A persecução criminal não pode se desenvolver abusivamente,arbitrariamente, sem norte e sem ro, mas em virtude de comandos legais esculpidos na ordem jurídica vigente, em face da notícia de que determinado acusado enfrentou um comando normativo penal, causando instabilidade social.
O Estado, com efeito, só pode intervir em face da perspectiva de que determinado acusado tenha afrontado uma norma penal incriminadora, a reclamar, por isso, intervenção estatal, que, nesse contexto, não se apresenta abusiva e ilegítima.
A finalidade do Estado, sabe-se, é a consecução do bem comum. É a sua razão teleológica. Para consecução desse mister, faz-se necessário ditar normas de condutas, necessárias à harmonia e equilíbrio sociais. É que a vida em sociedade, que é a inclinação natural do homem, está a reclamar um complexo de normas disciplinadoras que estabeleçam regras indispensáveis ao convívio dos indivíduos. A esse conjunto de regras dá-se o nome de direito positivo, o qual, além de regular a organização do Estado, regula, também, a conduta externa dos indivíduos, com a previsão de pena aos transgressores. Essas regras, de um modo geral, “ são cumpridas por mero contato virtual. Muitas vezes, porém, os imperativos do Direito são desrespeitados e violados. Aos atos do homem, praticados segundo o Direito, dá-se o nome de atos lícitos, e o de atos ilícitos aos que infringem preceitos jurídicos.” [1]
Das relações sociais que se estabelecem entre as pessoas, resulta, inevitável, o cometimento iterativo de transgressões às normas impostas pelo Estado. Nada obstante, Estado necessita sobreviver. Para sua sobrevivência, “tem ele que velar pela paz, segurança e estabilidade coletivas, no entrechoque de interesses dos indivíduos, determinado por condições naturais e sociais diversas”[2] , ainda que, para isso, tenha que submeter o agente violador à constrição de sua liberdade.
Nessa linha de pensar reafirma-se que , “as normas legais, por ele editadas, têm, então, a finalidade de tutelar bens-interesses, necessários à coexistência do individuo na vida em sociedade, e como interesse a representação psicológica desse bem, a sua estima.” [3]
É através do direito que o Estado valoriza esses bens-interesses, pois que a sua ofensa fere mais fundo o bem comum, por afrontar as condições materiais basilares para a coletividade, daí a relevância de protegê-los com a preconização de uma sanção.
Das relações intersubjetivas que se estabelecem entre os homens em sociedade resulta, inevitável, o cometimento de crime. O crime é inevitável e é parte indissociável da vida em qualquer comunidade, pois que o crime é uma criação do homem.
ÉMILE DURKHEIM, no século XIX, alertava que “ o crime, além de ser um fenômeno normal, seria impossível uma sociedade que dele estivesse isenta. No dizer de DURKHEIM o crime chega até a desempenhar uma função útil na sociedade, posto que o crime (ato que ofende a sentimentos coletivos) constitui uma antecipação da moral futura e portanto indispensável à evolução da moral e do direito.” [4]
O crime, já se sabe, é inevitável. Inevitável como a dor. Aquela e esta não nos fazem bem, mas ocorrem. Ocorrendo, é preciso debelá-los – o crime e a dor. Para esta, ministra-se analgésicos; para aquele, a pena, “constrangendo o autor da conduta punível a submeter-se a um mal que corresponda em gravidade ao dano por ele causado.”[5]
A conduta humana, para ser criminosa, há que corresponder objetivamente à conduta descrita pela lei, contrariando a ordem jurídica, incorrendo o seu autor no juízo de censura ou reprovação social.
Além de, necessariamente, corresponder a conduta do homem à conduta descrita pela lei, faz-se mister, ademais, que a ação seja representada “por um movimento corporal (ação) produzindo uma modificação no mundo exterior(resultado)” [6]
Força convir, em face do exposto, que “a simples vontade de delinqüir não é punível, se não for seguida de um comportamento externo. Nem mesmo o fato de as outras pessoas tomarem conhecimento da vontade criminosa será suficiente para torná-la punível” [7] sabido que de internis non curat praetor. Não se pode prescrutar, com efeito, o que vai na psique humana ( Solus Deus est cordium scrutater).
Infere-se do exposto que, se o movimento corporal do agente não for orientado pela consciência e pela vontade não se pode falar, validamente, em ação.
À luz das considerações suso, é cediço que quem atua, ad exempli, impulsionado por uma força irresistível não age voluntariamente. Não agindo voluntariamente, não se há que falar em conduta humana e sem conduta humana, não se há de falar em crime. O agente que atua compelido por uma força exterior e irresistível, não é o dono, claro, do ato material praticado.
O ilícito penal, bem por isso, “ é fruto exclusivo da conduta humana. O CP declara que a causa produtora do resultado ( de que depende a existência do crime) é a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido(artigo 13)”. [8]
Devo anotar, em face do exposto, que os elementos da economia da infração penal – a conduta, a tipicidade, ilicitude e culpabilidade – “são inerentes à vontade e consciência como estado anímico do homem.”[9]
É bem de examinar-se, assim, em face de uma denúncia formulada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, se, efetivamente, o imputado, ao cometer o crime que se lhe atribui a prática, tinha consciência da ilicitude, se não foi compelido por uma força exterior e se, ademais, a sua conduta se adequa ao ilícito contido na norma incriminadora apontada como violada. Há de se perquirir, ademais, se a ação do acusado foi, no dizer de BASILEU GARCIA, “a causa criadora do resultado.” [10]
Somente a pessoa física – que o Código Civil chama de pessoa natural – pode ser sujeito ativo da infração penal. Bem por isso é que “ o poder de decisão entre o fazer e o ao fazer alguma coisa, que constitui a base psicológica e racional da conduta lícita ou ilícita,é um atributo inerente às pessoas naturais.” [11]
A conduta implica vontade, desejo. A conduta, para interessar ao direito penal, tem que ser voluntária, voltada para uma finalidade, porque é inconcebível que haja vontade de nada ou vontade para nada.
Necessário, por isso, aferir, em face do contexto de prova, qual a vontade, qual o desejo que impulsionou o autor do fato para a realização do tipo penal e se essa vontade foi, ou não viciada, pois que uma vontade sem conteúdo não é vontade. É “impossível a conduta sem vontade, e a vontade sem finalidade”, daí resulta, por conseqüência, que “a conduta requer sempre uma finalidade.” [12]
O direito, disse-o acima, pretende regular a conduta humana, pois o delito não pode ser delito, se não resultar de uma conduta do homem, como acima antecipei.
O princípio nullum crimen sine conducta é uma garantia elementar, garantia que não pode ser postergada num sistema garantista, sob qualquer fundamento, pois que, se fosse eliminada, “o delito poderia ser qualquer coisa, abarcando a possibilidade de penalizar o pensamento, a forma de ser, as características pessoais etc.” [13]
Um direito penal que reconheça um mínimo de respeito à dignidade humana “não pode deixar de reafirmar que a base do delito – como iniludível caráter genérico – é a conduta, identificada em sua estrutura onto-ontológica. Se esta estrutura é desconhecida, corre-se o risco de salvar a forma mas evitar o conteúdo, porque no lugar de uma conduta humana se colocará outra coisa.” [14]
O Direito Penal, sabe-se, é o segmento do ordenamento jurídico que tem por função selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à sociedade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para convivência social. É que o homem, como ser coexistencial, não pode subsistir por longo tempo independente de qualquer contato. Nesse sentido, é obrigado a estabelecer intercâmbio com os seus parecentes, donde exsurgem conflitos intersubjetivos de interesses, os quais devem ser regulados pelo Direito, sob pena de colocar-se em risco a própria vida em sociedade.
O Direito Penal, nesse contexto, surge como um importante instrumento de manutenção da paz social, selecionando, como dito acima, os comportamentos humanos em face de sua gravidade, os descrevendo como infrações penais, cominando-lhes, de conseqüência, as respectivas sanções.
Sublinhe-se que não é qualquer conduta, não é qualquer situação que deve ser incriminada senão aquela que se mostra necessária, idônea e adequada ao fim que se destina, ou seja, à concreta e real proteção do bem jurídico.
LUIS FLÁVIO GOMES, a propósito, preleciona que “o princípio do fato não permite que o direito penal se ocupe das intenções e pensamentos das pessoas, do seu modo de viver ou de pensar, das suas atitudes internas…”[15]
A atuação repressiva-penal pressupõe que haja efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, sabido que não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico.
Pondera FERNANDO CAPEZ, a propósito, que “o princípio da ofensividade considera inconstitucionais todos os chamados “delitos de perigo abstrato”, pois, segundo ele, não há crime sem comprovada lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico. Não se confunde com princípio da exclusiva proteção do bem jurídico, segundo o qual o direito não pode defender valores meramente morais, éticos ou religiosos, mas tão-somente os bens fundamentais para a convivência e o desenvolvimento social. Na ofensividade, somente se considera a existência de uma infração penal quando houver efetiva lesão ou real perigo de lesão ao bem jurídico. No primeiro, a uma limitação quanto aos interesses que podem ser tutelados pelo Direito penal; no segundo, só se considera existente o delito quando o interesse já selecionado sofrer um ataque ou perigo efetivo, real e concreto.” [16]
Na precisa lição de LUIZ FLÁVIO GOMES, “a função principal do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é a de delimitar uma forma de direito penal, o direito penal do bem jurídico, daí que não seja tarefa sua proteger a ética, a moral, os costumes, uma ideologia, uma determinada religião, estratégias sociais, valores culturais como tais, programas de governo, a norma penal em si etc. O direito penal, em outras palavras, pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática. O princípio da ofensividade, por sua vez, nada diz diretamente sobre a missão ou forma do direito penal, senão que expressa uma forma de compreender ou de conceber o delito: o delito como ofensa a um bem jurídico.”[17]
RENÉ ARIEL DOTTI ensina, nessa linha de argumentação, que “a missão o direito penal consiste na proteção de bens jurídicos fundamentais ao indivíduo e à comunidade. Incumbi-lhe, através de um conjunto de normas (incriminatórias, sancionatórias e de outra natureza), definir e punir as condutas ofensivas à vida, à liberdade, à segurança, ao patrimônio e outros bens declarados e protegidos pela Constituição e demais leis” [18]
Resulta de tudo que foi expendido acima que o legislador “ deve se abster de formular descrições incapazes de lesar, ou pelo menos, colocar em real perigo o interesse tutelado pela norma. Caso isto ocorra, o tipo deverá ser excluído do ordenamento jurídico por incompatibilidade vertical com o Texto Constitucional.”[19]
Impõe consignar-se, forte, ainda, na lição de FERNANDO CAPEZ, que “toda norma em cujo teor não se vislumbrar um bem jurídico claramente definido e dotado de um mínimo de relevância social, será considerada nula e materialmente inconstitucional.”[20]
O magistrado, ao decidir, não pode, sob qualquer fundamento, perder de vista que o crime deriva de uma conduta e que essa conduta tem que ser relevante a legitimar a intervenção estatal. O magistrado precisa avaliar, com sofreguidão, se a ação do acusado foi voluntária, se não foi impulsionado por uma força externa, se tinha consciência da ilicitude. O magistrado, enfim, não pode decidir sem ter a norteá-lo as garantias penais – de persecução, processuais e de execução. É o mínimo que se espera de um juiz garantista em um sistema penal também garantista.
Abstraindo-se essas premissas, a persecutio criminis pode derivar para a arbitrariedade e o garantismo penal se esvai.
[1] MARQUES, José Frederico, Tratado de Direito Penal, VOL.I, Editora Millennium, p. 20.
[2] NORONHA, E. Magalhães, in Direito Penal. Vol. I, Saraiva, p. 94
[3] ROCCO, Arturo, l`oggeto de Reato, 1913, p. 444 e s. apud E. NORONHA, E. Magalhães, in Direito Penal, ob. cit.p..94
[4] DURHEIM, Émile, apud LEONARDO ISAAC YAROCHEWSKY, Violência e Direito Penal, Boletim Ibccrim, ano.12, nº 145, dezembro – 2004
[5] DE JESUS, Damásio Evangelista, Direito Penal, Saraiva, Vol. I, Parte Geral, p.03
[6] BITTENCOURT, César Roberto, Manual de Direito Penal, Parte Geral, Vol.I, Saraiva, p.137
[7] BITTENCOURT, César Roberto, Manual de Direito Penal, ob.cit. p. 160
[8] DOTTI, René Ariel, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Forense, 2º Edição, p. 303.
[9] DOTTI, René Ariel, ob. cit. p. 303
[10] GARCIA, Basileu, Instituições, Vol. I, p. 219.
[11] DOTTI, René Ariel, Curso de Direito Penal, ob. cit. p. 302
[12] ZAFFARONI, Eugênio Raúl, e PIERANGELI, José Henrique, Manual de Direito Penal brasileiro, Parte Geral, 2ª Edição, Editora revista dos Tribunais, p. 414.
[13] ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique, ob.cit., p. 409.
[14] ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique, , ob. cit. p. 409.
[15] GOMES, Luiz Flávio, Principio da Ofensividade no Direito Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p.41
[16] CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Editora Saraiva, Vol.01, p.25.
[17] GOMES, Luiz Flávio, Princípio da Ofensividade, p. 43.
[18] DOTTI, René Ariel, in Curso de Direito Penal, ob. cit. p.3.
[19] CAPEZ, Fernando, ob.cit. p.26.
[20] ibidem