Principio essas reflexões partindo da afirmação de Jean-Jacques Rousseau de que o homem é um ser naturalmente bom, cuja bondade restaria corrompida pela sociedade.
É claro que, até onde vai a minha percepção, não dá pra dizer que todo homem é naturalmente bom, como não dá pra dizer que a sociedade necessariamente o torne mal.
A experiência mostra, a contrariar a tese, que há pessoas que parecem ter nascido para fazer o mal; há outras tantas que, a despeito dos reveses da vida e das injustiças a que são submetidas, são incapazes de fazer o mal.
Pois bem. Hoje, à tarde, saí para dar as minhas habituais e necessárias pedaladas.
A certa altura, o pedal da bicicleta caiu. Fiquei desarmado. Olhava para um lado e para o outro, sem saber o que fazer, numa sinuca de bico.
Tentei, em vão, colocá-lo no lugar. Fiquei apreensivo, com receio de que aparecesse algum malfeitor, ressabiado em face de um assalto que me vitimou há poucos dias.
Pois bem. De repente, ao tempo em que tentava recolocar o pedal, apareceu um rapaz, que logo se aproximou, a me assustar. O coração, claro, disparou. Pensei com meus botões: outro assalto. Logo em seguida, constatei que se tratava de uma pessoa de bem.
Pois bem. Muito simpático e solícito, o rapaz – desconhecido, claro – colocou o depósito de queijo que trazia consigo (todos cortados em cubos, para venda) no chão, ao lado de um fogareiro apagado, e passou a tentar colocar o pedal da bicicleta.
Nas primeiras tentativas, como não alcançasse êxito, tratou logo de sentar no chão, como se tivesse sido contratado por mim para fazer aquele serviço.
Fiquei a observá-lo, absorto! Ele, de seu lado, descontraído, cheio de boa vontade, ia tentando resolver o problema.
Fiquei a pensar com meus botões: de onde vem essa que me parece uma boa alma?
Quem são os pais desse bom rapaz? Seus amigos, quem são? Onde mora? De onde vem? Por que está me ajudando? Exigirá ele, depois, algo em troca? E o queijo? Pelo visto, ele se desinteressou de vendê-lo, certamente porque espera ser bem recompensado.
Vi, depois do susto inicial, e depois de me fazer tantas interrogações, que se tratava mesmo de uma boa alma.
Um dado curioso. O desconhecido, muito à vontade, viu a tampa do depósito voar para longe, mas não largou o que estava fazendo. Continuou tentando colocar o pedal no lugar, com a maior boa vontade. Um outro transeunte passou, viu a tampa voando, correu atrás, trazendo-a de volta.
A partir daí, eu próprio cuidei do depósito do desconhecido, atento para que a tampa não voasse mais. Ele, enquanto isso, lutava, embalde, para repor o pedal.
A certa altura, levantou-se e saiu correndo. Pediu que eu aguardasse, pois ele iria atrás de uma chave.
Fiquei, ao lado da bicicleta, olhando para um lado e outro, enquanto aguardava o desconhecido, e persistia fazendo questionamentos sobre a sua atitude.
Pensava: meu Deus, o que será que esse rapaz vai pedir em troca? E eu, sem um centavo no bolso! Como vou dizer a ele que não tenho como pagá-lo?
Em dado momento me dei conta dele saindo de um bar, com um alicate na mão, feliz com a possibilidade de resolver o meu problema.
Mais uma vez debalde. A rosca estava estragada. Não havia mais o que fazer.
Desanimado, olhei para um lado e para o outro, perdido, sem saber o que fazer. Ele percebeu o meu desânimo, e lamentou a minha frustração. Parecia que já me conhecia há muito tempo.
Não! Ele não me conhecia! Não sabia de onde eu vinha, e nem para onde eu ia. Mas, ainda assim, procurou me ajudar, sem pedir nada em troca – por bondade. Pelo desejo de servir ao próximo.
Depois disso, saí andando, desnorteado, pela Litorânea, apenas com as luvas nas mãos, decidido a vir embora a pé.
No trajeto inicial, Chagas me acompanhou, lamentando o insucesso da empreitada.
Ele seguia com o queijo no depósito, e o fogareiro, apagado.
Mas nada disso parecia preocupá-lo. O que ele lamentava mesmo era não ter podido me ajudar.
Eu disse a ele, então:
– Chagas, não tenho nenhum trocado para te dar. Todavia, prossegui, passo amanhã, deixo um dinheiro no bar do Deusimar – onde a minha bicicleta ficou guardada – pra ti.
Ele disse, então, que eu não devia me preocupar, e que, se fosse possível, ele gostaria mesmo era de arrumar um emprego. Disse mais:
– Tá tudo muito difícil, doutor. O mais fácil seria roubar, como faz a galera, mas eu não quero isso pra mim. Eu quero mesmo é trabalhar.
Mas foi além. Disse que eu não me preocupasse com dinheiro, pois sabia que um dia a gente se encontraria, e, nessa ocasião, eu daria a ele o que entendesse devesse dar.
Respondi a ele que, infelizmente, não tinha como arrumar-lhe um emprego.
Ele nada reclamou. Não pediu mais nada. Se despediu. E partiu, já a tarde findando, para tentar vender queijo assado na brasa.
Seguiu com o depósito de queixo sobre o braço esquerdo, e o fogareiro rodando com a mão direita, para atiçar o fogo.
E sumiu da minha vista.
Acho que não encontrarei mais o benfeitor Chagas.
Mas ficou para mim a lição, a reafirmação, de que, felizmente, o mundo ainda está povoada de pessoas de bem, dispostas a ajudar o próximo, sem pedir nada em troca, pelo prazer de ser solidário.
Chagas, para mim, é um ser naturalmente bom.
As dificuldades da vida, o mundo, enfim, não o corrompeu, e quiçá não o corromperá jamais.
Pena que eu não possa ajudar Chagas a conseguir um emprego.
Fico te devendo essa, Chagas!