LAMENTO E ARREPENDIMENTO

Em outra ocasião, aqui neste mesmo espaço, tive a oportunidade de dizer que acho uma desprezível arrogância alguém não se permitir o arrependimento ou concluir que, se tivesse que voltar ao passado, faria tudo outra vez, como se fosse infalível.

Nesse sentido, não é incomum ouvir as pessoas dizerem, com excessiva soberba: não me arrependo de nada do que fiz até agora. Ou, noutro giro, mas com igual arrogância: se tivesse que começar de novo, faria tudo outra vez.

Dito de uma forma ou de outra, o que se infere mesmo das afirmações acima lançadas é que há pessoas que não se permitem admitir o erro, e por isso não aceitam mudar alguma atitude equivocada que tenha protagonizado no passado.

Pessoas que pensam assim tendem a pagar um preço elevado pela arrogância, pois não existe quem, tendo passado pela vida, não tenha motivos para o arrependimento, para o qual, importa consignar, só há um momento: o momento certo.

Se não formos capazes de perceber o momento certo do arrependimento, daí em diante, a destempo, portanto, só pode ocorrer o lamento, aqui entendido como a expressão de uma dor. É que, fora de hora, o arrependimento é lamento, autoflagelo, autopunição.

A verdade é que há pessoas, todos nós testemunhamos, que só demonstram algum arrependimento depois do caldo derramado, diante, muitas vezes, da finitude, quando mais nada pode ser feito para reparar os erros cometidos.

Um câncer devastador em face do cigarro, uma cirrose hepática em face do consumo imoderado de álcool, um enfarto em face de uma vida desregrada não permitem, é bom que se diga, um arrependimento eficaz, senão o lamento tardio.

Por isso, tenho dito, fruto da minha experiência de vida, que há tempo para o arrependimento, como há tempo para plantar e para colher.

Arrepender-se a tempo e tentar minimizar as consequências dos erros cometidos tem que ser, ademais, decorrente de uma ação espontânea. Nessa perspectiva, não vale o arrependimento imposto, incutido por circunstâncias externas, decorrentes, portanto, de pressões exógenas, premido pelas circunstâncias, pelas adversidades, porque aí, é necessário redizer, não se trata de arrependimento, mas de lamento, quando não mero oportunismo. O arrependimento tardio é, repito, um não arrependimento, um lamento oportunista.

Há quem pense que basta amar as pessoas. E não são poucos os que não percebem, portanto, que não vale apenas amar. É preciso cuidar, ademais. E quem ama verdadeiramente, cuida, pois amar sem cuidar é como se não fosse amor; se é amor é amor internalizado, egoístico, inconsequente, descuidado, sem efeito prático. Logo, é a qualidade das relações, os sentimentos que cultivamos, o amor que dedicamos aos entes queridos que determinam a qualidade e profundidade das relações que estabelecemos.

Contudo, é forçoso admitir, não são poucos os que, em face da família, não amam e não cuidam, para, no final, já nos estertores da vida, quando não há mais tempo para o arrependimento, cobrarem atenção, amor e afeto daqueles para os quais negaram os mesmos sentimentos.

Quem não valoriza o amor filial, quem abandonou a quem deveria cuidar, pode ter certeza de que, muito provavelmente, se não for capaz de se arrepender a tempo e hora, receberá em contrapartida, nos momentos mais angustiantes de solidão, as migalhas que restaram do relacionamento que nunca valorizou, pois, se na vida somos um poço vazio de sentimentos, se pensarmos apenas em nós mesmos, vazios também serão os momentos que antecedem a finitude.

A verdade é que o que passou passou, e sobre isso não há o que discutir e nem o que fazer, razão por que, quando muito, o que podemos é especular, convindo trazer à colação, para ilustrar e para reafirmar a imutabilidade do passado, uma passagem da história protagonizada pelo líder chinês Deng Xiaoping, o qual, indagado sobre como teria sido escrito a história se Kennedy não tivesse sido assassinado, respondeu, irritado, na lata: “A senhora Kennedy não teria casado com Onassis”. Com isso ele apenas pretendeu reafirmar o óbvio: não dá pra ficar perscrutando em face de situações consolidadas, pois não se muda a história à luz de um juízo de especulação.

Passados os anos, aquele que não foi capaz de amar, de valorizar os seus entes queridos, que só pensou em seus próprios interesses, que não soube compartilhar, se solidarizar, enfim, não terá condições, por falta de tempo, de, aproximando-se o fim, reconstruir a relação que solapou, quando devia cultivar. Ademais, os que não cultivam carinho, amizade, consideração e respeito dos seus, na finitude tenderá a sentir uma dor tão lancinante que nenhuma morfina será capaz de fazer cessar, porque é muito mais que dor física.

Por tudo isso, é que devemos amar, nos dedicar, nos solidarizar, nos entregar e viver para as pessoas que verdadeiramente nos amam, pois, creiam, diante dos infortúnios, das dificuldades pelas quais todos haveremos de passar um dia, se não formos capazes de amar e nos dedicar verdadeiramente a quem nos ama, tenderemos, quando mais necessitarmos, apenas lamentar pelas nossas atitudes. Daí porque, como diz o roqueiro, é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar para pensar, na verdade não há mesmo.

É isso.

SOBRE IMPOSTOS, FUNDO ELEITORAL E PRÓTESE

O Estado, para se manter, precisa dos impostos que pagamos. Sem impostos não se constroem hospitais e estradas, por exemplo.
Sem o dinheiro dos impostos, ademais, a máquina do Estado simplesmente não funciona; não se compra sequer gaze para um simples curativo.
Por isso, é justo, é racional que nos cobrem e que paguemos os nossos impostos.
Nesse sentido, e objetivando o bem comum, é natural que a cobrança se faça mediante imposição.
Se é verdade que o Estado não funciona sem os impostos que pagamos, por que então os pagamos com alguma má vontade?
Vou tentar responder a essa questão com apenas dois exemplos do mau uso do dinheiro coletado junto ao cidadão pagador de impostos, os quais, somados a outros tantos, nos levam a um agastamento natural quando somos compelidos a pagá-los.
Mas, antes, retrocedo no tempo, para ilustrar essas reflexões.
Herodes Antipas, o quinto filho de Herodes, o Grande, vinha fazendo tudo para brutalizar e despojar o povo da Galileia de tudo que tinha.
Judas de Gamala se insurgiu contra a cobrança excessiva de impostos, porque, ele sabia, todos sabiam, enfim, serviam mais ao esbanjamento e menos ao interesse público.
Os soldados de Antipas capturaram Judas de Gamala e o crucificaram, tendo antes sido torturado publicamente para que a multidão pudesse testemunhar o seu martírio, presentes ao suplício os seus filhos Jacó e Simão.
As torturas infligidas a Judas de Gamala tinham um claro objetivo, qual seja, lembrar a todos que, gostassem ou não, os impostos tinham que ser recolhidos.
Judas de Gamala foi amarrado nu com as mãos sobre a cabeça e foi açoitado por dois soldados com seus chicotes de cabo curto, cujas três tiras de couro possuíam bolas de chumbo e lascas de osso de carneiro nas pontas, para potencializar o sofrimento.
A cada chicotada, as tiras de couro rasgavam a pele do músculo de Judas de Gamala, enquanto o chumbo e as lascas de osso deixavam feridas profundas, causando hemorragia interna.
O desnudamento e as chibatadas, que antecediam a crucificação, eram uma forma de humilhação, e, de certa forma, mais um exemplo para que as pessoas não se insurgissem contra o pagamento de impostos.
A lei judaica diz que um homem só pode ser açoitado 39 vezes, conforme está escrito: “quarenta menos um”. Mas com os romanos não tinha dessas. A vítima, com efeito, podia ser açoitada incontáveis vezes, até partir para a crucificação.
Judas buscara libertar o povo da Judeia da tributação injusta aplicada por Roma e Herodes, tendo conclamado seus conterrâneos judeus a se erguerem contra os seus opressores, inconformado com a cobrança abusiva e com o mal uso do dinheiro público.
A crucificação, no Império Romano, era, com efeito, a maneira mais dolorida de execução; tão dolorosa que era proibida a prática contra cidadãos romanos.
Decerto que Judas de Gamala não foi o único a se insurgir contra a opressão romana. Como ele muitos lutaram pela liberdade e pagaram com a vida pela audácia; mas foram, também como ele, esquecidos.
Destacado o sofrimento infligido a Judas de Gamala, apenas para registrar que não é de hoje que as pessoas lutam contra o mau uso do dinheiro público arrecadado, retomo à pergunta que fiz no início dessa crônica: se os impostos são tão necessários, por que então os pagamos com tanta má vontade?
Explico a minha compreensão, formulando novas indagações.
Como Judas de Gamala reagiria com a destinação de 3,7 bilhões de reais, dos impostos que pagamos, para o chamado Fundo Especial de Financiamento de Campanha (Jornal o Globo de 12/09), sobretudo ante a ciência de que sobre essa verba, que poderia ser destinada a obras em benefício do cidadão – escolas, hospitais, estradas etc -, o controle e fiscalização são meramente formais?
Num país com tantas carências, com as pessoas mais humildes morrendo nas filas dos hospitais ou jogadas nos corredores desses mesmos hospitais, para ficar apenas no exemplo mais candente, como não se indignar com a destinação dessa verba para o famigerado Fundo Eleitoral, já para as eleições municipais vindouras?
E o tratamento odontológico do Deputado Pastor Feliciano, ao custo de R$157.000,00 (cento e cinquenta e sete mil reais), pago com o dinheiro dos impostos que recolhemos?
Como não reagir?
Como não se revoltar?
Convenhamos, não é para alimentar as extravagâncias das campanhas eleitorais, nem para pagar a prótese do deputado Pastor Marco Feliciano, para ficar apenas nos dois exemplos que escolhi para essas reflexões, que nos sacrificamos para pagar os impostos que pagamos.
Nesse cenário, é mais que justa a minha, a sua, a nossa indignação em face do mau uso do dinheiro público amealhado com o pagamento de impostos.
Diante desse panorama, mais grave que a destinação de três bilhões e setecentos milhões para o Fundo Eleitoral e os R$157.000,00 (Cento e cinquenta e sete mil reais) destinados ao pagamento do tratamento dentário do Deputado Marco Feliciano, é a passividade com que a população recebe notícias desse jaez, muitas vezes veiculadas sem grande destaque na imprensa, como se fosse algo natural, para, em seguida, cair no esquecimento.
É claro que todos temos consciência cívica de que devemos pagar os nossos impostos. Mas é justa, da mesma forma, na mesma medida e com essa mesma consciência cívica, a nossa indignação com descalabros dessa ordem, que, cá do meu canto, recebo como uma afronta, por isso mesmo digna de registro, ainda que sem nenhuma consequência prática.
É isso.

COM OS PÉS NO ATRASO

A inspiração para essa crônica veio da obra monumental de Lilian Schwarcz Moritz e Heloisa M. Starling, Brasil: Uma Biografia.

Segundo as mencionadas autoras, em passagem que entendi inspiradora, o viajante Louis-Albert Gaffre contava que, após a abolição, as negras, de posse de pequenas economias, compravam calçados, acessórios que lhes eram até então interditados.

Segundo o mencionado viajante, a procura desses verdadeiros ícones da liberdade se revelou uma decepção. É que os pés outrora descalços, calejados, acostumados ao contato direto com o chão, não aguentaram “tanta modernidade”.

Noticiam as autoras que as testemunhas da época relatam ter observado, tanto nas ruas da cidade quanto no campo, negras carregando pares de calçados não nos pés, mas apoiados nos ombros, como bolsas a tiracolo ou troféus. Mas a liberdade, de toda forma, significava o arbítrio de poder comprar e o usar o que se quisesse, e de ter nome e identidade.

Em face do funcionamento absolutamente discriminatório e seletivo – irritantemente seletivo e discriminador -, das instâncias persecutórios brasileiras e das ações dos nossos representantes no Congresso Nacional, é possível estabelecer um paralelo dos dias presentes com a situação fática acima descrita, para dizer que, em terras brasileiras, estamos condenados a viver no atraso, condenados a carregar sobre os ombros os maiores sintomas desse subdesenvolvimento, em face da nossa proverbial tendência a privilegiar as classes mais favorecidas, punindo-as apenas excepcionalmente, contaminadas que estão as instâncias de controle e de investigação pelos vícios do passado que as impedem de cumprir bem os seus objetivos, contando, lamentável dizer, com o beneplácito da maioria dos nossos representantes.

É dizer, em terras brasileiras, quando se trata de punição em face de um mal feito, as instituições persecutórias se apresentam, ainda nos dias presentes, com os mesmos vícios que as tornaram – e as tornam – desacreditas na sociedade; como os escravos libertos a que me reportei acima, as instâncias de controle têm os pés fincados num período que relutamos em ultrapassar.

A verdade é que ainda não evoluímos, ainda não alcançamos nenhuma maturidade nesse sentido. E pelo fato de ainda não termos ingressado na modernidade, vivemos com os pés fincados no passado de impunidade, atraso que pode ser potencializado em face da pretendida lei de Abuso de Autoridade no aguardo de manifestação do Poder Executivo.

Nesse cenário, as instituições persecutórias não evoluem, estabelecendo contato direto e exclusivo com a periferia criminosa, salvante um ou outra exceção, bastando, para confirmar o que digo, fazer um levantamento das ações penais em curso, dos encarcerados provisórios jogados em nossas masmorras e dos condenados mantidos segregados nas penitenciárias, com a consagração de um estado de coisas inconstitucional que a ninguém parece incomodar, muito menos aos graduados representantes do povo, cujo exemplo mais evidente de tentativa de perpetuação da impunidade da classe de cima é o projeto que tipifica os crimes de Abuso de Autoridade, ou Estatuto do Criminoso, como jocosamente tem sido chamado o mencionado projeto.

Aqui e acolá, admitamos, há uns poucos atores flertando com a modernidade, verdadeiros heróis – por isso mesmo abespinhados pelo sistema – que insistem na busca pela modernidade, para usar a mesma expressão do viajante Louis-Albert Gaffre; que sonham e lutam, quase sempre embalde, para que a lei seja destinada a todos.

Nesse panorama, é como se ainda andássemos com os pés no chão, como andavam os escravos de antanho. E sempre que tentamos evoluir, calçando os sapatos da modernidade, somos surpreendidos com um retrocesso, como se vê em face do Projeto de Lei antes mencionado, que, se sancionado, nos levará, inapelavelmente, a colocar, metaforicamente, os sapatos sobre os ombros, como a nos advertir que ainda não é chegada a hora da liberdade, do tratamento igualitário entre os destinatários da persecução criminal.

Definitivamente, as instâncias persecutórias só têm os olhos voltados para os mais pobres, para os quais destinam todo o seu rigor, na mesma medida com que demonstram, por seus agentes mais destacados, a sua parcimônia e leniência quando se trata dos mais aquinhoados, protegidos, por ação ou omissão, das ações de agentes públicos inescrupulosos e sem compromisso com o tratamento igualitário preconizado em nossa Carta Política.

Nós não nos libertamos – e nem temos perspectiva de nos libertar – de um sistema punitivo historicamente discriminador, situação que se agrava com o famigerado Projeto de Lei antes mencionado.

Nesse cenário, triste admitir, ainda trilharemos por muito tempo, em face de tudo que tenho testemunhado ao longo de mais de trinta anos nessa lida, com os pés descalços, calejados, sem perspectiva de alcançarmos a modernidade.

É isso.

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

A glória do mundo é passageira, como diz o brocardo latino que tomei de empréstimo para o título desse artigo. Nesse sentido, só um tolo – que não é meu caso – se ilude com o poder, pois o que se vive nele é absolutamente efêmero. Tenho dito isso, repetidas vezes, a reafirmar a minha convicção de que a salvação da alma está fora do poder.
Ou, noutro giro, a salvação da alma não está no exercício do poder, conquanto admita que haja os que, embevecidos em face do poder, imaginam que o seu exercício salvará a sua alma; e nessa perspectiva, perdem a noção e os limites de sua ação.
A verdade é que a vida acelera, e o tempo passa com uma rapidez que só não impressiona os que, por qualquer razão, perderam o rumo, a direção, o discernimento. A vida acelera, repito, e nós vamos juntos – sem opção, por não termos o poder de impedir a passagem inevitável do tempo. E assim, a vida se esvai, levada pelo tempo, inapelavelmente.
É preciso, pois, estar preparado para, inevitavelmente, deixar a ribalta para os novos atores; e que sejamos capazes de agir, nesse sentido, por vontade própria, antes que o façamos vergastados pelas leis da natureza, as quais, conforme sabemos, não fazem nenhuma concessão acerca dessa questão.
Logo, é preciso estar atentos e preparados para os efeitos que o tempo nos impõe a todos, pois aquele que não se preparar para essa realidade será surpreendido com a constatação de que só lhe restou, para ser curada, a ressaca que decorre do tempo que passou sem que se desse conta de que tudo passa, embriagado pelo exercício do poder.
O tempo, indomado, a(quase) tudo destrói; só não destrói a nossa história, o que edificamos – de bom ou de ruim. Logo, a única certeza que tenho é a de que, ao fim e ao cabo, só restará mesmo aquilo que construímos, que deixamos para as gerações futuras: o bom exemplo, a boa conduta, a retidão e o caráter.
E assim, a cada dia, a cada momento, aqueles que exercem o poder com aptidão, com abnegação, com devoção, com os olhos voltados apenas para as suas finalidades precípuas, vão construindo a sua história, sedimentando o seu legado para as gerações futuras.
Nesse sentido, a história que cada um de nós escreve pode ser uma boa ou má história. Tudo depende da maneira como exercemos o poder e se, nesse sentido, formos capazes de deixar bons exemplos nos quais as futuras gerações possam buscar inspiração.
Quero, sim, ser lembrado, no futuro, como um magistrado que pelos menos tentou ousar, romper os paradigmas, que abriu mão de nacos do poder, que a tantos fascinam, em defesa de suas convicções, na firme compreensão de que não vale o poder a qualquer custo.
Eu não quero ser lembrado como um magistrado capaz de qualquer ação ou omissão para angariar simpatias que possam ser usadas como moedas de troca para alcançar cargos relevantes.
Eu faço a minha história. E cada um, por óbvio, faz a sua. Umas mais e outras menos relevantes; algumas mais ou menos dignas. Mas, ainda assim, história, em razão da qual todos nós um dia seremos lembrados.
Triste daquele que passa pelo poder e não constrói uma história digna. Triste dos que pensam que o poder é apenas um instrumento de satisfação e realização pessoais.
O poder passa; a nossa história fica. Mesmo os ditadores, ainda que não creiam na finitude, um dia deixam o poder – ou pela morte ou pelo golpe.
Por tudo que acima expus é que reafirmo que o poder é a ilusão dos tolos, motivo pelo qual tenho dó dos que exercem o poder com os pés na cabeça, cultivando apenas o seu ego ou para dele se servir, sem espírito público e sem a dimensão do múnus.
Quem assim pensa e age, tende a, no futuro, quando o poder lhe escapar das mãos, ficar sozinho, num ostracismo que já matou de tédio muitos daqueles que, no poder, imaginavam-se super-homens, com superpoderes, acima do bem e do mal.
Quando digo que o poder não deve ser exercido a qualquer custo e que as pessoas encarapitadas nele devem ter a exata dimensão de até aonde podem ir, lembro de uma passagem interessante da história que vale a pena ser lembrada, à guisa de ilustração.
Pois bem. Graciliano Ramos, prefeito de Palmeira dos Índios, mandou recolher os animais que ficavam soltos na rua. O funcionário destacado para cumprir a ordem, depois de um dia exaustivo de trabalho, retornou para fazer um balanço de suas atividades.
Graciliano Ramos o indagou, então`:
-E ai, recolheu todos os cachorros?
Ao que respondeu, em tom bajulatório, o funcionário:
-Sim, excelência.
E observou, em seguida:
-Menos o do seu pai.
Graciliano o repreendeu, seca e duramente, traduzindo o que para ele representava o múnus público:
– Prefeito não tem pai.
É isso.

SOB O DOMÍNIO DAS PAIXÕES

Volto ao tema sobre o qual já refleti em outras oportunidades, em face da compreensão que tenho que, nos dias atuais, os debates de ideais descambaram para a insensatez e incivilidade. Dessa forma, está quase impossível “os de cá” sentarem com “os de lá” para uma discussão civilizada em torno de questões de interesse público, situação que, de resto, contaminou até os nossos pretórios, como todos nós testemunhamos, mesmo na nossa Suprema Corte.

A propósito do tema em questão, inicio lembrando, com os estoicos, que ser sábio é tomar a razão como guia, enquanto ser louco é deixar-se levar ao sabor das paixões.
À luz dessa lição, pode-se afirmar, em vista do que testemunhamos nos dias presentes, que somos um pouco loucos, pois, não raro, abdicamos da razão para agir movidos pela paixão; e, mesmo pagando um preço alto em face de uma atitude insensata, persistimos agindo, algumas vezes, sob o domínio das paixões.

Diante dessa realidade, tenho afirmado que o homem não deveria, sob qualquer pretexto, se orgulhar de vencer uma disputa – sobretudo no campo das ideias – que não fosse pela razão e pela inteligência, pela força dos seus argumentos, racionalmente esgrimidos, sem violência – verbal ou física -, sem agressão, sem baixaria, sem ataques covardes, sem estar dominado pela paixão, portanto.

Todos os que enfrentam argumentos contrários sob o domínio das paixões, esmurrando a mesa, agredindo verbalmente, parolando acima do tom civilizado, assim o fazem por lhes faltarem força argumentativa. Daí a opção pela estridência, pelo barulho e pela descortesia, pela falta de respeito, pela utilização de argumentos pobres e incivilizados, numa postura que só galvaniza a simpatia dos seus iguais.

A força física e os impropérios, os ataques grosseiros, enfim, não deveriam permear um debate de ideias entre pessoas civilizadas, motivo pelo qual me recuso a emprestar a minha lucidez a uma discussão incivilizada, ainda quando sou instado, mediante provocação, a fazê-lo, pois compreendo que participar desse tipo de discussão, que nada constrói, que nada edifica, seria emprestar a minha aquiescência à falta de compostura, que não me permito em face do poder que exerço, que exige de mim um comportamento altivo e digno.

Desde a minha compreensão, ou o opositor tem força argumentativa ou se cala e dá a contenda por perdida. Daí que, na minha avaliação e na de tantos quantos como eu optam pela racionalidade intelectual, não valem os argumentos laterais, os argumentos menores, o menoscabo, enfim, como linha argumentativa.

Ademais, não são o tom de voz alterado, o murro na mesa, a postura estridente e desequilibrada, enfim, que definem o vencedor numa pugna de ideais. Logo, não é agindo assim que fazemos prevalecer as nossas ideias.

Muitas vezes, é preferível sair “derrotado” que “vencer” um debate na base da lei do mais forte, do grito e do achincalhe, pois atitudes dessa ordem traduzem, em verdade, atos de pura covardia, permeada de pobreza de argumentos e de baixaria que, entre os racionais, não valem como argumentos e nem enaltecem o contendor; antes o diminuem aos olhos dos dotados de capacidade discernimento e de compreensão da realidade.

É inaceitável, de mais a mais, que o homem, como ser racional, não se dê conta quando, numa disputa, deixou de agir com a razão para agir movido pela paixão que oblitera a mente, que leva à irracionalidade, a qual leva aos desatinos e aos caminhos nos quais só trafegam os irracionais.

Na defesa de uma tese, de uma linha de argumentação, o debatedor que levanta a voz, que dá murro na mesa, que parte para agressão pessoal e para descompostura, na tentativa de sobrepujar os argumentos do oponente, o faz como agem os animais selvagens, ou seja, com o uso da força e da violência, justificáveis no mundo animal, mas intoleráveis nas relações entre pessoas civilizadas.
Nesse cenário, fico sempre com a sensação de que quem mais grita é quem menos argumentos tem para o debate, quem menos tem razão. Por isso, eleva a voz, gesticula, arregala os olhos, aponta o dedo, fica ruborizado, tem a sensação de desmaio, olha para os lados em busca de um aceno, de uma manifestação que seja, na vã tentativa de se convencer a si próprio de que está certo. Uma “vitória” nesses moldes, antes de orgulhar, deve, ao contrário, envergonhar o contendor.

Os leões, os ursos, os javalis, os tubarões, dentre outros, combatem com a força física, o que é muito natural; já o homem, inobstante, dotado de inteligência e discernimento, não deve usar da violência, nas suas mais diversas formas, para sobrepujar aquele que enfrenta eventualmente como oponente, se a pugna se dá apenas no campo das ideias.

Buscando força ilustrativa na obra ficcional de Thomas Morus (A utopia), anoto que os utopianos lamentavam e chegavam mesmo a se envergonhar com a informação de que, numa disputa, um dos contendores possa ter alcançado a vitória de forma sangrenta, considerando mesmo uma loucura alcançá-la por esse preço. Os mesmos utopianos se ufanavam quando a vitória era alcançada pela inteligência e pela astúcia, pela força dos argumentos.

E assim, quando numa discussão me virem deixar o “campo de luta”, não pensem que me deixei abater, que saí derrotado; é que, simplesmente, me recuso a discutir qualquer questão que não seja civilizadamente.

É isso.

SOBRE MENTIRAS

Nada é mais nefasto para as relações que travamos, seja em casa ou no trabalho, do que não acreditar no interlocutor. Daí porque é desalentador ouvir uma história e não poder confiar naquele que a conta, assim como é desanimador constatar que, dependendo do interlocutor, não é possível acreditar na desculpa que apresenta.

Decerto que, algumas vezes, é preciso apresentar uma desculpa, tergiversar aqui e acolá, no afã de preservar uma relação ou de evitar um aborrecimento. Mas isso não pode ser a regra, pois mentira deve ser sempre uma excepcionalidade.

A regra em face da qual não se pode fazer concessões é a verdade, uma vez que não convivemos bem com o tipo mendaz, aquele dado a conversa fiada, conversa para boi dormir, como se diz na minha terra.

Mas até aí, quando se tratam de relações interpessoais – privadas, portanto – não há maiores consequências. A gente pode, ou não, crer no interlocutor, e a vida segue, sem maiores consequências.
Todavia, quando o vetor da mendacidade serve a um processo, como testemunha, por exemplo, a situação exige redobradas cautelas, em face das consequências que decorrem de uma mentira formalizada nesse ambiente, o que pode, sim, levar à condenação um inocente ou à absolvição um culpado.

Aí, estimado leitor, o bicho pega, para usar uma linguagem coloquial. Por isso é que, diante de uma prova testemunhal, exige-se do magistrado algo que vai muito além da sua capacidade técnica.
Muitas vezes, precisamos penetrar na alma da testemunha, nas suas entranhas, sob pena de corrermos o risco, sempre presente, de prolatar uma decisão dissociada da realidade, posto que uma testemunha mendaz pode decidir, como dito acima, a vida de um acusado.

Logo, para acolher um depoimento que possa estar contaminado por algum interesse, o magistrado tem que agir com muito zelo e atenção. Nesse sentido, é necessário perscrutar, analisar com o necessário rigor, por exemplo, quais as forças exógenas e endógenas que possam ter desvirtuado esse ou aquele depoimento; desvirtuamento que pode levar uma testemunha a mentir para favorecer ou prejudicar um determinado acusado.

Não é tarefa fácil, nada obstante. Daí que, algumas vezes, apesar da íntima convicção que temos acerca da culpa de um determinado acusado, somos compelidos a absolvê-lo por falta de provas ou por insuficiência das provas produzidas.

Todos os juízes criminais já se defrontaram, incontáveis vezes, com esse dilema, ou seja, de ter que decidir, para absolver ou condenar, com base, primordialmente, em provas testemunhais, a mais falível, volúvel e perigosa das provas.

Diante desse quadro, o que se espera é que o juiz se esmere, até onde é possível em face dos comandos legais, no momento da produção da prova testemunhal e na sua avaliação.

Nesse sentido e a par dessa realidade, é que não se pode inquirir – e aqui me reporto especialmente às partes – testemunhas com o piloto automático ligado, com indiferença ou falta de disposição.

Nenhum juiz, nem o Ministério Público e nem a defesa podem sentar a uma mesa de audiência para inquirir uma testemunha sem antes ter analisado, com percuciência e vagar, o processo, para se cientificar, em profundidade, daquilo que convém indagar das testemunhas, sem o que não haverá condições de aferir, ao fim e ao cabo da instrução, quanto à veracidade do depoimento que está sendo tomado.

O que vi a minha vida inteira foi o total desprezo dos autos até o início da audiência – consideradas, claro, as exceções de praxe -, motivo pelo qual não foram poucos os que, nesse panorama, só tiveram conhecimento dos fatos ao tempo da realização da audiência, dando lugar a erros judiciários e injustiças.

Não dá bom exemplo o promotor, o juiz ou o advogado que só manuseia os autos no momento da audiência, pois, quem pretender fazer um trabalho minimamente escorreito, deve se antecipar às audiências, para saber acerca da prova a ser produzida.

O que têm a dizer as testemunhas em um processo não pode ser, como ensina Leandro Karnal, apenas uma explosão de som. Mas para que isso não ocorra, a responsabilidade é toda dos atores do processo, principalmente das partes, em face da vigente legislação, que relega a atividade do juiz a um segundo plano quanto a audição das testemunhas.

Em face de uma inquirição descuidada é que, muitas vezes, a despeito do estrépito do crime, a despeito das cobranças da sociedade, somos obrigados a absolver determinados acusados, à míngua de prova induvidosa acerca da sua participação na empreitada criminosa, a considerar, nessa perspectiva, a relevância da prova testemunhal.

Uma testemunha mendaz pode levar o acusado ao inferno ou ao paraíso. Por isso o zelo, a perseverança, a sofreguidão com que deve ser colhida a prova testemunhal, exigindo-se do MP e da defesa, que, antes das audiências – bem antes mesmo! – leiam os autos do processo, para terem firmeza sobre as questões que formularão, pois só assim é possível, com razoável probabilidade, saber se a testemunha falseia a verdade, para o bem ou para o mal.

É isso.

MELHOR INVESTIGAR

Tenho dito que se houver fundadas suspeitas da prática de ilícitos – penal ou administrativo – por um homem público, o melhor que se faz é investigar da forma mais ampla possível, para que todas as dúvidas sejam dissipadas.

É o preço que todos nós pagamos pela opção que fizemos, pois, sobre a honradez de um homem público, não devem existir dúvidas, ainda que razoáveis. Logo, é preciso deixar que as ações das instâncias de controle fluam naturalmente, porque é do interesse público que as suspeitas – eu disse suspeitas, das quais pode ou não haver indiciamento, que é ato posterior ao estado de suspeito – sejam esclarecidas.

O mais relevante patrimônio de um homem público, todos haverão de concordar, é a sua honorabilidade, que não deve estar sob questionamentos. Daí que, havendo razoável dúvida de desvios de conduta, não pega bem criar óbices às investigações.

Investigação em face de suspeitas razoáveis de má conduta do homem público é um imperativo impostergável e traduz o estágio de evolução de um povo, tanto que, em países civilizados, a simples suspeita impõe ao investigado o dever ético de sair da ribalta, renunciando ao cargo que eventualmente ocupe.

Dessa forma, o melhor que se faz, com todas as consequências que isso encerra, é deixar investigar, se colocar à disposição das instâncias de controle para quaisquer esclarecimentos, pois, afinal, se o indiciamento pressupõe um grau elevado de certeza da autoria, elas, a autoria e a materialidade do ilícito, só podem ser aferidas em face das investigações que forem levadas a cabo.

Desde a minha compreensão, não pega bem o uso de artifícios, mesmo os legais, para impedir que as investigações fluam. Tratando-se de homem público, sobretudo o que têm uma outorga popular, com muito mais razão deve se submeter, naturalmente, às eventuais investigações.

Eu, cá do meu canto, tenho sérias restrições aos que pregam inocência, mas que, no mesmo passo, mesmo ante veementes indícios da prática de algum ilícito, criam empecilhos às investigações, deixando uma amarga sensação de que podem, sim, ter alguma dívida a ser reparada, pois, respeitadas as balizas legais, nada justifica criar estorvas às investigações, máxime quando precedidas de fortes suspeitas de que possa ter havido mesmo algum desvio de conduta.

Ante fundadas suspeitas, por exemplo, de aumento patrimonial incompatível com os rendimentos auferidos por determinado homem público, o correto mesmo é investigar; e, nesse sentido, o maior interessado nas investigações deveria ser a pessoa suspeita, pois que somente em face delas pode-se dirimir eventuais dúvidas acerca de sua conduta, malgrado os dissabores que decorrem da condição de investigado.

Nada obstante os dissabores, todos – eu disse todos! – sobre os quais recai alguma suspeita de enriquecimento ilícito, ou qualquer outro desvio de conduta, devem suportar o desconforto de uma investigação, como todas as suas consequências.

Se, desde meu olhar, as coisas devem ser assim, tenho enorme dificuldades em compreender por que os investigados, de regra, mesmo ante a presença de fortes indícios do cometimento de um ilícito, ultrapassado umbral da mera suspeita, insistem em obstaculizar as investigações.

É preciso ter em conta que não se inicia, pelo menos não tenho notícias nesse sentido, nenhuma investigação, em face de um ilícito, seja penal, seja administrativo, sem que haja, no mínimo, suspeitas relevantes da prática de ilicitude. Se é assim, por que então as pessoas insistem nesse argumento pueril e ridículo de que tudo não passa de uma vindita, como se pretendessem dar à fumaça de gelo um efeito que ela não tem?

Ninguém sai por aí escolhendo, aleatoriamente, quem deva ser investigado; a menos que se trate de um insano, um perseguidor implacável, irresponsável e inconsequente. Da mesma forma, as instâncias de controle não saem por aí investigando à vista tão somente de uma elucubração.

Tentar obstaculizar uma investigação, presentes fortes suspeitas da prática de uma ilicitude, é, para mim, mera escamoteação; uma tentativa pueril de negar as evidências, escondendo-a sob uma cortina de fumaça, olvidando-se que a consciência culpada, ainda que consiga se proteger da persecução, como ocorre algumas vezes, não deixará de ver, em cada sombra, um policial a tirar-lhe a paz.

É isso.

HIERARQUIA DA CRUELDADE

Os livros Spotlight, Segredos Revelados, de uma equipe de investigadores do The Boston Globe, O Homem Inocente, de John Grisham; Diário de Guantánamo, de Mohamedou Slahim, preso no campo de detenção da Baia de Guantánamo, em Cuba; Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, do jornalista Mário Magalhães; Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros; O Livro Negro do Comunismo, Crimes, Terror, Repressão, editado por Stéphane Courtois; e Brasil: uma Biografia, de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, têm em comum o fato de estarem permeados de narrativas sobre a crueldade do homem, o que me induziu a essas reflexões, pois que, à medida que me aprofundava na leitura dos títulos acima citados, ia sendo tomado de desalento – e, algumas vezes, até revolta -, ante a constatação do que o homem, sobretudo em condições de superioridade, é capaz de fazer em detrimento do seu semelhante.

É claro que em nenhum desses manuais os seus autores pretenderam dar ênfase às crueldades do homem, pois, definitivamente, não elegeram essa questão como tema central das narrativas. Quanto a mim, à proporção que lia – e me envolvia emocionalmente -, fui sendo levado a analisá-los sob essa perspectiva, pois, a cada excerto tratando das maldades do homem, como, por exemplo, em face da escravidão e seus desdobramentos, narrados na monumental obra de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, me via tomado de indignação.

Por óbvio, não vou fornecer detalhes dos livros. Limitar-me-ei, com efeito, a refletir acerca do que há de comum entre eles, e que me motivou a escrever este artigo, como antecipei acima, ou seja, a crueldade do ser humano, vista e analisada aqui numa perspectiva de poder, não só o conferido pelo Estado – caso dos algozes de Diário de Guantánamo e de O Inocente, por exemplo -, mas também quando ele, o poder, é exercido em razão de uma liderança, caso de Carlos Marighella, de Lampião e Maria Bonita, dos padres pedófilos mencionados em Spotlight), dos ditadores citados no Livro Negro do Comunismo e dos escravizados de que cuidam Lilian Schwarcz e Heloísa Starling em sua obra.

Nos cenários descritos em todos os livros, o que mais estarrece, e sobre o que pretendo esgrimir nessas reflexões, é a constatação de que os protagonistas das injustiças, das violências, das crueldades perpetradas contra o semelhante detinham o poder de mando e, em face desse poder, exorbitaram, levando-me a concluir que a crueldade, muitas vezes, decorre de uma posição de poder, que a torna ainda mais nociva e abjeta, difícil de ser combatida, a reclamar, também por isso, uma atuação mais enérgica das instâncias de controle.

A posição hierarquizada dos algozes torna a crueldade ainda mais abominável, convém reafirmar, porque eles se valem dessa hierarquização para perpetrar as maldades e para, a partir da posição que ostentam, conseguirem se safar das ações dos órgãos de controle, protegidos, quando se trata de agentes do Estado, pelo próprio sistema, que apesar de tudo ver, se omite em face de quase tudo.

Para os que detêm o poder de decidir sobre a vida e a sorte das pessoas, o sistema punitivo, infelizmente, empresta a sua aquiescência, o que resulta na impotência das vítimas diante das ações dos seus algozes, uma vez que, de regra, não têm a quem recorrer, sobretudo quando são pessoas egressas das classes menos favorecidas, para as quais Justiça é apenas uma quimera, um sonho muitas vezes acalantado, mas nunca alcançado.

As crueldades retratadas nos manuais a que me reportei impactam sobremaneira, porque reafirmam aquilo que sempre tenho dito: dos animais que existem sobre a terra nenhum é mais perigoso que o homem; essa perigosidade se potencializa quando ele é detentor de algum poder de mando, seja por estar investido de alguma atribuição conferida pelo Estado, ou porque exerça o poder em decorrência da sua liderança.

A constatação de que crueldade do homem pode vir a ser hierarquizada em face do poder de mando o homem é, de certa forma, um desalento, sabido que, contra isso, a única certeza que temos é a de que todos somos impotentes. Daí por que não são poucos os que, em face de um agente estatal mal-intencionado, sucumbem, podendo, muitas vezes, até ser condenados, como temos testemunhado todos os dias, mesmo nas sociedades que se dizem evoluídas e democráticas como a americana, nas quais os erros judiciários e as injustiças estão presentes, sobretudo em face da população negra e hispânica.

Das narrativas contidas nos livros, restou definitivamente claro para mim que o Estado não protege, definitivamente, o mais débil. Ao contrário disso, se mostra pleno, poderoso, eficaz e altivo quando destina as suas ações para perseguir e punir, sem pena e sem dó, os egressos das classes menos favorecidas, eleitos como alvos preferenciais das vinditas estatais.

Causa estupor e revolta constatar, à luz do que li e do que testemunhado há mais de trinta anos como magistrado, a capacidade que o Estado tem de, ante os mais frágeis, se agigantar, sufocando-os de tal sorte e em tal medida, a ponto de não deixar outra alternativa aos desvalidos que não seja a sucumbência ante as forças persecutórias oficiais, as mesmas forças que são frouxas e lenientes quando se trata de punir os mais poderosos, para os quais as instâncias de controle parecem agir com o único afã de protegê-los, contando com o beneplácito de agentes incrustados na própria máquina estatal, encarregados de fazer o trabalho sujo.

É isso.