Julgamentos sumários

A seguir, excertos do artigo a ser veiculado na imprensa local, a propósito dos julgamentos sumários.

“[…] Desprezar as provas, fazer vista grossa em face do erro judiciário, para mim, é o mesmo que pretender dar aparência de legalidade aos linchamentos que temos testemunhado, pois, numa ou noutra situação, o que se está, de rigor, é negando o Estado de Direito, decidindo à margem da lei, a pretexto de fazer justiça, flertando, todavia, com a barbárie.

O nosso comando, o nosso rumo, a nossa direção e no nosso prumo são ditados pelas normas existentes no ordenamento jurídico, daí por que nos é defeso fazer concessões não contempladas no direito positivo, a pretexto de fazer justiça, como fazem os que optam pela autotutela, inviabilizando, no mesmo passo, que ao réu seja oportunizado exercício de sua defesa, na amplitude contemplada pela nossa Constituição[…].

 

Letra morta

O art. 387, IV[1], do CPP, alterado pela Lei nº 11.719/08, pretendeu imprimir celeridade à pretensão indenizatória às vítimas de crimes, dotando a sentença penal condenatória transitada em julgado dos atributos de título executivo judicial (liquidez, certeza e exigibilidade), possibilitando o ingresso direto na via executiva.

Inobstante salutar a alteração legislativa, os juízes criminais, lamentavelmente, não estão conduzindo a persecução criminal de forma adequada quanto a essa questão, porque o valor indenizatório não é submetido ao crivo do contraditório e ampla defesa ao longo da instrução.

Fundo partidário

Vejo, na Folha de S. Paulo, de hoje, que os nossos representantes almejam aumentar para seis bilhões de reais o fundo partidário.

Atenção: eu disse 6(seis) bilhões de reais.

O absurdo da pretensão não é o valor em si. Democracia é cara mesmo.

O absurdo é saber que financiamos as eleições deles para que eles cuidem dos seus próprios interesses.

Isso é uma vergonha!

É impossível não se indignar.

O que mais me agasta é a passividade do povo brasileiro.

PODER E AFETOS

 

“[…]O desapreço, a falta de afeto do Imperador pela pacata, exemplar, dedicada e sofrida princesa Leopoldina, foi decisivo para nas dificuldades que ele teve para encontrar na Europa uma nova consorte, pois a sua péssima reputação cruzou o oceano, e as princesas no velho continente fugiram apavoradas só em se imaginarem reviver na própria carne o calvário de Leopoldina, triste e desprezada pelo homem a quem dedicou a sua vida e a quem o poder apenas estimulou a ser cruel e, às vezes, desumano, daí fazer por merecer a fama de sultão sul-americano, assassino da própria esposa, que transformou a corte brasileira em um bordel de luxo[…]”.

 

Tenho refletido muito sobre as consequências que decorrem do exercício do poder – seja absoluto ou moderado –  para o afeto nas relações pessoais, com destaque para as relações familiares. É que tenho testemunhado, pessoalmente ou na literatura, o mal que pode fazer o exercício do poder para as relações afetivas, muitas das quais, não se pode negar, sucumbem diante da falta de equilíbrio no exercício de um cargo relevante. Isso porque é a partir do poder que muitos revelam o seu caráter, as suas tendências – para o bem ou para o mal, mais para o mal do que para o bem -, a sua propensão para desprezar os afetos, mesmo os familiares, se necessário for, para se preservar no poder.

A vida do Imperador D. Pedro I, quer na visão de Isabel Lustosa (Ed. Companhia das Letras), quer na visão romanceada, de Javier Moro (Império é você: A fascinante saga do homem que mudou a história do Brasil,  Ed. Planeta, iBooks), e as barbaridades do Rei Henrique VIII (The Tudors, série exibida no Netflix), obras sobre as quais me detive mais recentemente, me levam, definitivamente, a essa constatação lamentável, ou seja, de que o poder – seja absoluto ou não – tem, sim, o condão de, quando conveniente ao detentor, romper os afetos familiares, tornar descartáveis as amizades e estimular as arbitrariedades.

Em face da miopia que povoa a mente de quem exerce o poder – que pode ser exemplificado, ademais, com as conflituosas relações de D. João VI e D. Carlota Joaquina, com a guerra fratricida entre D. Miguel e D. Pedro I, e a forma desumana e desrespeitosa com que D. Pedro I tratava D. Leopoldina, a quem só deu valor depois de morta, já que vivia embriagado e cego pelo prazer que desfrutava nos braços de Domitila -, aos afetos restam, muitas vezes, apenas as sobras, as migalhas das relações.

Os exemplos históricos – e atuais – dos rompimentos dos afetos em face do poder são incontáveis. Lembro, ademais, à guisa de ilustração, que Pedro, “o Grande”, por exemplo – como fez Henrique VIII com Ana Bolena -, mandou decapitar a amante e depois segurou a cabeça dela, usando-a numa aula de anatomia, despedindo-se dela, macabramente, com um beijo na boca; Ivan, o terrível, conhecido pela crueldade, matou o próprio filho.

As correspondências eróticas entre Alexandre II e sua amante e de Pedro I e Domitila, a famosa Marquesa de Santos, a qual acima me reportei, são mais dois exemplos da falta de afeto familiar que o exercício do poder proporciona, que se torna incontrolável quando aliado à falta de caráter dos que não têm pudor e nem limites morais para o seu exercício.

O desapreço, a falta de afeto do Imperador pela pacata, exemplar, dedicada e sofrida princesa Leopoldina, foi decisivo para nas dificuldades que ele teve para encontrar na Europa uma nova consorte, pois a sua péssima reputação cruzou o oceano, e as princesas no velho continente fugiram apavoradas só em se imaginarem reviver na própria carne o calvário de Leopoldina, triste e desprezada pelo homem a quem dedicou a sua vida e a quem o poder apenas estimulou a ser cruel e, às vezes, desumano, daí fazer por merecer a fama de sultão sul-americano, assassino da própria esposa, que transformou a corte brasileira em um bordel de luxo.

As pessoas embriagadas com o poder absoluto – que nem precisa ser tão absoluto assim, como anotei acima – sequer têm ouvidos pra ouvir conselhos dos que lhes prezam, mesmo porque os acólitos,  os que estão em volta do poderoso, às vezes só mesmo por interesse e por conveniência – como o Chalaça, o Sancho Pança de D. Pedro I -,  só costumam dizer aquilo que a eles convém, sendo, nesse cenário, uma louvável exceção posições como a de José Bonifácio que, certa feita, quando do seu retorno à corte, tempos depois de ter se afastado em face das posições intempestivas do imperador, recusou os cargos que este lhe ofereceu, dizendo que não almejava nenhum deles, pois o que desejava mesmo era servir de advogado do diabo, sem posição e sem remuneração, pretendendo, nessa condição, “ser livre para falar da maneira mais franca possível, e se me permitir mostrar os erros e falhas que vier a cometer, porque isso é de interesse de vossa majestade, de seus filhos e de todos nós.(Javier Moro, ob. cit. iBooks).

Para encerrar, devo dizer, convicto, que não permito que o poder interfira no afeto das pessoas que amo. Por isso, nada em mim mudou. Posso ser, sim, arrogante e prepotente como muitos pregam, por maldade ou com razão. Contudo, sou rigorosamente o mesmo de sempre. Frequento os mesmos lugares. Os amigos são os mesmos. A rotina é a mesma. As tertúlias continuam restritas à família e aos poucos, sinceros e leais amigos.

Decerto que o meu afeto e o meu carinho pelas pessoas que amo permanecem inalterados. Mas sei que não é o que ocorre com os que se embriagam com o poder, ainda que apenas uma fatia dele, pois esses costumam pensar que são muito mais do que efetivamente são. Por isso, são mais do que comuns, nos ambientes em que se sublima o poder, as disputas familiares, as desavenças entre parentes e amigos, as quais terminam por corromper os próprios afetos. Daí porque, em campo antípoda, tenho dito que, entre o poder e os meus afetos, não hesito em optar por estes.

E-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

O AÇOITE DAS PALAVRAS

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“[…]As palavras, reafirmo, são poderosas; mesmo quando se trata de uma gafe, ou seja, quando as palavras são pronunciadas por descuido, de forma inconveniente, o autor quase nunca é perdoado, mesmo porque, todos haverão de concordar, vivemos momentos de intolerância, exacerbada em face das disputas políticas e por pregações irresponsáveis que acabaram por dividir o pais entre “coxinhas” e “mortadelas”, “nós e “eles”, “esquerda e direita”, “progressistas e conservadores”[…]”.

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As palavras têm poder. Ouvi essa advertência muitas vezes. Atrevo-me a dizer, agora, em virtude da minha maturidade, que as palavras, quando mal produzidas – ou mal interpretadas – são como um relho: açoitam, maltratam, e podem colocar o autor delas em situação de verdadeiro constrangimento público, como se deu ontem com o nosso presidente, que, ao que parece, como a sua antecessora, não tem muita habilidade para falar de improviso.

Na vida, convivendo com o semelhante, descobri que eles têm muito mais poder que se possa imaginar, tanto que não são poucas as personalidades – contemporâneas ou do passado – que ficaram marcadas pelas palavras que disseram, e, muito mais grave ainda, até mesmo pelo que nunca disseram, mas que, ainda assim, viram seus nomes vinculados a frases ou palavras que lhes marcaram a vida para sempre, quer positiva, quer negativamente.

Exemplos dessa constatação não faltam. Voltaire, por exemplo, nunca disse a frase “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo“, conquanto seja uma frase simpática de democrática e em razão do que nunca sofreu nenhum censura.  Quem a pronunciou, em verdade, foi uma biógrafa sua, segundo consta das anotações históricas que se tem.

Da mesma forma, consta que a frase atribuída a Benjamim Franklin (uns dizem que pronunciada por Eça de Queiroz) –Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos, pelo mesmo motivo” – não teria sido pronunciada por ele, mas entrou para história como se tivesse sido dita  pelo presidente americano.

O certo é que, para bem ou para o mal, todo cuidado é pouco com as palavras, na certeza de que pode ocorrer, sim, até mesmo de atribuírem a nós aquilo que nunca dissemos, como ocorreu comigo certa feita, quando, numa audiência, pedi ao acusado que jogasse a goma de marcar fora porque estava atrapalhando a sua dicção, tendo chegado ao Tribunal e informação de que eu havia proibido – assim mesmo, arrogantemente, ditatorialmente –  o uso, por qualquer pessoa – funcionário, inclusive – de goma de mascar no meu gabinete e na salas das audiências.

O certo é que pessoas impetuosas, veementes – como eu – devem ter muito mais cuidado ainda com o que dizem. Elas, as palavras, ditas em momentos inoportunos, impensadamente, são um açoite que deve – ou deveria – ser evitado, conquanto nem sempre isso ocorra, pelos mais variados motivos.

As palavras, reafirmo, são poderosas; mesmo quando se trata de uma gafe, ou seja, quando as palavras são pronunciadas por descuido, de forma inconveniente, o autor quase nunca é perdoado, mesmo porque, todos haverão de concordar, vivemos momentos de intolerância, exacerbada em face das disputas políticas e por pregações irresponsáveis que acabaram por dividir o pais entre “coxinhas” e “mortadelas”, “nós e “eles”, “esquerda e direita”, “progressistas e conservadores”.

Dois exemplos recentes que reafirmam não só o poder das palavras como o clima de intolerância que vivemos. A presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia, sempre muito prudente com as palavras, deu uma entrevista à Globo News, em cuja oportunidade fez um comentário pejorativo e um pouco desconexo comparando Ministros a autistas. Pronto! O mundo desabou sobre a sua cabeça. Todos testemunharam as reações belicosas, mesmo que todos saibam, pela sua histórica prudência com as palavras, que  ela não pretendeu ofender ninguém. Mas, ainda assim, foi atacada veementemente, em face dos açoites produzidos pelas palavras proferidas.

O prefeito eleito de São Paulo,  João Doria (PSDB), sempre muito loquaz,  durante visita ao bairro de Perus, na Zona Oeste de São Paulo, durante uma entrevista, referiu-se AACD, chamando-a, inadvertidamente, de “Associação para Criança Defeituosa” (o nome correto da entidade é Associação de Assistência à Criança Deficiente). Doria dizia, na oportunidade,  que iria doar seu primeiro salário como prefeito à entidade. Doria citou o nome antigo da fundação, que por 50 anos (de 1950 a 2000) era chamada de Associação de Assistência à Criança Defeituosa. Pronto! Por isso também o mundo desabou sobre a cabeça do prefeito. Teve que se desculpar, mesmo sabendo-se que não falou de má-fé, que não teve a intenção de ofender.

É por isso que tenho dito, sem nenhuma originalidade, que se deve ter cuidado com as palavras. Mas nem sempre nos comportamos como recomendado, nem sempre somos compreendidos pelos que dissemos, sobretudo em face da abertura semântica de alguns termos, que impõe a todos nós, sobretudo homens públicos, maior desvelo ainda para com as palavras.

Nas sessões do TJ, como sói ocorrer, eu costumo fazer intervenções para expor os meus pontos de vista. Nem sempre sou compreendido em face da veemência com que falo. E mesmo tendo muito cuidado com as palavras, sei que corro riscos de ser incompreendido, como, de resto, acontece com que tem a coragem de se expor dizendo o que pensa e defendendo os seus pontos de vista.

É preciso, ademais, quando tivermos que repercutir uma afirmação, ter muito cuidado em contextualizar a frase, pois que, fora do contexto em que foi proferida, ela pode não retratar exatamente aquilo que se pretendeu dizer.

As consequências que decorrem de um descuido com as palavras podem ser irreparáveis. Podem gerar até ações por danos morais. Por isso, repito, é preciso ter cuidado com as palavras, cuidado que muitos não têm e que, pelo descuido, pagam um preço elevado, como se deu com o presidente FHC que, certo dia, pediu que esquecessem o que tinha escrito. Essa frase, tirada do contexto, lhe deu – e continua dando – muitas dores de cabeça. Ou, noutro exemplo, como se deu com Nietzsche que disse uma frase – “Deus está morto” – que, retirada o contexto, pois o real sentido da frase é que a é que a figura do “Deus clássico” perdeu valor entre os homens, e não uma simples negação da existência de Deus, até hoje é mal compreendida.

Mais grave ainda é quando a palavra ou frase sequer foi pronunciada, como se deu com Maria Antonieta, que, ao que se saiba, nunca mandou o povo francês, que não tinha pão para se alimentar, que se alimentasse de brioche. Ou com Maquiavel que, por uma distorção do seu pensamento, teria dito a famosa frase – “os fins justificam os meios” – que nunca pronunciou.

 

MORO INCOMODA

É impressionante a corrente do mal que se desenvolve em face do juiz Sérgio Moro. Há, nesse sentido, um contingente considerável de pessoas que se prestam a trabalhar para desqualificar o seu trabalho, o que é lamentável.

Não tenho dúvidas de que, não fosse Sérgio Moro, os brasileiros não estariam testemunhando a maior combate à corrupção da história do Brasil e, quiçá, do mundo.

Mesmo assim, uns poucos incomodados com o brilho da sua atuação, têm procurado, com argumentos periféricos, deslustrar o seu trabalho, alguns até pueris, do tipo “Mora está ficando arrogante”.

Ao juiz Sergio Moro os meus mais efusivos aplausos. A história do Brasil já reservou a esse grande brasileiro um lugar de destaque, merecido destaque.

Retomando as publicações diárias

Decidi deixar de publicar as minhas reflexões do Facebook e no Twitter.

Os motivos foram os mais variados. Acho que não convém mencionar aqui.

Posso dizer apenas que, para os meus objetivos, o melhor espaço mesmo é o proporcionado pelo  blog, razão pela qual entendi devesse abrir mão das demais mídias.

Vou tentar, na medida do possível, pouco importando o alcance do post, publicar, todos os dias, uma reflexão acerca das coisas que penso e acredito, comprometido apenas com a verdade.

A BESTA HUMANA SE REVELA

 

No romance A Besta Humana, de Emile Zola, o protagonista, Jacques Lantier, vive atormentado pelo desejo de matar as mulheres com as quais se relaciona.  Essa perversão, esse desejo, contido, algumas vezes, com muita dificuldade – e que constituem os momentos mais tensos e eletrizantes do livro  – não são, obviamente, do conhecimento dessas pessoas.

O romance referido trata, portanto, do caso típico de pessoa – no caso um maquinista respeitado e sedutor – que se relaciona com os semelhantes com aparente normalidade, sem que estes se deem conta da sua perigosidade, sem que sequer imaginem o perigo que permeia a relação.

No filme Dormindo com o inimigo, protagonizado por Julia Roberts, Martin Burney é um homem de boa aparência, bem sucedido e sedutor, que a princípio parece ser o homem que Laura (personagem de Júlia Roberts) sempre quis ter. Ocorreu, entretanto, que após o casamento, ele se mostrou um marido ciumento, compulsivo e violento. A conduta de Martin atormenta a esposa a ponto de esta, determinado dia, quando velejavam durante uma tempestade, aproveitar a oportunidade para simular o seu afogamento, para, com isso, desaparecer da vida dele.

Apanho, ao acaso, as duas obras em eferência, do cinema e da literatura – ambas símbolos das minhas paixões – apenas para reafirmar aquilo que não é mais que uma obviedade, ou seja, que convivemos com pessoas muitos próximas, às vezes dividindo o mesmo leito, sem que as conheçamos de fato. São verdadeiras bestas humanas – para usar o título da obra monumental de Zola – capazes de um desatino, a qualquer momento.

A outra obviedade que decorre das obras em comento é que, verdadeiramente, só conhecemos o ser humano quando convivemos mais amiúde com ele, pois não são poucos os que só revelam a sua personalidade (a besta que há dentro dele), passados longos anos de convivência.

Nos ambientes que favoreçam a reunião de pessoas diferentes tem de tudo. As bestas humanas neles habitam, se manifestando das mais variadas formas. Tem as persuasivas, as dispersivas, as arrogantes, as que se julgam donas da verdade, as que não respeitam a posição dos colegas, as que não gostam de ser contrariadas, as que se julgam superiores,  as que detestam ter os seus argumentos confrontados, situações que, de rigor, não deveriam surpreender, pois, afinal, o ser humano existe mesmo é para surpreender,

Somos assim! Paradoxalmente, da mesma forma que julgamos, precipitada e equivocadamente, quem não conhecemos, somos surpreendidos quando nos defrontamos com o verdadeiro perfil psicológico de pessoas que imaginamos conhecer muito bem. Daí por que não devemos nos iludir com as aparências, com as falsas cortesias, com os abraços que são disfarces, com o sorriso que não passa de dissimulação, com o beijo que não traduz o verdadeiro sentimento, situações que, todos haverão de concordar, permeiam a convivência do ser humano em sociedade.

A verdade é que ninguém, pelo menos ao primeiro contato, se mostra por inteiro. As circunstâncias, às vezes, nos impõem uma conduta que não retrata o que somos ou pensamos, como se pode inferir dos trechos de uma carta enviada a Deus, por Celie, protagonista do romance A cor púrpura, de Alice Walker, na qual ela confessa: “Todo mundo fala do tanto queu sou boa pros filho do Sinhô___. Eu sou boa pra eles. Mas eu num sinto nada por eles. Fazer carinho nas costa do Harpo num é nem como acarinhar as costa de um cãozinho. É mais como acarinhar um pedaço de madeira. Não uma árvore que vive, mas uma mesa, um guarda-roupa. De toda maneira, eles também num gostam de mim, por melhor queu seja.”

O ser humano – tento, aqui e agora, refletir sobre a questão, sem nenhum conhecimento teórico, à luz apenas da minha experiência de vida e profissional, quer como promotor de justiça, quer como magistrado – não cansa mesmo de surpreender. Por isso, tenho dito que ele pode ser, ao mesmo tempo, o pior e/ou o melhor animal sobre a terra, em face mesmo de sua capacidade de dissimular, de escamotear, de fingir, de apunhalar o igual pelas costas, de abraçar, beijar, ainda que o seu desejo mesmo seja de escarrar no rosto de quem elegeu como desafeto. Nenhum outro animal é capaz de agir assim.

Há sempre no recôndito da alma de alguém algo desconhecido, um lugarzinho impenetrável, imperturbável que guarda só pra si, até o dia em que aflora, de súbito, surpreendendo as pessoas que estão em seu entorno, revelando, por inteiro, a besta humana que sempre foi.