A cultura da impunidade

Todos que cometem crimes devem – ou deveriam – receber o mesmo tratamento das instâncias de controle social. É assim que penso, é nesse sentido que tenho agido. Por isso me causa certo desalento, por exemplo, colocar  em liberdade um meliante perigoso por excesso de prazo ou quando tenho, pelo mesmo decurso do tempo, que reconhecer uma prescrição e extinguir a punibilidade de um criminoso, sejam quais forem os crimes a ele imputados, por entender que é dever do Estado julgar a tempo e hora os que transgridem a ordem pública.

É mais comum do que as pessoas possam estar informadas a extinção da punibilidade e o relaxamento da prisão de meliantes por inação, descaso, incúria dos responsáveis pelas instâncias formais de controle social, o que é de se lamentar.

Nesse cenário, confesso, com ênfase, o meu especial desalento, a minha quase revolta quando me deparo, por exemplo, com a falta de zelo e de rigor dos agentes do Estado, diante, por exemplo, de crimes que condizem com o desvio de verbas públicas ou praticados com violência, pondo em relevo, neste artigo, os primeiros, em face dos efeitos danosos para o conjunto da sociedade.

Na condição de magistrado, tenho me defrontado com vários processos que traduzem bem a conduta imoral e irresponsável de gestores do dinheiro público, e, no mesmo passo, com a inércia, com o descaso e a falta de zelo dos responsáveis pelas agências de controle, que deixam, injustificadamente, que as ações se prolonguem no tempo, com indiscutíveis prejuízos à persecução criminal. Por isso a tenaz fiscalização do CNJ em torno desses processos.

Em casos desse jaez, o dado que me chama mais a atenção, portanto, é a morosidade da justiça – injustificável, desde a minha compreensão -, disso resultando a impunidade dos gestores, em face das consequências que dimanam do tempo transcorrido, por mais nociva que tenha sido a sua ação na administração da coisa pública. Logo, diante dessa sedimentada cultura de impunidade, eles se sentem estimulados a continuar transgredindo, cientes de que só por acidente serão responsabilizados criminalmente.

Decerto que as instâncias persecutórias não podem fazer corpo mole, sobretudo, diante de crimes dessa coloração, em face, repito, dos efeitos devastadores desse tipo de ação para o conjunto da sociedade. Por isso, nos julgamentos dos quais faço parte, tenho reiterado que, se é verdade que um assaltante merece ser tratado com todo o rigor – e merece mesmo, pois é, para mim, acima de tudo um covarde -, merece maior rigor, ainda, o gestor que desvia verbas públicas, pois as consequências da sua ação são mais danosas que as de um assalto à mão armada, por mais que o assalto nos cause indignação.

Diante desse cenário, causa-me indignação ter que reconhecer a prescrição e extinguir, na mesma balada, a punibilidade de um criminoso que tenha, no exercício de uma outorga, enriquecido à custa da desgraça e do abandono dos que lhes confiaram um mandato.

Por isso, tenho reafirmado ser necessário que todos – Ministério Público, Polícia, Poder Judiciário, dentre outros -, diante de casos dessa envergadura, nos empenhemos ao máximo para julgar a tempo e hora processos que cuidem dessas questões, envidando esforços para que não fiquem impunes, pelo decurso do tempo, os que fazem mau uso do dinheiro público.

A verdade é que, na quase totalidade das vezes, por omissão das instâncias persecutórias, os crimes praticados em detrimento do Erário ficam impunes, estimulando, nesse passo, a sua prática.

Em face da má gestão, do desvio de verbas públicas, do enriquecimento ilícito no exercício do poder, posso constatar, triste e quase revoltado, que a cultura da impunidade irradia os seus efeitos para outras instâncias, com as mesmas consequências práticas. E assim, muitos que ascendem ao poder, acreditam por ciência própria ou por ouvir dizer, que enriquecendo no exercício desse mesmo poder, pelos mais diversos meios, têm assegurada a garantia da impunidade, ou seja, que nada lhes ocorrerá, pois, conforme pensam, cadeia mesmo é só para os miseráveis.

Portanto, se é verdade que as franquias constitucionais permitem, muitas vezes, que os processos se encaminhem para a prescrição – e para consequente impunidade -, não é menos verdade que, pelo que tenho testemunhado nessas décadas de exercício judicante, com um pouco mais de boa vontade é possível fazer muito mais do que fazemos.

Proponho, pois, que façamos uma corrente positiva para reverter esse quadro desalentador. Vamos envidar esforços no sentido de fazer com que os processos que cuidam de questões desse matiz sejam julgados com brevidade,  para absolver ou para condenar; mas que cheguem ao fim, que não seja pela prescrição, pois  depõe contra as instituições de controle o favorecimento dos acusados em face do transcurso do tempo.

Ladrões de sonhos

Decerto que muitas das minhas reflexões não são aceitáveis, sobretudo para aqueles que se contrapõem às minhas ideias, Sei, portanto, que o que escrevo não é bem recebido por muitos. Todavia, isso não me preocupa, pois, como dizia Sócrates, uma vida sem exame, ou seja, sem reflexão, sem indagações, sem que se busquem novos ideais, novos caminhos, nova direção, não merece ser vivida.

Bem sei que, por comodidade e para viver em paz com todos, o ideal mesmo seria guardar as nossas inquietações no recôndito da alma, sem falar, sem dizer o que pensamos – calar, enfim; deixar as coisas fluírem. Contudo, não sei ser assim,. Por isso, vou continuar dizendo o que penso, com a necessária responsabilidade, para não ferir suscetibilidades e nem macular a honra de ninguém.

Padre Antonio Vieira dizia que melhor que luzir todo tempo, é luzir somente a tempo, pois que, assim agindo, se enganam os olhos da inveja, se concilia nos ânimos a estima. Deixar de luzir, na minha interpretação, é deixar a ribalta para não mais lembrado, para espantar a inveja do semelhante. Essa questão, inobstante, passa ao largo das minhas preocupações.

Sei que não sou digno da inveja de ninguém, pois custo muito a acreditar que alguém quisesse ser o que sou: um tipo enfadonho, incapaz de despertar qualquer sentimento que não seja da mais absoluta indiferença.

A minha hora de ser esquecido virá inevitavelmente. Enquanto esse dia não vem, não deixo a ribalta, e vou continuar expondo os meus pensamentos, consignando, em artigos, as minhas inquietações, as minhas reflexões, ainda que, assim o fazendo, corra o risco de ser mal interpretado, repetindo a sábia constatação de Amir Klink, segundo o qual na vida o maior fracasso é não partir.

Como todo jovem, eu também fui um sonhador quase incorrigível. Vivi, como muitos da minha geração, do porvir, pois que, afinal, como diz, com sabedoria, o protagonista de o Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, “é uma estupidez não ter esperança”. E foi esperando e crendo, que sonhei com um mundo melhor, retratado numa sociedade mais fraterna, menos egoísta, com mais solidariedade. Mas errei! E assim como eu, muitos erraram. É que o mundo está ficando cada dia mais difícil, mais desalentador, pelo fato de imperar nele i o oportunismo, a esperteza e o impulso descontrolado dos que almejam mais e mais, os quais, nessa volúpia, vão atropelando as pessoas, levando a vida da maneira que melhor lhes convier, na defesa dos seus interesses.

Flertei com o comunismo, vesti camiseta com a estampa de Che Guevara, apostei em Fidel Castro, pensei em morar em Cuba, sonhei com um mundo justo que, cheguei a supor, se consolidaria na ilha dos irmãos Castro. E assim, criei um mundo de sonho e de fantasia, para, depois, como todos nós testemunhamos, vê-lo ruir.

A verdade é que eles – como tantos outros que estão ou passaram pelo poder – roubaram os meus, os nossos sonhos, e ainda persistem nessa sanha, mesmo nos dias atuais, embora sob outra roupagem, agora sob os dogmas do liberalismo, mas com a mesma volúpia. E assim, vão pelos mesmos caminhos, com armas diferentes, mas da mesma forma, roubando o sonho de todos nós, deixando-nos sem a perspectiva de vislumbrar o futuro.

Hoje, já cansado de sonhar, maltratado pelo tempo que a tudo destrói, estou desencantado com quase tudo, quase perdendo a esperança. Talvez por isso, eu não suporte mais ouvir promessas oportunistas, vindo a sentir até uma certa revolta com as que são feitas a cada eleição; promessas gestadas, pensadas, com inteligência e perspicácia, para enganar, iludir, ludibriar.

Ninguém suporta mais tantas mentiras, tanta enganação. Estamos desiludidos, definitivamente, em face dessa insistência em roubar os nossos sonhos, sem nos deixar enxergar o futuro. Além disso, tudo o que fazem é em beneficio pessoal, já que eles enganam, se irmanam, se unem – e aprontam, em detrimento do coletivo, enriquecendo no poder, sem controle, sem peais, sem escrúpulos, descaradamente, pouco importando as consequências que decorram do dinheiro que subtraem, apostando na impunidade, na leniência das instâncias penais.

Com as suas ações daninhas e com o dinheiro público que subtraem, eles deixam sem perspectiva a nossa juventude, da qual surrupiam o ensino que sonhamos um dia pudesse  ser de qualidade.

Em face da voracidade com que se lançam sobre as verbas públicas, negam ao cidadão saúde, moradia, estradas de qualidades, segurança e, sobretudo, respeito, destinando ao órfãos do Estado apenas as migalhas, que têm servido, a cada eleição, para vilipendiar a consciência dos incautos, dos mais necessitados.

Já não é possível conviver com tanta desfaçatez, tanta volúpia por cargos, não para servir, mas para deles apenas se servirem. Falta aos nossos representantes, como regra, o necessário espírito público. Alheios a essa necessidade, eles deixam transparecer que só pensam em seu próprio bem estar. Afinal de contas, as disputas pelo poder não são – e nunca foram, ao que parece – para servir.

Para ilustrar, trago à colação, porque no sentido das reflexões aqui expostas, a conclusão  de Luiz Fernando Vianna, colunista da Folha de S. Paulo, no artigo intitulado O que resta, edição do dia 08 do corrente, verbis: “O vazio da política – entendida como disputa de ideais e projetos – é o terreno onde vicejam os partidos de aluguel, os chantagistas, os surrupiadores, os fascistas”.

É isso.

O fascínio da leitura

Não existe nenhum escritor pelo qual eu tenha me apaixonado como leitor. Não tenho, portanto, nenhuma preferência que me leve cegamente a ler essa ou aquela obra. Eu simplesmente leio de tudo um pouco. Ocorre às vezes de um autor que me tenha impressionado em um romance não ser capaz de prender a minha atenção em outros, acontecendo o mesmo em sentido oposto. Mas isso não significa nenhuma contradição ou falta de convicção, pois, gostar ou não gostar é uma decorrência natural da nossa liberdade de discernimento e de escolha.

Não é, pois, definitivamente, o autor que me seduz. O que me seduz e fascina numa obra literária é a construção do personagem, a fluidez narrativa e a armação da trama, que seja capaz de envolver, de nos fazer esquecer os problemas da vida, para viver os do personagem.

Essas reflexões decorreram da opinião de Michel Houellebecq, segundo o qual amamos um livro porque amamos o seu autor. Penso que o autor, pessoa física, é o que menos importa. Livros a gente os lê e desenvolve o prazer da leitura à proporção que nos identificamos com algum personagem ou com a essência da trama, além, claro, da fluidez da narrativa, pouco importando quem seja efetivamente o seu autor, isto é, independentemente do amor ou do ódio que tenhamos pelo autor da obra.

Com Germinal, por exemplo, uma das passagens mais férteis e reflexivas da obra condiz com as descrição do espírito de companheirismo e de solidariedade dos trabalhadores espoliados nas minas de carvão, sendo de relevo destacar o momento da narrativa que nos dá conta da união deles para tentar salvar a vida dos companheiros soterrados, apesar de todas as intempéries, da fome que sentiam, do cansaço que os fazia delirar e da exploração que os tinha vitimado durante tantos anos. Esse é, sim, para mim, o momento mais sublime, mais marcante da obra de Zola, que, sei, teve outra conotação como essência. Para amar essa obra prima, pouco importa saber quais as posições políticas do seu autor, por exemplo, nem se ele merece ou não ser amado por quem vier a ler a sua obra.

A seguir, à guisa de ilustração, excertos da monumental obra, na parte que importa  para reflexão.“… Mas o salvamento dos mineiros soterrados apaixonava ainda mais. Négrel estava encarregado de tentar um supremo esforço, e braços era o que não faltava, todos os mineiros vinham oferecer-se, num impulso de fraternidade. Esqueciam a greve, não se preocupavam com o pagamento, podiam não lhes dar nada, só queriam enfrentar o perigo e tentar salvar os companheiros que estavam morrendo…”“… Muitos, doentes de horror após o acidente, agitados por espasmos nervosos, inundados de suores frios, perseguidos por pesadelos, levantavam-se apesar de tudo, mostravam-se os mais decididos a baterem-se contra a terra, como se tivessem uma desforra a tirar…”. (Emile Zola, Germinal)

Do romance Uma Certa Paz, de Amós Os, ficou em mim, para reflexão, a busca quase esquizofrênica de solidão, de isolamento e de rompimento com o status quo do personagem Ionatan,  numa identificação quase umbilical, como se compartilhássemos as mesmas idiossincrasias, os mesmos problemas,  em face de me sentir instado a, depois de ter chegado ao ápice da minha carreira e de não ter nenhuma vaidade com a minha biografia, a mudar de direção, inclusive com uma aposentadoria precoce.

A seguir, fragmentos do romance, a propósito:“…Era preciso chegar a um ambiente diferente em tudo, talvez a uma cidade grande de verdade, que lhe fosse estranha, que tivesse um rio com pontes, que tivesse torres, túneis, chafarizes esculpidos como monstros de pedras a esguichar, uns sobre os outros, jatos d’água, e essa água todas as noites iluminada das profundezas por luzes elétricas, e às vezes lá estaria uma mulher desconhecida e sozinha, o rosto voltado pata a luz da água, de costas… O tempo todo, em toda a minha vida, eu abro mão e abro mão e já quando eu era pequeno me ensinaram que a primeira coisa é abrir mão, e na turma abrir mão, e nas brincadeiras abrir mão,  e ter consideração, e dar um passo ao encontro de, e no Exercito e no trabalho e na minha casa e no campo de esportes ser sempre generoso, ser legal e generoso e não criar caso e não perturbar e não insistir mas sim prestar atenção, levar em consideração dar ao próximo dar ao coletivo dar ajuda se atrelar ao objetivo sem ser mesquinho sem contabilizar e o que me resultou de tudo isso resultou que dizem de mim Ionatan é bem legal um rapaz sério com quem se pode falar pode procurá-lo você vai se arranjar como ele ele sabe das coisas um rapaz dedicado um homem simpático mas agora chega. Basta. Acabaram-se as concessões. A partir de agora começa uma nova história… ( Um Certa Paz, Amós Oz)

Basta refletir sobre as duas situações destacadas nos dois romances para que se avalie como o ser humano, o mesmo homem, o mesmo filho de Deus, diante de circunstâncias similares, pode adotar posições diametralmente opostas, a desnudar as nossas contradições. Enquanto os personagens de Germinal entregam a vida para salvar os amigos soterrados, pouco se importando com os seus problemas pessoais,  o solitário e sombrio Ionatan de Uma Certa Paz chega a um momento da vida em que simplesmente dá um basta à zona de conforto e às regras de convivência que até então lhes tinham sido impostas, repudiando tudo que lhe foi ministrado, inclusive o sentimento de solidariedade.

O leitor pode, sim, diante das duas obras, escritas em épocas em tudo diferentes, com personalidades centrais de perfis tão díspares, se identificar com uma ou com outra, mas, ainda que não o faça, certamente poderá fazer boas ponderações sobre aquele que, dentre todos os animais da terra, é o mais complexo e surpreendente, o homem. Daí o fascínio da literatura.

Todavia, para o bem e para o mal, difícil é não se sentir um pouco personagem de cada um desses romances, sempre à luz das suas perspectivas de vida. Eu, curiosamente, para reafirmar as minhas conhecidas imperfeições, tanto me identifico com o sentimento solidário dos personagens de Zola, quanto com inquietação do personagem de Amós Oz, pois, em determinados momentos, penso, sim, em romper com o status quo, e iniciar uma nova jornada, mas sou contido pela sensatez e pela condição de sexagenário, que já não me permite iniciar uma aventura, ao mesmo tempo em que deixo fluir o sentimento de solidariedade que viceja em mim, sem que vislumbre nisso nenhuma contradição inconciliável.

Como se vê, a literatura que diverte é a mesma que faz refletir sobre a vida.  Por isso, e muito mais, é que ela é fascinante. Contudo, reafirmo, tem que ser literatura reflexiva, não a mecânica, automática, sem alma, oportunista, escapista, que visa ao lucro, que exista apenas em face de uma volúpia arrecadadora, dramas construídos em laboratórios e não urdidos na mente reflexiva e criadora do homem.

Eu, cá do meu lado, com as minhas “otarices”

Em face de tudo o que tem sido noticiado sobre o aparelhamento do estado e desvio de verbas públicas, essa crônica é mais que oportuna. Não pretendo com ela, no entanto, nada mais que refletir, à minha maneira, sem a pretensão descabida de assumir o papel de paladino da moralidade, o que não sou, tendo em vista que, como qualquer homem público, devo me equivocar, de vez em quando, nas minhas escolhas morais.

Dito isto, menciono, agora, para ilustrar essas reflexões, dois exemplos – um da vida real e outro, da ficção – que bem demonstram a visão de mundo das pessoas, a partir dos valores morais de cada um.

Primeiro, da vida real. Escutava eu um programa policial, quando o repórter indagou ao meliante se ele não tinha escrúpulos em roubar uma aposentada, que já percebia tão pouco, que já dera a sua contribuição à sociedade, e que, por viver de uma pequena aposentadoria, decerto sobrevivia com muita dificuldade. O meliante, vaidoso, respondeu indagando ao repórter, mais ou menos nesses termos: “E você pensa que a minha vida é moleza. Assaltar não é fácil, meu amigo. Se a vida da vítima é difícil, as minhas dificuldades não são menores”.

Agora, o exemplo da ficção, por mim já referida em outra oportunidade. O meliante Lambreta, na crônica de Rubem Fonseca, intitulada Feliz Ano Novo, era, como o meliante antes referido, além de arrogante, um cara vaidoso; e sua vaidade decorria das suas ações criminosas, tanto que um dos seus pares, em determinado passagem da extraordinária crônica, lhe faz a seguinte menção: “O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano. Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha. É vaidoso, mas merece. Já trabalhou em S. Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, para não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos”.

Aqui mesmo neste mesmo espaço, já refleti em outras ocasiões sobre a vaidade malfazeja, aquela que é capaz de cegar, de só permitir que o homem veja a sua própria imagem refletida, o que o faz pensar que o seu umbigo é o centro do universo, como é o caso dos personagens mencionados à guisa de exemplo.

Aqui pretendo refletir, mais uma vez, com mais ênfase, sobre a vaidade, nas suas duas vertentes, a forma como se apresenta aos meus olhos: a benfazeja, ou seja, aquela que, de rigor, todos temos, e que é até certo ponto necessária, já que todas as pessoas gostam de ser reconhecidas, elogiadas, respeitadas; e a dita malfazeja, aquela que leva os homens a fazerem loucuras, a perderem a noção do ridículo, a se comportarem como se as relações pessoais exigissem uma grife para fazer sentido, que têm sede de poder e de dinheiro, pouco se importando com a sujeira que deixam pelo caminho e os reflexos de suas condutas junto às próprias famílias, como temos visto no caso do “petrolão” e, antes, do “mensalão”.

Enquanto a vaidade benfazeja nos impõe a obrigação de fazer sempre o melhor, para corresponder às expectativas do semelhante e às nossas próprias expectativas, a malfazeja, de seu lado, é cruel, daninha, esquizofrênica, perversa, corrosiva, destruidora, danosa, esnobe, ridícula, digna de reproche, podendo, em face de todos esses predicados, levar à perda do sentido do que seja imoral ou inescrupuloso.

A reafirmar as nossas eternas contradições, a exigir de todos uma intensa reflexão, todos nós testemunhamos, nos dias presentes, com a dimensão que o mais pessimista não seria capaz de imaginar, a sedimentação, a carnavalização, a proliferação, em escala industrial, do malfeito, como se fosse uma regra.

O grave é que, para o meu, para o nosso desalento, há os que se orgulham, que se ufanam, sem disfarce, do mal que fazem às pessoas, quando, por exemplo, subtraem o dinheiro público. Esses, apesar do mal que fazem a todos nós, por vaidade (malfazeja, como mencionei acima), pelo apego danoso ao dinheiro, ainda se sentem no direito de esnobar, de promover festas grandiosas à custa do meu, do nosso dinheiro, como se fosse algo absolutamente natural.

Mas como cada um é cada um, cada um se orgulha ou se envaidece de acordo com os seus valores morais. Uns preferem se manter nos estreitos limites da ética, da honradez e da decência; outros, sem escrúpulos, se vendem por pouco, fazem qualquer negócio, se orgulham de, num mundo de otários, se destacarem por não sê-lo.

Eu, cá com os meus botões, vou levando a vida com as minhas “otarices”, na certeza de ter optado, diante de um leque de escolhas morais, pelas mais condizentes com a minha condição de cidadão, magistrado e pai de família, conquanto admita, com humildade, que possa, sim, em algum momento da minha vida e com considerável grau de certeza, não ter feito a melhor escolha.

Decisões judiciais desmotivadas

Guilherme de Souza Nucci, numa das aulas recentemente ministradas no curso de pós-graduação, fez duras críticas aos juízes do seu Estado, os quais, segundo ele, não fundamentam as decisões que convertem em preventivas as prisões em flagrante, bem assim a dosimetria das penas,  limitando-se a repetir as palavras da lei    (garantia da ordem pública, para justificar um decreto de prisão preventiva, ou consciência da ilicitude, como circunstância judicial, para justificar a majoração da pena-base), submetendo, dessa forma, os juízes do segundo grau a uma situação desconfortável, em virtude de lhes caber o ônus de colocar em liberdade perigosos meliantes ou reduzir as penas fixadas no édito condenatório.

Na mesma aula, o eminente doutrinador aduziu, ademais, que são muitos os magistrados de primeiro grau que, instados a prestarem informações, em face de habeas corpus, limitam-se, na mesma balada, com a mesma falta de zelo, a fazer um  brevíssimo relatório do processo, quando, na sua compreensão, deveriam justificar as razões pelas quais decidiram pela manutenção da prisão.

Devo dizer, a propósito,  que essa é uma situação que nos iguala a todos. Aliás, basta atentar para as decisões dos Tribunais de Justiça do Brasil inteiro para se concluir que, infelizmente, são muitos os magistrados de primeiro grau que, nas decisões criminais, não se esmeram na fundamentação de suas decisões, não só nos decretos de prisão  preventiva, como também, sobretudo e rotineiramente, quando da dosimetria das penas, resultando disso que, muitas vezes, réus perigosos são beneficiados com a redução da pena ou com o relaxamento de sua prisão, em detrimento, claro, dos legítimos interesses da sociedade, que já não suporta tanta violência, estimulada, disso tenho convicção, pela sensação de impunidade.

Essa pouca importância que têm sido dada ao comando constitucional – que impõe a todos os magistrados o dever de fundamentar as nossas decisões – nos coloca a todos, enquanto representantes das agências formais de controle, em situação de desconforto perante a comunidade, nos agastando sobremaneira em face dessa grave omissão, incompatível com o Estado Democrático de Direito, cujas consequências são desastrosas para o conjunto da sociedade, máxime porque, de regra, os recursos que aportam no segundo grau são da defesa, inviabilizando, assim, qualquer decisão que não seja em seu próprio benefício.

Registro que o professor Guilherme de Souza Nucci não pediu segredo ao fazer a grave acusação contra os seus pares, já que o fez publicamente, no último Seminário do IBCCRIM, do qual tive a oportunidade de participar, em São Paulo; críticas acerbas e em razão das quais não vi nenhuma manifestação contrária. Aliás, quem pretender confirmar a veracidade do que disse o professor Guilherme de Souza Nucci, basta pesquisar nos acórdãos dos Tribunais do Brasil, para constatar as incontáveis vezes em que fazemos menção às decisões desmotivadas, em razão das quais, especificamente no que condiz com à dosimetria da penas e aos decretos de prisão preventiva,  somos obrigados a relaxar prisões ou compelidos a reduzir penas, impossibilitados, noutro giro, de avaliar a racionalidade da decisão judicial submetida a reexame (Aury Lopes Júnior).

A propósito dessa situação que nos iguala a todos, lembro-me de uma reflexão interessante do antropólogo Roberto da Mata, autor de Carnavais, Malandros e Heróis, segundo o qual o trânsito mostra de forma inequívoca como o brasileiro tem horror a situações nas quais é colocado em igualdade de condições com outros. Contudo, segundo o antropólogo, ainda que uns dirijam limusines, e outros, carrinhos populares, ou uns tenham dinheiro para “molhar a mão” do guarda e outros não, o sinal é vermelho para todos.

Se for verdade, como diz o antropólogo, que temos pavor de ser colocados em condições de igualdade com os outros, seria de bom tom que nos esmerássemos mais em nossas decisões, sobretudo em matéria penal, para não proporcionar a redução injusta de pena e nem facilitar a concessão de liberdade para quem não merece, pois, diante do quadro de violência que a todos nós aflige, estamos em igual situação, queiramos ou não.  E aí, não adianta lamentar, porque, ante a violência, assim como no sinal de trânsito, somos todos iguais.

Simplificar para desqualificar

Os iconoclastas (destruidores de imagens) costumam simplificar, ou seja,, sintetizar, num conceito menor, o que pensam dos que pretendem destruir a imagem, para, a partir de um rótulo, defini-los e marcá-los com cores vivas e chamativas, para que todos saibam, já a distância, de quem se trata, segundo a sua torpe visão..

Dois exemplos – um de ontem, e o outro, de hoje.

Mário de Andrade, cujos 70 anos de morte foram recentemente lembrados, e cuja construção literária todos reconhecem, tem sido muito mais lembrado pela sua não assumida condição de homossexual (?) do que em face de sua monumental obra.

Todos querem saber. É uma curiosidade esquizofrênica. Afinal: era ou não era homossexual o autor de Macunaíma? Teria sido para não desvendar esse mistério, que tanta curiosidade desperta, que, por tantos anos, os seus descendentes proibiram que a sua biografia fosse lançada?

Finalmente, a biografia de Mário de Andrade vai sair. E, para satisfação dos curiosos, o biógrafo Jason Tércio, autor de Órfão da Tempestade, biografia de José Carlos de Oliveira, vai desvendar o mistério: seria ele, segundo dados antecipados da biografia em comento, bissexual. Nessa revelação vem embutida a seguinte, pergunta: Qual a importância dessa informação para a literatura brasileira? Decerto que ninguém sabe responder, mas os curiosos, ou iconoclastas, finalmente saciarão a sede.

Luis Felipe Scolari, alcunhado Felipão, é um técnico vitorioso. Campeão do mundo pelo Brasil e com trabalho destacado pela sua qualidade, por muitos analistas mundo a fora. Todavia, é lembrado, sempre, como o técnico que levou o Brasil à sua segunda maior humilhação em Copas do Mundo.

 Pronto! Esse está ferrado, marcado como gado, para o resto da vida. Desse estigma, dessa mácula nunca mais se livrará. Faça o que fizer, será sempre lembrado como o técnico protagonista dos 7 x 1 para a Alemanha.

Por instinto de preservação, falo de mim agora, sem, no entanto, esquecer a lição de Padre Antonio Vieira, segundo o qual melhor que luzir em todo o tempo, é luzir somente a tempo, pois, assim, se enganam os olhos da inveja, assim se concilia nos ânimos a estimação.

Durante muitos anos, quando as pessoas queriam me desqualificar, simplificavam a minha história com uma única e mágica palavra: arrogante. A ideia era que, a partir desse rótulo, as portas não se abrissem para mim:

Simples assim. Tudo o mais que eu fizesse seria debalde em face da minha condição de arrogante, adjetivo que, atualmente, parece ter esmaecido, mas que, aqui e acolá, ainda é lembrado, quando pretendem me desmerecer.

Nos dias presentes, quando querem simplificar a minha ação enquanto magistrado criminal, me rotulam (alguns, claro) de garantista, no seu sentido mais perverso e deturpado, ou seja, aquele que, em nome da lei, passa a mão na cabeça de meliantes.

Entrementes, devo lembrar aos que fazem uso da etiqueta por maldade, que já não me incomodo com os rótulos, motivo pelo qual não tergiversarei quando tiver que decidir para reparar uma arbitrariedade.

Definitivamente, me recuso a ser um juiz positivista, segundo o qual lei é lei, e ao juiz só resta cumpri-la cegamente. Nesse sentido, serei sempre um intransigente defensor do Estado Democrático de Direito, ainda que, por pensar e agir assim, tenha que, aqui e acolá, decidir de forma contramajoritária.

Garantismo, para mim, é algo muito caro, conquanto reconheça que, no meu caso, o rótulo objetiva mesmo – pelo menos por parte de alguns críticos mais radicais, pois há quem o faça respeitosamente por compreender as minhas posições – é a simplificação malsã, numa palavra, num epíteto, da minha vocação para respeitar as leis do meu país, ainda que o seja para favorecer a um recalcitrante meliante.

A minha história, definitivamente, se contrapõe a essa simplificação, pois, durante a minha vida inteira, nunca tergiversei no combate à criminalidade, ainda que o tenha feito somente em relação ao pequeno delinquente, sabido que, no Brasil, salvo algumas exceções, a ação das agências de controle sempre esteve a serviço do criminoso egresso das classes menos favorecidas.

Portanto, que fique claro que, pelo menos no meu caso, garantismo não se confunde com impunidade, tibieza, leniência ou falta de compromisso, pois os que trabalham comigo sabem que costumo agir com sentimento voltado para bem servir a coletividade, e que, ademais, só mesmo  um flagrante e inequívoco desrespeito ao Estado Democrático de Direito me conduz à concessão de liberdade a um meliante violento e/ou recalcitrante.

É sempre bom reiterar que o meu compromisso com a Justiça é permanente, ainda que, por desídia de alguns, seja compelido, na condição de juiz de segundo grau,  a reparar uma injustiça ou um erro judiciário.

O bom juiz, o juiz rigoroso não é o justiceiro, o que pensa que, com sua ação isolada, pode mudar o mundo. Juiz bom é aquele que, sem temer pela incompreensão, é capaz de reparar uma injustiça, ainda que o faça contramajoritariamente ou em desacordo com o que quer e pensa a maioria.

A propósito, é sempre oportuno lembrar as reflexivas palavras de Aury Lopes Junior, segundo o qual o juiz imparcial e que verdadeiramente desempenha sua função (de garantidor), deve estar acima de qualquer pressão ou manipulação política. Não que com isso, prossegue o jovem jurista, estejamos querendo o impossível – um juiz neutro – senão um juiz independente, alguém que realmente possua condições de formar a sua livre convicção, pois, afinal, o juiz, num Estado Democrático de Direito, tem uma nova posição e a legitimidade de sua ação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais.

Digo mais, na esteira do mesmo doutrinador. A função do juiz não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais, ainda que para isso tenha de adotar, como consignei acima, uma posição contraria à opinião da maioria, afinal, como lembra Luig Ferrajoli, o objetivo justificador do processo penal é a garantia das liberdades do cidadão, razão pela qual, digo eu,  nenhum magistrado, num Estado Democrático de Direito,  pode ficar inerte diante de violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais, pouco importando quem seja a vítima da violação, se um réu primário ou recalcitrante..

Cumpre registrar, finalmente, forte no escólio de Gilmar Mendes, que a lei cumpre uma função de proteção contra o arbítrio, ao vincular os órgãos do Estado. Importa reafirmar, ademais, que a principal finalidade dos direitos fundamentais (Ana Paula de Barcellos), é conferir aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, a limitar a liberdade de ação dos órgãos do Estado, pois, afinal, como lembra a mesma professora Ana Paula de Barcellos, a Constituição tem a forma de um repositório geral de esperança, cujos direitos fundamentais nela inseridos, digo eu, devem assegurar a esfera de liberdade individual contra as interferências ilegítimas e/ou arbitrárias das agências de controle.

É isso.           ‘

O que nos enlouquecem são as nossas certezas

Muitas vezes, pensamos de nós e concluímos sobre nós o que nem sempre é a percepção dos outros. Ao constar essa realidade, nos flagramos, de regra, decepcionados e tristes – quando não deprimidos. Assim como qualquer outra pessoa, também, às vezes, faço de mim o juízo que não corresponde à avaliação dos meus congêneres.

Nesse sentido, lembro-me de que, certa feita, estando com a minha família em viagem de férias, procurei, como sempre, servir e agradar, de todas as formas, aos meus filhos e à minha mulher, o que é próprio da minha personalidade.

Não sei e não gosto de infelicitar as pessoas; se eu não tiver condições de estabelecer uma relação prazerosa com os que estão em volta de mim, seja no trabalho, seja na minha família, eu não fico bem comigo mesmo.

Conforme eu dizia, nessa viagem de férias procurei fazer de tudo que estivesse ao meu alcance para que todos ficassem numa boa, para que as férias fossem prazerosas e, se possível, inesquecíveis, por tudo o que de bom fosse desfrutado por nós.

Determinado dia, depois de muitas concessões a todos e bem poucas a mim, sem nada reclamar, para não ser desagradável, mesmo em face do brusco rompimento da minha rotina, resolvi bater o martelo e decidi que naquele dia eu voltaria para o hotel a fim de almoçar no meu horário (meio-dia) e para tirar uma sesta, já que estava com saudade da minha rotina. Isso foi o bastante para que me elegessem, em votação aberta e por unanimidade, o, digamos, menos simpático da viagem, – sem nenhuma concessão, sem apelo.

O mais grave é que eu, na minha (falsa) percepção – e aqui está o ponto principal dessas reflexões – imaginava exatamente o contrário, a reafirmar, mais uma vez, como diz o título desse artigo, que somos enlouquecidos pelas nossas certezas, daí o perigo de uma falsa percepção de nós mesmos, como é comum ocorrer, sobretudo com os que têm a vaidade desmedida e que consideram seu umbigo como o centro do universo.

Não preciso dizer da minha inquietação, da minha frustração, do meu desapontamento com a minha “eleição”, muito embora, depois, tudo tenha se transformado em uma grande gozação, o que, afinal, era mesmo o que pretendiam os meus filhos e minha mulher, competentes e fiéis administradores das minhas manias.

Mas, ainda assim, fiquei com uma pontinha decepção, porque vi nessa manifestação a constatação de um fato, que eu, com as minhas equivocadas certezas, não tinha conseguido perceber. Ainda tentei argumentar em minha defesa, mas não fui nem um pouco convincente, pois, quanto mais eu tentava argumentar, mais eles reafirmavam que eu tinha sido pouco simpático, cheio de manias, cheio de rotinas, e que as rotinas, em viagem,  eram para ser quebradas, o que, de rigor, estou de acordo, tanto que só pedi um dia de concessão, o que me foi terminantemente negado.

Mas o que importa mesmo é a constatação de que os loucos iguais a mim vivem os seus delírios, creem nos seus sonhos, se equivocam nas suas certezas e sofrem por isso.

Quanto ao incidente aqui relatado, posso afirmar com alegria que no final tudo se transformou em uma grande festa, daquelas que ocorrem, naturalmente, numa família unida e que se ama verdadeiramente

A certeza que eu tinha de ter me doado ao máximo aos meus filhos para lhes proporcionar as férias dos sonhos, quase me “enlouquece”, ao constatar que, diferente do que eu pensava, eu apenas delirava.

Mas o que importa mesmo é que, ao fim e ao cabo, depois de tudo, vivemos e vivenciamos  momentos inesquecíveis na companhia um do outro. É que a “eleição” foi apenas um detalhe, uma grande gozação, que nos divertiu e nos uniu ainda mais, pois, afinal, o que sobreleva, o que assoma, o que se consolida mesmo, com força voraz e incontrolável, em torno dessas e de outras questões, é o amor que nos une e a necessidade que temos de estar juntos, respeitando sempre a individualidade de cada um, entendendo que se deve ceder, sempre que for necessário, em nome do amor e da união que devem prevalecer nas relações familiares.

Como suportar tanta realidade

Às vezes me pego indagando como, nos dias atuais, suportar  tanta realidade, para usar uma expressão de T.S. Eliot (1888-1965), diante, sobretudo, da violência que se alastra e que faz de todos nós refens de nós mesmos.

A propósito, numa das mais recentes sessões da Câmara Criminal,  fizemos, eu e meu diletos colegas, algumas reflexões acerca da violência que grassa na sociedade e em face da nossa situação de impotência diante do crime, que tirou de todos nós a nossa liberdade e o sagrado direito de ir e vir livremente, como, afinal, preconiza a nossa Constituição.

Essas reflexões vieram a propósito de alguns habeas corpus que pretendiam a liberdade de criminosos violentos – latrocidas, assaltantes, estupradores, etc – , os quais alegavam estar submetidos a constrangimento ilegal, em face da demora no encerramento da instrução, padeciam, numa primeira análise, de algum constrangimento ilegal.

Conquanto vislumbrássemos um pequeno elastério na instrução criminal, entendemos, à unanimidade, que não deveríamos conceder liberdade aos acusados, por compreendermos que, diante da realidade que vivenciamos, da periculosidade do paciente, aferida em face do crime em concreto, e, algumas vezes, em face de sua vida predadora em sociedade, se não seria punir essa mesma sociedade em face da aplicação cega da lei, dissociada da realidade.

 Optamos pela manutenção das prisões, na certeza de que, agindo assim, prestávamos um tributo à sociedade, ao tempo em que deixamos transparecer ao acusado que, por ser perigoso, teria que suportar as consequências de sua ação, ainda que o fosse pela via excepcional da constrição provisória, autorizada ex vi legis.

Temos entendido, conquanto tenhamos consciência de que não se deve abusar das prisões provisórias, em face mesmo da presunção de inocência, que, diante da criminalidade violenta, não se pode simplesmente fechar os olhos para a situação concreta que ensejou a prisão cautelar do paciente, pois, mesmo que não seja objeto do remédio heroico, o fundamento do decreto prisional é relevante para se aferir se a soltura do réu é temerária.

Por isso, conquanto se discuta, por exemplo, excesso de prazo, não se pode descurar dos motivos que ensejaram a medida extrema. Não se deve, por exemplo, em face de um pequeno excesso, não atribuível à desídia do magistrado, colocar em liberdade um denunciado por crime extremamente grave (latrocínio com resultado morte), o qual, ademais, responde a outros tantos processos por crime  violentos..

A gravidade concreta do delito, é preciso não deslembrar, assim como a reiteração criminosa, é motivo, sim, para a manutenção da prisão preventiva do paciente, como forma de garantir a ordem pública e a paz social, mormente quando se aproxima o julgamento da ação penal, ainda que se verifique uma pequena demora no encerramento da instrução.

Reitero, nessa linha de pensamento, que as circunstâncias relacionadas ao lapso temporal devem ser apreciadas em conjunto com as especificidades do caso, concernentes à necessidade de acautelamento do meio social.

As decisões judiciais devem, sim, ser meramente técnicas, mas não somente técnicas, pois que devem, acima de tudo, ser justas justas e eficazes, direcionadas ao fim precípuo do Direito Penal, de forma a garantir a harmonia social, desde que, é claro, não se constate ofensa aos direitos fundamentais do ergastulado.

Forte nessas considerações, entendo que um pequeno retardo para o encerramento da instrução não autoriza, ipso facto, ipse jure, a colocação em liberdade de quem tem uma vida perniciosa e perigosa em sociedade, pois a segregação, nesses casos, é medida que se impõe.

Em face da criminalidade, sobretudo a violenta, reafirmo que, como diz o título dessas reflexões, não está fácil suportar tanta realidade; para suportá-la, é necessário  que os agentes do Estado responsáveis pela persecução criminal, não descurando de suas obrigações e de seu compromisso para com as pessoas de bem, tenham a coragem de segregar quem deva ser segregado, não olvidando, nada obstante,  que a legitimidade de sua ação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais(Aury Lopes)

Mas é preciso, da mesmo forma, ter coragem de conceder liberdade a quem eventualmente se ache sofrendo constrangimento ilegal, ainda que, com a decisão, seja incompreendido, afinal, com lembra o mesmo Aury Lopes, juiz imparcial e que verdadeiramente desempenha sua função (de garantidor) deve estar acima de qualquer pressão ou manipulação política, afinal, juízes não tem que ser um sujeito representativo, posto que nenhum interesse ou vontade que não seja a tutela dos direitos subjetivos lesados deve condicionar seu juízo.