A relativização da moral

________________________________________________

Não são poucos os que passam horas intermináveis navegando na internet flertando com futilidades, bisbilhotando a vida dos outros, fazendo comentários de ódio, assacando críticas acerbas contra as pessoas que elegem desafetas, condenando uns, absolvendo outros, mas sem a mesma disposição para dar uma “espiadinha básica”, como diz o notável Pedro Bial, para saber o que andou aprontando o seu candidato, como ele enriqueceu numa legislatura, os projetos que apresentou, os processos a que responde etc.

_________________________________________________

 

 

Dizem que o brasileiro é cordato, tolerante, prestativo e cordial. Não digo que não, nem digo sim; eu apenas relativizo, pois, como tudo na vida, não é possível caracterizar um povo, de forma absoluta, tolerante, prestativo e cordial, como, de resto, não se pode dizer, ademais, que somos um povo indolente e malandro. Logo, não é prudente a adoção de conceitos absolutos, que podem guardar um erro de avaliação e, até, uma injustiça.

Quando se diz, por exemplo, que fulano e sicrano são ótimas pessoas, “uma parte de mim pensa e pondera” (Ferreira Gullar, Traduzir-se), sem permitir que a outra parte de mim se perca em delírios, pois, em torno dessas questões, como de tudo o mais que envolva julgamentos, é preciso prudência, sensatez, moderação e equilíbrio.

Todavia, se há uma questão em torno da qual o brasileiro, para mim, é quase imbatível, absoluto, é na sua passividade em torno de algumas questões morais, especialmente em face dos malfeitos dos nossos representantes. Aí sim, sim, somos campeões; não por maldade, mas por acomodação, pura acomodação.
É de impressionar como o brasileiro parece não se importar com o passado de seus representantes; e, em face desse desleixo, continua elegendo os mesmos que, uma vez eleitos, persistem, sem nenhum constrangimento, à vista de todos, na defesa dos seus interesses.

A internet está presente em nossa vida. Todo mundo tem um smartphone. Há sites de toda ordem fornecendo informações sobre os candidatos às eleições vindouras: www.unidoscontraacorrupção.org.br; www.vigieaqui.com.br; www.capitaldoscandidatos.com.br; www.políticos.org.br; www.poderdovoto.org; www.publique-se.org.br, dentre outros.Apesar disso, o brasileiro – reconhecidas as exceções – prefere replicar fake news, defender candidatos fichas sujas, destilar ódio contra as pessoas que elege como inimigas, como se vivêssemos numa sociedade conflagrada.

O brasileiro podia, se esse fosse o seu desejo, tirar um minuto do seu tempo para se informar sobre a vida pregressa dos candidatos, e, assim, fazer uma boa escolha, para salvar o nosso país, para que não seja entregue aos mesmos, aos que só trabalham na defesa dos seus interesses pessoais.

Não são poucos os que passam horas intermináveis navegando na internet flertando com futilidades, bisbilhotando a vida dos outros, fazendo comentários de ódio, assacando críticas acerbas contra as pessoas que elegem desafetas, condenando uns, absolvendo outros, mas sem a mesma disposição para dar uma “espiadinha básica”, como diz o notável Pedro Bial, para saber o que andou aprontando o seu candidato, como ele enriqueceu numa legislatura, os projetos que apresentou, os processos a que responde etc.

Além disso, ninguém indaga, a ninguém causa estupefação, por exemplo, que um candidato gaste dois, dez, vinte milhões para se eleger deputado ou senador, por exemplo, ciente de que esse valor ele não receberá de volta licitamente ao longo do exercício do mandato.

É que nesse estado de letargia, ninguém questiona como muitos dos nossos representantes, num único mandato, quadruplicam, quintuplicam, a sua fortuna, pois isso parece não interessar a ninguém.

Diante desse quadro desalentador o povo parece embriagado, inerte, incapaz de reagir, numa passividade enervante. Pior que isso, não são poucos os malfeitores que sujaram a sua biografia no exercício do poder, que, ainda assim, estranhamente, têm seguidores tenazes, defensores fanáticos, admiradores apaixonados. Mais grave ainda: defensores entre pessoas de uma elite intelectual, capaz de defender um farsante qualquer como não seria capaz de fazer em face de sua própria biografia, numa relativização da moral, o que chega a incomodar.

Em face de tudo que nós testemunhamos, de tantos desvios de conduta, de tanta perversão, causa-me inquietação, sim, a passividade do povo brasileiro. Causa em mim maior inquietação testemunhar que pessoas que admiramos – pela postura moral, pela obra intelectual que nos legaram, pela história que escreveram, por tudo que representaram no passado, verdadeiros ídolos da minha geração, que combateram o bom combate – fecharem os olhos, fingirem não enxergar os desvios de conduta de certas figuras públicas, persistindo intransigentemente em sua defesa, dando um mau exemplo às gerações mais novas, que ficam sem entender o que significa mesmo a moral do brasileiro.

Mas esse apego, essa defesa intransigente de certas personalidades da nossa história, como se elas tivessem um passado imaculado, não é privilégio dos brasileiros aos quais me referi acima.
Em A mente Imprudente-Os Intelectuais e a Atividade Política, tradução Clóvis Marques, ed. Record, 196 págs, o sociólogo Mark Lilla, da Columbia University (EUA) também tentou entender a estranha postura de mentes brilhantes por certas figuras e fatos desprezíveis da nossa história.

Carl Schimitt, por exemplo, especialista em direito, até hoje muito estudado, defendeu o nazismo, um estado sem direito para boa parte da população. Martin Heidegger, filósofo dos mais respeitados, leitura obrigatória em qualquer curso que pretenda ser levado a sério, entrou no partido nazista e cortou relação com colegas judeus, por razões tão difíceis de entender quanto a sua filosofia. Walter Benjamin manteve-se fiel a Stalin, mesmo quando a maioria dos pensadores de esquerda passou a migrar para a sombra mais confortável de Trotski.

O mesmo autor, no mesmo livro, cita, ainda, Alexandre Kojève, Michel Foucault e Jacques Derrida, os quais também adotaram posição incompreensível em face de determinadas personagens e fatos históricos que a muitos de nós causam tanta inquietação e, até, revolta.

Definitivamente, não tenho pendores pare entender o ser humano.

Mais difícil ainda é entender a passividade e a capacidade de muitos brasileiros de relativizarem a moral.

É isso.

LIVROS, POR QUE NÃO DOÁ-LOS?

Vou iniciar este artigo narrando um fato cujo protagonista fui eu mesmo.
Decerto que, pela minha proverbial deficiência de memória, posso não ser fiel, em algum detalhe, ao que efetivamente ocorreu. No entanto, o que narrarei será fiel, no essencial, aos fatos.
Pois bem. Em 1974, cursando o segundo período de Direito, na antiga faculdade da Rua do Sol, tive a honra de ser aluno de um dos mais conspícuos professores de Direito Civil daquela faculdade, o qual se destacava no meio jurídico maranhense pela sua inteligência e capacidade intelectual; àquela época, já provecto.
Determinado dia, por eleição dos meus colegas de equipe, fui instado a fazer a defesa oral de um trabalho que realizamos na área do Direito Civil, sob a orientação do mestre.
Cumpri o ritual, com a mesma naturalidade com que defendo as minhas posições no TJ; sempre com muita ênfase, com alguma eloquência, a deixá-lo curioso quanto a minha pessoa.
O tempo passou, e fomos submetidos a novo teste – desta feita prova escrita – pelo eminente professor, o qual, em face da defesa oral que fiz e a qual me referi acima, estava atento ao meu desempenho na prova discursiva, segundo me revelou depois.
No dia da entrega das notas, lembro como se fosse hoje, o eminente professor não entregou a minha na sala de aula, como fez com os demais colegas; pediu que eu fosse à secretaria para ter uma conversa com ele, o que me deixou, claro, apavorado.
Achei tudo isso muito estranho. Fui ao seu encontro extremamente preocupado, pois, afinal, eu era apenas um aluno mediano, sem nenhum destaque, estudando com livros emprestados, enfrentando toda sorte de dificuldades; tudo me fazia crer que eu não tinha me saído bem na prova discursiva.
Chegando à secretaria, o professor me chamou em particular e me disse, se não com essas palavras, mas muito próximo disso.
-Senhor Almeida, lhe chamei aqui para lhe ajudar. Observei, na defesa oral do trabalho de sua equipe, que você articula bem as palavras. Observei, no entanto, na sua prova escrita, que você não tem pendores para a escrita. Escreve mal, muito mal. Precisa melhorar muito. Acho que lhe falta leitura. Aconselho-o, doravante, a ler. Leia bastante. Leia Machado de Assis, sobretudo. Não esqueça de Josué Montelo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo etc. Isso vai lhe ajudar. Falo para o seu bem.
Agradeci, constrangido, os conselhos que ele me deu. Daí em diante, passei a viver um dilema. Eu não tinha livros para ler e nem tampouco meios de adquiri-los. Busquei a Biblioteca Pública e a Biblioteca da Faculdade.
E assim, com dificuldade, fui buscando acesso aos livros. Lia de tudo. Pedia emprestado e devolvia no dia aprazado, para ter direito a fazer novos empréstimos.
Transformei-me num obstinado, num voraz leitor, conquanto tivesse dificuldades para assimilar alguns conteúdos mais sofisticados na linguagem, motivo pelo qual eu anotava tudo.
Em cada livro que eu lia, eu via o rosto do mestre me advertindo. Não bastasse a falta de convívio com a literatura, eu era também desinformado; cuidei de me informar.
Na época, vivíamos o período ditatorial; quase tudo censurado, o que trazia uma dificuldade enorme de acesso a informações. Felizmente, existiam os noticiários veiculados em rádio, e eu ouvia de tudo; lia tudo que era possível. Aliás, lia e relia. E assim, fui aprendendo a escrever, graças aos conselhos recebidos e aos livros aos quais tive acesso.
Com mudança de status, formei, com o tempo, uma biblioteca razoável. Mas, curiosamente, aquela quantidade enorme de livros me incomodava. Ou melhor, me incomodava vê-los fechados, em algum lugar da estante, depois de lidos, sabendo que, em face do tempo e em vista da quantidade enorme de livros por ler, a possibilidade de reler um livro era remota.
Pensando assim, passei a me questionar. Para que tantos livros guardados com tantos, como eu no passado, precisando deles? Decidi, então, já há algum tempo, doar todos os meus livros; fui doando aos poucos. Nos dias atuais acabo de doar os que restaram. Preservei, claro, alguns raros.
Formei nova biblioteca, desta feita eletrônica, que, de tão alentada, jamais serei capaz de ler tudo que nela contém; e contém de tudo, do mais sofisticado ao mais simples, de Tolstoi a Mia Couta, passando por Saramago e Garcia Marques.
Concluída a doação dos últimos exemplares sinto-me mais leve. Sei que muitos farão bom uso dos livros que doei. Ademais, não tinha sentido, para mim, manter uma biblioteca que enchia os meus olhos, que podia até impressionar uma visita, mas não enchia o meu coração.
Quando me indagaram se não seria uma sandice me desfazer dos meus livros fiscos, eu respondi que sandice é deixar de compartilhar com quem deles precisa.
Essa é a minha contribuição aos que, como eu no passado, tendo sede de conhecimento, não têm acesso à leitura.
É isso.

TRISTE ESPETÁCULO

“[…]O que testemunhei – absorto e, até, indignado -, ante as reações apaixonadas que decorreram da referida decisão judicial, foi, para dizer o mínimo, uma verdadeira afronta ao Estado Democrático de Direito, típico das republiquetas mais atrasadas e sem perspectiva de futuro[…].

 

Todos nós testemunhamos, absortos e indignados, dias de intolerância, de muita insensatez, quando não dias de fúria.

É grave constatar que determinadas condutas incivilizadas, insensatas e inconsequentes promanam de pessoas das quais esperamos, pela sua história, pelo que dizem e pelo que escrevem, discernimento, sensatez, equilíbrio e bom senso.

A quadra é ainda mais desesperançadora quando constatamos que não são poucos os homens públicos que parecem não ter equilíbrio para enfrentar adversidades.
Essa é uma constatação histórica.

Sempre foi assim; e assim sempre será, infelizmente.

Mesmo as mais provectas lideranças, mesmo as mais calejadas pelo tempo, padecem desse grave defeito, a depender somente das circunstâncias e das conveniências de estar de um lado ou de outro em face de um determinado evento.

Tenho dito que quando ações inconsequentes e insensatas dimanam de pessoas pouco esclarecidas, ou mesmo daquelas para as quais o destino reservou apenas a parte mais amarga da vida, eu até tento compreender as insólitas reações que protagonizam em face de um determinado fato da vida.

Contudo, se a falta de civilidade, de sensatez e descortino advêm de pessoas esclarecidas, das quais espera-se sempre uma ação – ou reação – equilibrada ante uma adversidade, aí sou instado a crer que caminhamos em direção a um precipício vertical perigoso, na direção mesmo da escuridão.

Faço essa linha de introdução para externar a minha inquietação, para dizer o mínimo, em face das reações apaixonadas, fanáticas e inconsequentes que testemunhei, dias atrás, em face de uma decisão judicial de primeiro grau, como de resto sempre acontece quando uma decisão alcance algum interesse mais destacado.

Em qualquer nação civilizada, diferente do que tenho testemunhado aqui no Brasil, e especialmente no Maranhão, as pessoas, mesmo as incultas e iletradas, diante de uma decisão judicial, reagem com o equilíbrio que se espera de quem sabe que as instituições estão em plena atividade.

Nessa perspectiva, ou com a decisão concordam, e se submetem aos seus comandos, ou dela recorrem para uma instância revisora.

Simples assim; claro como a luz do sol.

Não precisa teatro, estardalhaço, carnavalização, desrespeito, menoscabo para com o autor, ou autora, da decisão.

Por essas paragens, onde tudo exala um perturbador cheiro de atraso, com pitadas de incivilidade, ataca-se a decisão prolatada, abespinha-se a instância decisória, tenta-se desqualificar o(a) autor(a) da decisão, como se decisão judicial fosse algo inusitado, do outro mundo, objeto estranho deixado por um extraterreno, uma bomba nuclear prestes a ser acionada, tudo decorrente de um ambiente político contaminado por paixões quase radioativas; paixões políticas que, em face dos seus efeitos nocivos, reafirmam o nosso atraso.

Nesse ambiente tóxico, pouco importa a honra, a história de quem prolatou a decisão, pois, para dar vazão às paixões políticas, o que importa, diante de um revés judicial, ainda que provisório, é desqualificar quem ousou subscrever o édito, como se os fatos deixassem de existir ante a desqualificação do prolator da decisão, reação que, convém pontuar, não é privilégio desse ou daquele grupo, mas de todo o espectro político local.

Nessa faina, produzem-se, a cântaros, fake news, invocam-se, sem escrúpulos, todas as maledicências do mundo, como se fosse possível curar a febre quebrando o termômetro.

Em qualquer país, onde a disputa pelo poder é apenas uma disputa para servir, sem outra ambição que não seja o bem comum, uma decisão judicial, seja qual for a sua envergadura, não é nada mais que uma decisão judicial; tão somente uma decisão com a qual se concorda ou não.

Todavia, na nossa província, onde a imaturidade política parece fincar as suas garras com mais sofreguidão, uma decisão judicial, algo normal, repito, em qualquer sociedade civilizada, serve de instrumento de vendeta, ganha as manchetes de jornais, suscita questionamentos, põe em xeque a credibilidade das pessoas, para, no mesmo passo, fragilizar as instituições.

No nosso mundo, permeado de atitudes provincianas, mesmo daqueles dos quais se espera grandeza nas atitudes, uma decisão judicial, dependendo de suas consequências políticas, é usada como um troféu para escarnecer ou fazer troça do adversário, como se o subscritor da decisão estivesse, necessariamente, a serviço de grupos políticos; grupos que aplaudem ou criticam a decisão sempre à luz dos seus interesses.

Nesse panorama, o juiz que decide pode ser levado ao pedestal ou conduzido ao cadafalso: na primeira hipótese, pelos que se beneficiam politicamente com a sua decisão; na segunda, pelos que se julgam prejudicados.

De uma forma ou de outra, o prolator da decisão só será considerado um bom juiz, um juiz imparcial, um exemplo de magistrado, um homem digno e honrado para aqueles que, de alguma forma, se beneficiem, ou possam tirar algum proveito, da sua decisão, caso contrário, não passará de um juiz parcial e sem escrúpulos, a serviço desse ou daquele grupo político.

Não nos iludamos. Os que hoje elogiam algumas decisões judiciais, porque as julgam favoráveis às suas pretensões, são os mesmos que, no passado, diante de uma decisão desfavorável, colocaram as garras de fora e partiram para tentar desqualificar o juiz prolator.

Por tudo isso, nenhum de nós deve se sentir prestigiado, ou desagravado, em face de algumas manifestações de aparente respeito e solidariedade, que nada mais são que ações de pura conveniência e/ou oportunismo politico.

Triste espetáculo.

 

IN DUBIO PRO SOCIETATE

“[…]Ainda que se imagine, para ludibriar a alma e não dobrar-se diante da desesperança, que as coisas estão mudando, esse tipo de gente que colocamos no poder por pura vacilação, ciente de que punição para os que estão no andar de cima é quase uma quimera, nada teme. Daí a razão pela qual persiste na sua ferocidade criminosa, desafiando as instituições, cabendo a nós, eleitores, nesse cenário, dar um basta nessa situação de verdadeiro descalabro, selecionando melhor a nossa representação[…]”

Confesso que, sobretudo aos finais de semana, quando concluo a leitura das mais importantes revistas semanais e dos principais jornais do Brasil, sou sempre tomado de angústia e de desesperança, em face das notícias sobre os desvios de conduta de uma parcela significativa da nossa representação nas casas legislativas, desvios que podem ser protagonizados tanto pelo próprio representante quanto por interposta pessoa, fruto do nocivo aparelhamento do Estado.

A desilusão torna-se muito mais intensa ante a constatação de que muitos desvios de conduta – sempre em detrimento do patrimônio público e, por consequência, em desfavor do interesse público – poderiam ser evitados se tivéssemos critérios na hora de escolher os nossos representantes, o que significa que somos todos, de certa forma, responsáveis pelos descalabros que testemunhamos.

Causa mais desconforto e desconsolação constatar, como diz o ministro Luis Roberto Barroso, que há criminosos – muitos dos quais acomodados no poder, por nossa conta e risco – que, flagrados na ilegalidade, processados e condenados, ainda assim optaram por não serem honestos nem daqui para a frente.

Ainda que se imagine, para ludibriar a alma e não dobrar-se diante da desesperança, que as coisas estão mudando, esse tipo de gente que colocamos no poder por pura vacilação, ciente de que punição para os que estão no andar de cima é quase uma quimera, nada teme. Daí a razão pela qual persiste na sua ferocidade criminosa, desafiando as instituições, cabendo a nós, eleitores, nesse cenário, dar um basta nessa situação de verdadeiro descalabro, selecionando melhor a nossa representação.

Nesse quadro desalentador, nós, que estamos do outro lado do balcão, que optamos por levar uma vida decente, somos os otários para os quais foi reservada apenas a função de legitimar as bandalheiras dos nossos representantes, por meio do voto, cuja importância, em países com a nossa tradição, tem sido relativizada, pelos mais diversos motivos, dentre eles os culturais, que condizem com a aceitação, com certa naturalidade, dos desvios de conduta dos nossos representantes.

Mas a mim me incomoda, sobremaneira, a total indiferença desses predadores sociais para com o sofrimento dos representados, que são os mesmos que, tomados de esperança, se dirigem, periodicamente, a uma cabine eleitoral para depositarem o seu voto, muitas vezes sem a necessária consciência de sua importância, com o que contribuem para perpetuação desse quadro de verdadeiro descalabro moral.

Nesse ambiente desolador, a mim me causa estupefação, igualmente, a indiferença de muitos dos nossos representantes ante a imputação de desvios de conduta, panorama que me levar a concluir que o homem que tem ambição material desmedida, do tipo “faço qualquer coisa pra levar vantagem”, tende a agir com naturalidade em face do que seja lícito ou ilícito, o que explica o descompasso existente entre ambição/ganância sem controle e moral, daí a necessidade de sermos mais rigorosos nas nossas escolhas, sob pena de contribuirmos para perpetuação desse quadro nefasto de verdadeira orgia moral que tanto infelicita o povo brasileiro, sobretudo o mais humildes para os quais o Estado tudo nega.

Todos nós temos ciência que, para condenar alguém, o juiz precisa estar diante de provas induvidosas, inquestionáveis; mínima que seja a dúvida, ele deve absolver o acusado, ainda que contrarie aqueles que querem justiça de qualquer forma, de toda sorte; tem aqui aplicação, às inteiras, o brocardo latino in dubio pro reo.

Compreendo, por outro lado, que, para não sufragar o nome de determinado candidato, basta que o eleitor tenha dúvidas quanto a sua integridade moral. Na dúvida, portanto, sobre a conduta moral de um candidato, o eleitor deve optar por outro que tenha boa reputação, que tenha história de vida escorreita e conduta ilibada, pois só assim poderemos mudar a realidade que hoje vivenciamos. Nessa liça, deve prevalecer a parêmia in dubio pro societate. É dizer, na dúvida sobre a conduta moral de determinado candidato, o eleitor deve optar pelo interesse público, pois é quase certo que o candidato com uma vida prenhe de deslizes não fará bom uso da outorga.

Nessa linha de compreensão, não é despiciendo lembrar que há muitos candidatos sobre os quais não recai nenhuma mácula sobre a sua honradez, sobre a sua integridade moral; e são esses que estão a merecer a nossa distinção com o voto.

As nossas escolhas, ou melhor, as nossas péssimas escolhas, contribuíram, não tenho dúvidas, para a situação que hoje vivenciamos, pois, só mesmo num país que se acostumou com a relativização da moral, se pode conceber que tantos homens públicos de moral duvidosa tenham os seus nomes sufragados para continuarem nos representando.

Para iniciar uma mudança de rumo, a possibilitar a construção de uma nova sociedade, nós, cidadãos, só temos um instrumento, o voto, razão pela qual ele não pode ser mercadejado, não pode ser negligenciado, pois é por meio dele que podemos expungir da vida pública os que fazem dela apenas mais um ambiente propício para auferir vantagens de ordem pessoal, em detrimento do interesse público.

Simples assim.

 

 

NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI IUS

“[…]Logo, de nada adianta a exposição de teses jurídicas, por mais inteligentes e bem concebidas que sejam, se o julgador não tiver absoluto domínio dos fatos e das circunstâncias, pois são eles, fatos e circunstâncias, que possibilitam ao julgador a construção do direito, a fixação da tese, a definição da norma jurídica a ser aplicada[…].

A prestação jurisdicional é dada, dentre outros, sob o manto dos princípios da narra mihi factum dabi ius e da jura novit curia. A equação é simples. O juiz conhece o texto da lei. A norma jurídica, no entanto, o Direito, enfim, só exsurge a partir dos fatos narrados. Dessa forma, o direito é algo a descobrir-se, a ser encontrado, a ser construído.

O direito, com efeito, não é algo dado. Ele se constrói em face da interpretação feita pelo magistrado do enunciado linguístico, levando em conta o caso concreto, a partir dos fatos narrados, fatos da vida, do mundo real; diria, fatos e circunstâncias, como, aliás, lembrou Eros Grau, na Reclamação nº 3.034-2-PB AgR: “[…Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida[…]” (STF, Reclamação nº 3.034-2/PB AgR, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, voto do Min. Eros Grau).

Faço essa linha de introdução para realçar, como um tributo, que o nosso estimado colega Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, como um mantra e com o feeling que só os mais argutos julgadores possuem, tem instado os colegas, nas sessões de julgamento, insistentemente, a noticiarem, pormenorizadamente, os fatos e as circunstâncias do crime em julgamento, exatamente para que ele possa construir a sua decisão, com a convicção, que é própria dos bons julgadores, de que eventual norma jurídica só pode surgir à luz de dados do mundo real, tendo em vista que, como leciona Eros Graus, os juízes decidem não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas em razão de situações do mundo da vida. É dizer: com a materialidade mais substancial da realidade.

Às vezes, pragmáticos – e, no mesmo passo, equivocados -, insistimos em apresentar, em destaque, a tese jurídica. Mas ele, determinado, obtempera: quero os fatos e as circunstâncias, pois somente a partir deles me posicionarei. É dizer: narrem-me os fatos e darei o direito, noutros termos, narrem-me os fatos e direi qual a norma jurídica a ser aplicada.

A propósito da relevância dessa posição, definitiva e judiciosa, do Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, lembrei, um dia desses, de uma passagem interessante colhida na história da filosofia, que trago à guisa de ilustração, apenas para corroborar a relevância da benfazeja insistência do nosso colega no sentido de não assumir posição sem que tenha o domínio dos fatos e todas as suas circunstâncias.

À ilustração, pois.

Sócrates, como sabido, há mais de 2400 anos, segundo alguns manuais, foi condenado, dentre outros motivos, por perguntar demais. É que, apesar de reconhecerem em Atenas o seu brilhantismo e a sua inteligência, ambos incomuns, muitos o achavam inoportuno, exatamente por perguntar demais, por querer saber além do permitido.

Um diálogo de Sócrates com Eutidemo ilustra bem a importância de se perquirir acerca de fatos e circunstâncias. Pois bem. Certo dia, Sócrates indagou de Eutidemo, na lata, como se diz na gíria, se todo ato enganador poderia ser considerado imoral, ao que respondeu Eutidemo, sem titubeio, que sim, ou seja, que todo enganador é imoral.

Sócrates, então, complementou, trazendo à luz fatos e circunstâncias para facilitar a compreensão da sentença: “Mas, e se um amigo estivesse muito triste e quisesse se matar, e você roubasse-lhe a faca? Não seria esse um ato enganador?

O mesmo Sócrates respondeu: “Sim, sim, com toda certeza”.

E prosseguiu: “Mas fazer isso não seria moral em vez de imoral, afinal, se trata de uma coisa boa, não ruim – embora seja um ato enganador”?

Eutidemo, de pronto, concordou com Sócrates, mudando a compreensão anterior de que todo ato enganador seria imoral.

Resumo da ópera: Sócrates, ao usar um contraexemplo, ao expor fatos e circunstâncias que levaram ao ato enganador, demonstrou que a conclusão de que ser enganador é imoral, diferente do que concluiu Eutidemo, não se aplica a todas as situações.

Repetindo o mantra do desembargador José Bernardo Rodrigues: “Tudo depende dos fatos e das circunstâncias”. É dizer: os fatos e as circunstâncias definem se uma ação é típica ou atípica, se se subsume a um tipo penal ou se está acobertada pelo manto, por exemplo de uma excludente de ilicitude.

A conclusão óbvia a que se chega, em face do acima exposto, é que, tendo os fatos às mãos, e somente à luz deles, ter-se-á condições de fazer um julgamento tão próximo quando possível do que seja mais justo.

Logo, de nada adianta a exposição de teses jurídicas, por mais inteligentes e bem concebidas que sejam, se o julgador não tiver absoluto domínio dos fatos e das circunstâncias, pois são eles, fatos e circunstâncias, que possibilitam ao julgador a construção do direito, a fixação da tese, a definição da norma jurídica a ser aplicada.

Ademais, o julgador que não tiver total domínio dos fatos e daquilo que o circunda, nunca terá condições de fazer um julgamento justo; não terá como fazer um juízo de subsunção; não terá como aplicar a pena de forma justa, proporcional e razoável.

Para definição da autoria, fixação de uma pena, definição do grau de censurabilidade desse ou daquele acusado, só mesmo mediante fatos e as circunstâncias; só, e tão somente só, se eles estiverem expostos, quantum sufficit, pois, em sentido contrário, não será possível a apreensão do objeto do conhecimento.

Portanto, nenhum juiz será capaz de decidir acerca da responsabilidade penal de um acusado, nem será capaz de definir com clareza a sua posição diante de um fato criminoso, se não estiver ciente, o quanto baste, dos fatos e das circunstâncias.

Simples assim.

NAS PASSARELAS DA IMPUNIDADE

_________________________________________________________

“[…]O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças[…]”

__________________________________________________________

O direito existe como uma necessidade humana decorrente da vida em sociedade. Logo, sem ele e sem o funcionamento das instituições encarregadas de sua aplicação, não há condição de coexistência numa sociedade, pois, afinal, o homem, quando decidiu se submeter ao contrato social, o fez sob a perspectiva de o Estado lhe prover assistência, no sentido mais amplo da palavra.

O crime, que ofende, num primeiro momento, um bem alheio, num segundo momento coloca em xeque a própria vida em sociedade; por isso, quando não pode ser evitado – e não se pode mesmo evitar a sua ocorrência -, deve ser combatido com tenacidade; os infratores, nesse sentido, devem ser exemplarmente punidos, para que outras pessoas não se sintam estimuladas à prática de novos crimes, e assim possibilitar que todos possam viver numa sociedade minimamente pacificada.

Nessa perspectiva de vida pacífica em sociedade, todos nós deveríamos ter compromisso com o cumprimento da lei; seja aplicando-a, indistintamente, a quem compete fazê-lo, ou, simplesmente, se submetendo aos seus ditames, sem restrições, à luz do preceito constitucional segundo o qual todos somos iguais perante a lei.

Pois bem. Se é responsabilidade de todos o respeito à lei e se somente sob o império desta a sociedade pode sobreviver, por que então ainda há pessoas – um milhão de pessoas envolvidas em linchamento no país, segundo o professor José de Souza Martins, da USP – que se socorrem da barbárie a pretexto de fazer justiça, à margem das instituições, numa sociedade que supomos integrada por pessoas civilizadas? Antes de responder a essa indagação, narro um fato que impactou a sociedade maranhense ainda recentemente, e que me levou a essas reflexões.

Todos nós testemunhamos, em face do vídeo veiculado nas mídias sociais, o linchamento de um jovem nominado Wallison Silva Araújo, de 19 anos, vulgo “Zambeta”, na cidade de Araioses, suspeito de ter assassinado uma pessoa com dezessete facadas, fato ocorrido num domingo, mais precisamente no dia 24 de junho próximo passado.

Fatos desse jaez nos remetem, inapelavelmente, a uma necessária reflexão, como antecipei acima, que condiz com a necessidade de se compreender as razões pelas quais, com as instâncias de controle funcionando, há pessoas que ainda preferem agir por conta própria, ou seja, à margem da lei. É essa sobre essa inquietante questão que pretendo esgrimir as minhas impressões, na certeza de que, em face delas, haverá dissenções, como sói ocorrer.

Na minha compreensão, quando as pessoas optam pela autotutela, não obstante vivam numa sociedade pretensamente civilizada, estão mandando um recado claro aos agentes do Estado, responsáveis pelas instâncias de controle: não dá mais para suportar a tibieza, a vacilação das instituições quando se trata do enfrentamento de condutas criminosas. Portanto, não é preciso ser especialista para diagnosticar que as pessoas cansaram, perderam a fé e decidiram, em alguns casos, agir por contra própria.

A verdade é que a infinidade de crimes impunes deixa a população com a justificável sensação de que não dá mais para aguardar a (re)ação do Estado, sabido que, muitas vezes, não há (re)ação alguma, bastando para isso a constatação de que são inúmeros, incontáveis os criminosos que desfilam nas passarelas da impunidade, por culpa exclusiva das instituições que não desempenham a contento suas obrigações, ou o fazem mal, de forma leniente, titubeante, frouxa e seletiva, a incutir nas pessoas a falsa percepção de que a solução mais eficaz é mesmo (re)agir por contra própria.

Nesse cenário, certo mesmo é que as vítimas, diretas ou indiretas, de um crime, dos mais diferentes matizes, já não suportam se defrontar com os seus algozes flanando por aí, debochando das instituições, desfilando, como dito acima, nas passarelas da impunidade. As pessoas não aguentam mais a triste evidência de que as instituições, quando punem, convém reafirmar, punem mal, punem seletivamente, sem forças e sem predisposição para punir indistintamente, como se a lei, definitivamente, não valesse para todos.

O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças.

A verdade é que, para uma parcela diminuta da sociedade, os que promovem os maiores assaltos aos cofres públicos – sejamos honestos com nós mesmos –, a prisão é, sempre foi e sempre será uma excepcionalidade, como todos nós testemunhamos, em face das mais diversas decisões pretorianas que favorecem criminosos do colarinho branco com a concessão de liberdade, muitas vezes de ofício; liberdade que, admitamos, só fazem por merecer porque, afinal, são o que são, e sendo o que são, no país da impunidade, passam mesmo, como regra, à ilharga das ações persecutórias.

A impunidade, definitivamente, estimula a prática de crimes, verdade sabida que, entretanto, parece não sensibilizar os que têm sempre às mãos, de prontidão, um alvará de soltura para favorecer esse ou aquele marginal o qual, pela posição de destaque que ostenta, se sente imune às ações das instâncias de controle do Estado.

Convém ressaltar que há, sim, causas variadas que fomentam a criminalidade. Mas, seguramente, nenhuma é tão óbvia, tão evidente, tão à vista de todos quanto a certeza da impunidade. E quando se reflete sobre esse tema, a verdade é que, ainda que punamos preferencialmente os mais humildes, ainda assim punimos mal e excepcionalmente, estando as cifras negras da criminalidade a demonstrar que a lei, definitivamente, alcança a poucos e que, os poucos que as instâncias alcançam, esses, comumente, são egressos das classes menos favorecidas. Daí não ser de todo incompreensível que as pessoas, cansadas, busquem fazer justiça com as próprias mãos.

É isso.

ENTRE O RIDÍCULO E O ANTOLÓGICO

Nós, brasileiros, especialmente os que militam na área jurídica, nos acostumamos a assistir, pela TV Justiça, às sessões do Supremo Tribunal Federal. E pelo fato de atuarmos na área do Direito, não temos dificuldades de entender os votos dos doutos ministros. Contudo, o público em geral, pouco afeito ao que se convencionou chamar “juridiquês”, fica, às vezes, a ver navios.

Nesse sentido, muitos assistem às sessões do Supremo para, ao fim e ao cabo, se indagarem o que foi mesmo que eles decidiram, o que não espanta, mesmo porque, muitas vezes, eles, os ministros, decidem mesmo que não vão decidir. É que, além do “juridiquês”, os ministros têm a necessidade, para mim injustificável, de alongarem seus votos em demasia, tornando-os cansativos, mesmo aos versados, contribuindo, assim, para o atraso dos julgamentos.

Nesse alongamento excessivo dos votos, alguns deles falam por duas, três, quatro, cinco horas, para, no final do voto, concluírem, simplesmente, que seguem o relator, que, por seu turno, já havia apresentado um voto de duas, três, quatro, cinco horas. Isso nos leva a entender que falta, definitivamente, objetividade nos julgamentos do Supremo; e não só no Supremo, reconheçamos.
Convenhamos, se o voto que se pretende proferir segue, às inteiras, o do relator ou o voto divergente, penso que se poderia ser mais objetivo, salvo uma ou outra observação que se fizesse necessária. Para mim, respeitando quem pensa de modo diverso, só é justificável um voto mais denso, se for para dissentir.

Penso que, se for para seguir a linha de entendimento do relator ou o do voto divergente, pode-se primar pela objetividade; e assim, todos nós ganhamos, conquanto reconheça que o grande saber jurídico dos ministros seja, para quem possa interessar, de grande utilidade.

Se é verdade que não são poucos os que, pasmados, ficam sem saber o que dizem os doutos em seus complexos e alongados votos, não é menos verdadeiro que há unanimidade quanto ao desconforto que causam a deselegância e a descortesia que permeiam algumas intervenções.

Se é verdade – e quanto a isso acho que somos todos acordes – que há discussões ridículas, há, da mesma forma e com igual intensidade, passagens em alguns votos que merecem ser lembradas sempre, numa linha compensatória, já que se tratam de verdadeiras antologias, como as que vou destacar a seguir, do eminente ministro Luís Roberto Barroso, no Habeas Corpus 152.752.

Vejamos, pois, em destaque, as antologias.

“[…] A Nova Ordem que se está pretendendo criar atingiu pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. Para combatê-la, uma enorme Operação Abafa foi deflagrada em várias frentes. Entre os representantes da Velha Ordem, há duas categorias bem visíveis: (i) a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e (ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente[…]”.

“[…] Eu respeito todos os pontos de vista. Mas não é este o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos. Um paraíso para homicidas, estupradores e corruptos. Eu me recuso a participar sem reagir de um sistema de justiça que não funciona, salvo para prender menino pobre[…]”.“[…] Quando a investigação começa, o princípio da presunção de inocência tem seu peso máximo. Com o recebimento da denúncia, este peso diminui. Com a sentença condenatória de 1º grau, diminui ainda mais. Quando da condenação em 2º grau, o equilíbrio se inverte: os outros valores protegidos pelo sistema penal passam a ter mais peso do que a presunção de inocência e, portanto, devem prevalecer[…]”.

“[…] Processos devem durar 6 meses, um ano. Se for muito complexo, um ano e meio. Nós nos acostumamos com um patamar muito ruim e desenvolvemos uma cultura da procrastinação que oscila entre o absurdo e o ridículo. O processo penal brasileiro produz cenas de terceiro mundismo explícito. As palavras no Brasil vão perdendo o sentido. Entre nós, a ideia de devido processo legal passou a ser a do processo que não termina nunca. E a de garantismo significa que ninguém deve ser punido jamais, não importa o que tenha feito […]”“[…] O poder, em geral, e o Poder Judiciário, em particular, existe para fazer o bem e para promover justiça, e não para proteger os amigos e perseguir os inimigos […]”.

Essas passagens são dignas de ser lembradas, e por isso antológicas, deveriam inspirar, nortear, iluminar os juízes criminais do século vinte e um, além de poderem contribuir para a construção de uma Nova Ordem.

Logo, se persistimos em manter a mesma mentalidade retrógrada do passado, podemos ficar certos de que não reverteremos o quadro de impunidade que se descortina sob os nossos olhos, prevalecendo, assim, a Velha Ordem que pode ser traduzida como impunidade.

“INTERVENÇÃO MILITAR JÁ”

Durante a grave dos caminhoneiros, fui à Santa Rita para um compromisso.
No trajeto até aquela cidade, fui surpreendido com os caminhões parados e, próximo deles, em destaque, várias faixas que pediam intervenção militar no país; depois, vi que havia no Brasil inteiro.
Claro que fiquei estarrecido, especialmente porque vivi a ditadura, testemunhei a censura e sei das atrocidades de um regime de exceção.
Pensei com meus botões sobre a contradição que encerra o apelo por intervenção militar e a livre manifestação dos caminhoneiros, indagando a mim mesmo: Meu Deus, será que esses manifestantes não compreendem que só é possível essa estranha e intempestiva manifestação porque vivemos em uma democracia?
Pensei, ademais: Será que é difícil compreender que, num regime ditatorial, os manifestantes estariam, para dizer o mínimo, em maus lençóis e teriam sido impedidos de protagonizar as badernas que protagonizaram?
Devo dizer, antes de responder a essas indagações, que é preciso perscrutar, sincera e realisticamente, as razões pelas quais os caminhoneiros apelaram por uma intervenção militar, porque, afinal, se o fazem, sabendo das consequências de um ato intervencionista, devem ter fortes motivos para o impulso.
Não sou especialista, mas tenho suficiente sensibilidade para expender um juízo em face do que testemunhei, estarrecido, a propósito da greve dos caminhoneiros.
A verdade é que os caminhoneiros – e grande parte do povo brasileiro – apelam para intervenção militar por uma razão mais que elementar: perderam a fé em tudo que está aí.
Para o povo brasileiro, os que estão aí, desfrutando (esse é o termo) do poder, estão fazendo exatamente isso: desfrutando do poder, sem nenhum compromisso com as causas públicas que juraram defender.
Ninguém, salvo poucas, raras exceções, admitamos, está preocupado com os problemas do povo brasileiro; cada um está cuidando de si, dos seus próprios interesses.
Os exemplos que me levam a essa afirmação estão aí, aos montes, à toda evidência, à vista de todos; só não os vê quem não quer.
As filas dos hospitais?
Não sensibilizam ninguém.
Os desvios de recursos públicos?
São uma prática recorrente.
As promessas não cumpridas?
São uma constante.
As falsas promessas?
São uma praga.
As estradas brasileiras?
Um desastre.
Segurança pública?
Uma tragédia.
Impunidade?
Uma regra.
Tudo isso, e mais, muito mais, levou o povo à descrença. Por isso, o apelo à intervenção militar, como se fosse uma panaceia.
Salvo raras exceções, no Brasil ninguém disputa eleições, ninguém corre atrás de votos para servir, senão para servir-se.
Ninguém gasta milhões de reais numa eleição por amor ao povo.
É triste constatar, mas cada um está correndo em busca dos seus interesses.
Nesse cenário, é preciso uma mudança de direção, que não é, seguramente, uma intervenção militar.
É preciso dar um basta no que está aí.
O povo cansou; acha que com os mesmos – e essa é a tendência – não vai ter melhora, que tudo será como antes.
Quem vê um ente querido morrer nas filas dos hospitais, uma bala perdida tirando a vida de um inocente e meia dúzia de espertalhões enriquecendo com o dinheiro público desviado, se julga no direito de pedir, num ato de desespero, uma intervenção militar, um regime de força, na vã esperança de reversão do quadro, pois a desesperança leva as pessoas em busca de soluções mágicas.
Além disso, a péssima sensação, a quase certeza, para ser otimista, de que, depois das eleições, tudo que está aí permanecerá exatamente como sempre foi, sem perspectiva de mudança, estimula o discurso extremista, o que nos leva a viver um pesadelo.
Temos um Estado incapaz de conduzir políticas públicas com o mínimo de seriedade.
O desemprego explode, e os indicadores sociais são péssimos.
Não temos boas expectativas em relação ao futuro.
A violência está generalizada, sem perspectiva de reversão.
As instituições persecutórias funcionam de forma temerária, pois, enquanto uns lutam contra a corrupção, outros trabalham em sentido contrário.
Este cenário estimula a insensatez e nos faz pensar em soluções heterodoxas.
Mas é preciso não esquecer que o que está aí é culpa nossa, sabido que, podendo mudar o panorama pelo voto, persistimos fazendo péssimas escolhas.
Por nossa conta e risco, ninguém tem dúvidas de que a quase totalidade do que aí está, grande parte responsável por desvios de dinheiro público, ou será reeleita ou elegerá um representante, da família ou correligionário, exatamente para que tudo fique como sempre foi.
Diante de um quadro desses, é compreensível que muitos, sobretudo os jovens, que não viveram a ditadura ou não conhecem a história, clamem por uma intervenção militar.
Todavia, é preciso convir que a maior revolução que podemos fazer, como anotei acima, é pelo voto, que é a nossa arma.
O problema é que não são poucos os que usam mal esse instrumento singular e definitivo de mudança.
Nesse panorama, o irônico, o risível é que os líderes do movimento grevista deverão ser processados com base na Lei de Segurança Nacional, provavelmente serão punidos, e os que deram causa ao caos em que se transformou o país, continuarão surfando na onda da impunidade, protegidos por mais um mandato outorgado pelos que não valorizam o voto como instrumento de mudança.
É isso.