Sem nenhuma base científica, sem nenhum estudo aprofundado sobre a questão, tudo muito pragmaticamente analisado e concluído, posso afirmar que o que vivi na minha infância e adolescência – sobretudo – marcou a minha trajetória, definiu a minha personalidade, sobretudo em face da minha (pouco ou nenhuma) relação com o meu pai, que sempre foi, para mim, um enigma, algo que eu nunca consegui decifrar, ou melhor, que somente agora, aos 82 (anos), começo a compreender.
Mesmo sem nenhum diálogo com os filhos, mesmo trancado no seu mundo (criado por ele, especialmente para ele), meu pai tinha um enorme poder sobre todos nós, sem se dar conta das consequências do mau uso desse poder, das consequências para a nossa formação do uso abusivo do poder de pai.
A verdade é que, como meu pai, os pais – o pai, sobretudo – não têm a exata dimensão do que pode decorrer de suas relações com os filhos. Acho, por isso, que todos os pais deveriam passar por uma aprendizagem, pois que, afinal, ninguém nasce sabendo ser pai, muito embora todos tenham, de rigor, nascidos para ser pai.
A falta de noção, a insensibilidade para lidar com a autoridade de pai permite que muitos ajam sem escrúpulos, sem o necessário desvelo, sem limites, sem nenhuma preocupação com o mal que possam estar fazendo aos filhos, em face do uso arbitrário do poder, a ponto de marcá-los, profundamente, para o resto da vida.
A Carta ao Pai, de Franz Kafka, nos leva, inexoravelmente, a reviver o nosso relacionamento com os nossos próprios pais – especialmente o pai -e à conclusão, inapelável, do quanto a falta de sensibilidade de muitos deles marcou a nossa vida.
De qualquer sorte, todos sentimos – uns mais; outros menos, repito – em face da (falta de )relação complicada que tivemos com o nosso pai, convindo anotar que, no meu caso, a minha relação foi quase sempre marcada pelo mutismo dele, ; mutismo que até hoje reverbera em mim e que, decerto, reverbera nos meus irmãos.
Os pais – o pai, sobretudo – pensam que crianças e adolescentes não têm sentimento. Eles acham que, por isso, podem dizer tudo que lhes apraz, na frente de qualquer um, sem nenhuma preocupação em face dos efeitos dessas ações na formação da personalidade da criança.
Da Carta de Kafka apanho um excerto, só para ilustrar essas reflexões, a propósito das relação dos filhos com os pais, convindo gizar que, aqui como em qualquer outro lugar do mundo, as relações dos filhos com os pais pode ser mais ou menos complicada, afinal, quando a questão é sentimento e autoridade, nós só somos diferentes das máquinas, pois que essas não foram programadas para chorar e sofrer; não são, portanto, feitas à imagem e semelhança do homem.
Eis os brevíssimos excertos:
“[…]Para mim sempre foi incompreensível tua falta de total sensibilidade em relação à dor e à vergonha que podias infligir com palavras e veredictos; era como se tu não tivesse a menor noção da tua força. Também eu por certo muitas vezes te magoei com palavras mas depois sempre o reconheci e isso me doía, porém eu não conseguia me controlar, não conseguia refrear as palavras, já me arrependia quando as pronunciava. Tu, porém, golpeavas com tuas palavras, sem mais nem menos, não tinha pena de ninguém, nem durante e nem depois; contra ti a gente estava sempre completamente indefeso[…].
Hoje, depois de 35 anos volto, volto a conviver com o meu pai, com quem não convivi durante 80 anos de sua existência, para, agora, finalmente, compreender que ele, como eu e como todos nós, também é feito de carne osso e alma, e que, ademais, como eu, como você e como qualquer uma pessoa que tenha discernimento, assume os erros que praticou e que, por esses erros, só quer mesmo ser perdoado, e nada mais.