Capturado no blog do Claúdio Weber Abramo
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Exmo. Sr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, procurador-geral da República
Prezado senhor procurador-geral:
Dirijo-me a V. Excia. com o intuito de indagar o motivo pelo qual a Procuradoria-Geral da República tem se mantido inerte ante os inelutáveis indícios de crimes cometidos em série por parlamentares e funcionários do Congresso Nacional e ante a tentativa de acobertamento desses ilícitos por parte dos integrantes das Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Mais especificamente, tanto num caso como no outro, parlamentares e funcionários dessas Casas descumpriram a lei, apossando-se direta ou indiretamente (via apaniguados, parentes e outros) de dinheiro público. A materialidade dos ilícitos cometidos por esses indivíduos deve, naturalmente, ser investigada. Para isso existe o Ministério Público, que V. Excia. chefia.
Enrte os deveres da instituição dirigida por V. Excia. está a decisão, tomada de ofício (ou seja, sem necessidade de estimulação externa), de investigar situações em que haja suspeita do cometimento de crimes.
É o caso em questão. São avassaladores os indícios de que gandes quantidades de parlamentares brasileiros e de funcionários que lhes devem obediência usaram seus cargos em benefício próprio ou de parentes e associados.
Não bastasse isso para justificar a solicitação de abertura de inquérito pelo Ministério Público Federal, adiciona-se ainda a tentativa de acobertamento daqueles crimes por parte das Mesas Diretoras das respectivas Casas.
Um exame, mesmo que perfunctório, do Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848 de 7/12/1940), e mesmo que realizado por um leigo como o signatário, revela que o comportamento dos parlamentares e funcionários em questão tem sido capitulável na quase totalidade dos artigos do Título XI, Capítulo I daquele diploma legal, que trata dos crimes contra a administração pública praticados por agentes públicos. Podem-se mencionar:
Peculato (Art. 312) – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
§ 1º – Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.
Peculato mediante erro de outrem (Art. 313) – Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem.
Inserção de dados falsos em sistema de informações (Art. 313-A) – Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano.
Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações (Art. 313-B) – Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente.
Parágrafo único. As penas são aumentadas de um terço até a metade se da modificação ou alteração resulta dano para a Administração Pública ou para o administrado.
Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento (Art. 314) – Extraviar livro oficial ou qualquer documento, de que tem a guarda em razão do cargo; sonegá-lo ou inutilizá-lo, total ou parcialmente.
Emprego irregular de verbas ou rendas públicas (Art. 315) – Dar às verbas ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei.
Corrupção passiva (Art. 317) – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
§ 1º – A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.
§ 2º – Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem.
Prevaricação (Art. 319) – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
Condescendência criminosa (Art. 320) – Deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente.
Exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado (Art. 324) – Entrar no exercício de função pública antes de satisfeitas as exigências legais, ou continuar a exercê-la, sem autorização, depois de saber oficialmente que foi exonerado, removido, substituído ou suspenso.
O envolvimento de quantidades enormes de parlamentares no cometimento desses crimes tem sido abundante e continuamente noticiado pela imprensa. A cada nova revelação de ilicitudes cometidas por deputados federais e senadores, apressam-se os integrantes das Mesas Diretoras (bem como de outros órgãos parlamentares, como Comissões de Ética e Corregedorias) a minimizar a gravidade das denúncias e, depois de algum tempo, transformá-las em deslizes desculpáveis.
Foi assim com o caso do uso irregular de dinheiro público para custear passagens de parentes, amigos etc. de deputados e senadores e está sendo assim no escândalo mais recente das nomeações secretas no Senado.
O indício de comportamento criminoso dos integrantes das Mesas e de outros órgãos é, assim, inelutável. No mínimo são esses indivíduos processáveis por condescendência criminosa, quando não por prevaricação.
Os esforços de acobertamento praticados pela massa dos Congressistas são assistidos pela população brasileira com crescente grau de indignação. São cada vez mais evidentes os sinais de que o eleitor-contribuinte brasileiro perde a confiança nas instituições parlamentares. Muitos passam a questionar a própria justificativa de existência do Parlamento.
Ao lado disso, a inação judicial perante os descalabros cometidos no Parlamento reforça o descrédito nas instituições que se espraia pelo país. Não apenas o Parlamento passa a ser visto como descartável mas também são percebidos como complacentes aqueles que, como V. Excia. e o MPF, têm o dever de proteger o interesse público.
Creio não ser necessário estender-me quanto à gravíssima erosão institucional que tudo isso representa.
A instituição que V. Excia. dirige pode exercer um papel crucial na reversão desse descrédito.
A respeito do papel fundamental que o Ministério Público pode exercer na correção de rumos de um Legislativo que perdeu o senso do respeito e permite que seus integrantes ajam desavergonhadamente e às escâncaras em benefício próprio, tomo a liberdade de lembrar o que aconteceu na Itália, na década de 1990, no âmbito do que se passou a conhecer como Operação Mãos Limpas (Mani Puliti).
Lá, em face de evidências de que os partidos políticos e o Parlamento haviam se embrenhado na criminalidade, uma ampla investigação conduzida por procuradores levou à condenação de inúmeros políticos e de seus cúmplices privados. Embora as circunstâncias fossem diferentes das que ora assolam o Parlamento brasileiro, coube aos procuradores de Justiça italianos agirem quando os políticos do país se entregaram ao gangsterismo.
Uma intervenão semelhante é o que se espera de V. Excia e do Ministério Público Federal.
Atenciosamente,
Claudio Weber Abramo