela qual os filhos, dependendo das posições dos pais em torno das questões morais, podem viver verdadeiros conflitos, que permearão toda a sua vida, com reflexos, quem sabe, na criação dos seus próprios filhos, resultando, inapelavelmente, na consolidação de uma geração com gravíssimos defeitos morais.
Todavia, não são muitos os pais que aconselham os filhos com tanta franqueza, como registrado na obra ficcional aqui mencionada, a casarem por dinheiro, abdicando do amor ou colocando-o em segundo plano; amor que, a juízo dos crédulos, como eu, deve permear a vida de um casal e, por consequência, da família que resultar da convivência.
Mas, decerto, há muitos e muitos pais que, com sua ação, com o seu modo de vida, com os seus (maus) exemplos, entremostram, deixam claro aos filhos que, nesse mundo, assim como na obra mencionada, o que vale mesmo é o dinheiro, e que por ele, e em face dele, tudo é permitido, tudo pode ser feito, pouco lhes importando os valores morais. Daí que, como todos testemunhamos, muitas são as relações marcadas pela brevidade, muitas são as famílias desfeitas, os lares sob escombros, exatamente porque não foram concebidos à luz do amor, mas das conquistas materiais que os tornam um ambiente pernicioso, onde prepondera o jogo de interesses, o afã de alcançar bens materiais, sejam quais forem os meios empregados.
Disso tudo resulta, não tenho dúvidas, a inviabilidade de as relações se prolongarem no tempo, sabido que, numa família, numa convivência entre duas pessoas, só o amor é capaz de fazê-las duradouras, quiçá eternas, até que a morte se encarregue de fazê-las fenecer, pois não se constrói uma família na base de ações perniciosas e volúveis, com esteio na perspectiva deletéria de que é preciso acumular as conquistas materiais sejam quais forem os meios, sejam quais forem as consequências.
A verdade é que, conquanto não sejam muitos os que aconselham tão diretamente os filhos, para que se conduzam pelo caminho condenável da relação conjugal por puro interesse material, há aqueles que, com sua ação, com o seu exemplo, com a sua prática de vida, deixam patente que, na busca frenética e incessante de bens materiais, conforme dito acima, vale qualquer coisa, mesmo que seja casar sem amor, por conveniência, por interesse, pouco importando as coisas do coração, as consequências de uma relação que se estabeleça em vista dos interesses mundanos.
Fico me perguntando, diante dessa realidade, e em face da magnífica obra ficcional a que me reportei acima, qual a família, na verdadeira acepção do termo, que se consolidará, definitivamente, que não seja com as suas bases fincadas no amor, no respeito e nos bons exemplos?
Não acredito, definitivamente, numa família construída à luz dos maus exemplos, na qual os cônjuges, ao invés do amor, apostam na esperteza, na perspectiva de levar vantagem a qualquer custo, à luz de práticas condenáveis, dos interesses escusos, cujo fator preponderante seja o interesse pecuniário, ou mesmo o poder, relegado o amor a segundo plano.
Admito que sou, sim, do tipo careta, do tipo démodé, pois, apesar dos exemplos, apesar de todas as dificuldades pelas quais passei e que, por vezes, passo na vida, ainda acredito no amor, no respeito e na consideração pela pessoa com quem divido as minhas inquietações, os meus sofrimentos, as minhas alegrias e tristezas.
Eu não ministro aos meus filhos ensinamentos outros que não sejam concebidos à luz do amor, do respeito e da consideração, os quais são, disso tenho certeza, a base de uma união duradoura e da construção de uma família.
Aquele que orienta os filhos a formarem uma família à luz de interesses menores e que não sejam em face do amor, orienta a construção de um castelo de areia, que será levado com o vento, que não resistirá à primeira intempérie.
Da mesma forma que não se orienta um filho a formar uma família com esteio no interesse econômico, não se pode, ademais, dar maus exemplos a eles, estimular a má conduta, emprestar aquiescência aos deslizes.
Não se constrói uma sociedade minimamente decente, ministrando conselhos daninhos aos filhos, ensinando-os, enfim, os meios para levar vantagem, em detrimento do semelhante e dos valores morais. Tenho proclamado, com ênfase e repetidamente, que não vale tudo, por exemplo, para ascender. Não vale tudo para vencer. Tudo neste mundo deve ter limite. O limite é a ética, a honra, o pudor.
Quero sonhar, sim. Quero que meus filhos sonhem, também. Eu os quero vencedores. Todavia, não os estimulo a vencer de qualquer jeito, sob os escombros de sua dignidade. A casa de pai deve, sim, ser a escola de filho. Mas deve ser uma boa escola. Uma escola decente, que o conduza pelos caminhos da honradez, da dignidade e da decência, diversa da escola de Marcelo Odebrecht, por exemplo, que, ao que se infere de suas próprias palavras, estimula na sua família a cumplicidade para realização do malfeito, ao admitir que prefere punir uma filha que denuncie o malfeito que a autora do deslize.
Os desejos do homem, a sua ambição, a sua volúpia pelo poder e pelos bens materiais não podem ser de tal monta que o levem à degradação moral, a ponto de sublimar o malfeito, como se os fins justificassem os meios.
Só para ilustrar, lembro que Sócrates, tido por muitos como o mais sábio dos homens, entendia que se encontrava mais próximo dos deuses quando menos desejava. Por isso, se orgulhava de viver uma vida modesta, sem ambição; e ambição, definitivamente, na minha concepção – e de muitos, importa dizer – tem limites.

O poeta e o boquirroto

 

Em 1979 comprei o meu primeiro aparelho de som. Era um Três em Um – rádio, toca discos e fita cassete – , da Sony; grande novidade à época. Era o que havia de mais compacto no mercado, mesmo assim, comparado aos aparelhos de hoje, era um trambolhão, difícil de ser transportado, mas excelente para ser exibido.

Recém-casado, recém-formado, iniciando a construção da minha história, fixei domicílio no Conjunto Habitacional Turu, conjunto de casas populares, localizado no bairro do mesmo nome. Era uma casa simples, com piso de cimento, sem muro, sem forro, mas com o mínimo de conforto, onde vivi momentos de rara e intensa felicidade, ciente e consciente de que era tudo que eu podia oferecer a mim mesmo e à pessoa que escolhi para viver a minha história de amor e de vida.

Com o aparelho Três em Um, vivendo a bela e desafiante aventura de constituir uma família e de construir a minha própria história, fixei, embevecido e embalado pelo desafio, o meu próprio domicilio, curtindo os meus cantores e cantoras favoritos, ouvindo-os nos antigos long plays, os antigos discos de vinil.

Tendo sido o meu primeiro aparelho de som de qualidade, claro que eu tinha muita afeição pelo Três em Um. Pensei até guardá-lo para posteridade. Juro! O cuidado era tanto  que, como não havia forro na casa, por precaução, mandei fazer uma estranhíssima capa de flanela, com a qual o cobria por inteiro, desfigurando-o, mas, na minha visão, protegendo-o das intempéries, sabido que não seria fácil adquirir outro.

Com o Três em Um a me fazer companhia, colocado em lugar de destaque na minha sala de visitas, sob a estranha capa de flanela, que só era retirada em momentos especiais, eu esperava, com singular expectativa,  a chegado do sábado, para, mais uma vez, reunir a parentalha para ouvir músicas, sobretudo as canções do ídolo maior Roberto Carlos, cujos discos, sempre lançados nas proximidades do Natal, a gente ouvia o ano inteiro, repetidamente, exaustivamente, até estourar a paciência dos menos afeiçoados ao seu canto e voz.

Sempre gostei de músicas. Gosto até hoje. Os meus dias sem música não seriam os mesmos. Com música enfrento até engarrafamento sem me irritar. Nesse sentido, é compreensível que várias músicas tenham marcado a minha vida, especialmente as que falavam – e falam –  ao coração, em cuja arte destaco os inigualáveis Roberto Carlos, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran,  Maysa,  e a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim,  dentre outros, sem deixar de curtir, em outras circunstâncias, as obras mais intelectualizadas de compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque.

Todos, de certa forma, compuseram ou cantaram  músicas que marcaram, com tintas fortes, a minha vida. De Gilberto Gil, que ponho em destaque nessas reflexões, me chamou a atenção, entre tantas obras primorosas, a música intitulada Metáfora, da qual destaco a seguinte passagem: “Uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz lata pode estar querendo dizer o incontível. Uma meta existe para ser um alvo. Mas quando o poeta diz meta pode estar querendo dizer o inatingível.”.

O que quero refletir, aqui e agora,  a propósito da letra da música de Gilberto Gil,  é o óbvio:  o poeta tem licença para dizer o que quiser, e deve, sim, ser compreendido e respeitado em face do que diz, conquanto possa ser criticado em face da qualidade da sua poesia. Todavia, ainda assim, está autorizado a dizer o que pensa, sem ser censurado pelo que pensa e diz.

Inobstante, nós, nas nossas relações, sobretudo nas atividades profissionais,  sem exercitar a veia poética, posto que não a possuímos, não temos licença para dizer o que bem entendemos. Temos, sim, ao reverso, que  pensar, repensar, contar até dez, refletir, enfim,  sobre as consequências que decorram das nossas palavras; na repercussão daquilo que dizemos ou fazemos, sobretudo quando exercemos uma posição de destaque e temos ciência da repercussão daquilo que falamos.

O juiz, por exemplo, não pode, nas suas decisões – ou mesmo fora dos autos – dizer o que bem entende, fugir do exame da provas, vilipendiar o bom-senso, concluir precipitadamente, sem estar autorizado em face das provas produzidas ou pela conveniência.

O juiz não pode ser um fanfarrão, um falastrão, um boquirroto, dizer tudo que lhe vem à mente, como não pode, de resto, qualquer um cujas palavras possam repercutir.

Não pode e não deve o juiz, ademais, antecipar seus julgamentos, agir como agem os que estão numa mesa de bar ou num campo de futebol. É preciso ter postura, portar-se de acordo com as exigências e liturgia do cargo, assertiva que vale, de mais a mais, para quem exerça uma liderança.

Da mesma forma, não pode o representante da parte em juízo, na defesa do seu cliente ou do Estado, ser desleal na produção e no exame  das provas que dão base à sua postulação, numa vã tentativa de ludibriar, de levar o juiz na conversa, para levar vantagem, para se sair bem, para vencer a contenda, a qualquer custo, de qualquer forma, sejam quais forem os meios e as consequências, pois tudo isso equivale, em proporção e consequência, a dizer além do que deve e pode.

Lado outro, não pode o advogado ou representante do Ministério Público,  sob qualquer argumento, ainda que em nome da ampla defesa, da plenitude de defesa ou do interesse público, ser desleal com a parte adversa, fazer uso de meios impróprios para alcançar os seus objetivos, indo além ou aquém da expectativa que se guarda em relação à sua atuação.

No nosso mundo, diferente do mundo do poeta, não temos licença para dizer o que nos vem à cabeça, sem medir as consequências.  Não podemos alegar o que não podemos provar. Não podemos fazer acusação ou afirmação levianas, sob pena de pagarmos um elevado preço pela ousadia.

Se é verdade que o juiz não pode decidir em face de suas intimas convicções, que não deve argumentar com o que lhe vem à mente, sem base em provas regularmente produzidas,  não é menos verdadeiro que o advogado não deve se valer de sua capacidade postulatória para formular alegações infundadas, para formular pleitos que sabe destituídos de base legal ou para achincalhar, desrespeitar, afrontar o magistrado em face de uma decisão que lhe tenha sido desfavorável.

É preciso, pois, medir as palavras, pois se ao poeta se concede licença para o uso das palavras, ao boquirroto, dependendo da afirmação que faz, podem ser reservados os rigores da lei.