Pais e filhos

 

Na obra O Complexo de Portnoy, de Philip Hoth, o personagem central da trama, Alexander Portnoy, além dos seus próprios conflitos, era obrigado a conviver com posições díspares e controvertidas dos próprios pais que, decerto, exerceram sobre ele uma forte inquietação moral. Assim é que, enquanto a sua mãe adotava a honestidade como prática de vida, o pai aconselhava-o a não ser burro como ele, advertindo-o para que não cassasse por beleza e nem por amor, mas por dinheiro.
É cediço que lições dessa natureza não se veem apenas nas obras ficcionais, já que essa criação distorcida tem-se verificado, infelizmente, em muitos ambientes familiares, razão pela qual os filhos, dependendo das posições dos pais em torno das questões morais, podem viver verdadeiros conflitos, que permearão toda a sua vida, com reflexos, quem sabe, na criação dos seus próprios filhos, resultando, inapelavelmente, na consolidação de uma geração com gravíssimos defeitos morais.
Todavia, não são muitos os pais que aconselham os filhos com tanta franqueza, como registrado na obra ficcional aqui mencionada, a casarem por dinheiro, abdicando do amor ou colocando-o em segundo plano; amor que, a juízo dos crédulos, como eu, deve permear a vida de um casal e, por consequência, da família que resultar da convivência.
Mas, decerto, há muitos e muitos pais que, com sua ação, com o seu modo de vida, com os seus (maus) exemplos, entremostram, deixam claro aos filhos que, nesse mundo, assim como na obra mencionada, o que vale mesmo é o dinheiro, e que por ele, e em face dele, tudo é permitido, tudo pode ser feito, pouco lhes importando os valores morais. Daí que, como todos testemunhamos, muitas são as relações marcadas pela brevidade, muitas são as famílias desfeitas, os lares sob escombros, exatamente porque não foram concebidos à luz do amor, mas das conquistas materiais que os tornam um ambiente pernicioso, onde prepondera o jogo de interesses, o afã de alcançar bens materiais, sejam quais forem os meios empregados.
Disso tudo resulta, não tenho dúvidas, a inviabilidade de as relações se prolongarem no tempo, sabido que, numa família, numa convivência entre duas pessoas, só o amor é capaz de fazê-las duradouras, quiçá eternas, até que a morte se encarregue de fazê-las fenecer, pois não se constrói uma família na base de ações perniciosas e volúveis, com esteio na perspectiva deletéria de que é preciso acumular as conquistas materiais sejam quais forem os meios, sejam quais forem as consequências.
A verdade é que, conquanto não sejam muitos os que aconselham tão diretamente os filhos, para que se conduzam pelo caminho condenável da relação conjugal por puro interesse material, há aqueles que, com sua ação, com o seu exemplo, com a sua prática de vida, deixam patente que, na busca frenética e incessante de bens materiais, conforme dito acima, vale qualquer coisa, mesmo que seja casar sem amor, por conveniência, por interesse, pouco importando as coisas do coração, as consequências de uma relação que se estabeleça em vista dos interesses mundanos.
Fico me perguntando, diante dessa realidade, e em face da magnífica obra ficcional a que me reportei acima, qual a família, na verdadeira acepção do termo, que se consolidará, definitivamente, que não seja com as suas bases fincadas no amor, no respeito e nos bons exemplos?
Não acredito, definitivamente, numa família construída à luz dos maus exemplos, na qual os cônjuges, ao invés do amor, apostam na esperteza, na perspectiva de levar vantagem a qualquer custo, à luz de práticas condenáveis, dos interesses escusos, cujo fator preponderante seja o interesse pecuniário, ou mesmo o poder, relegado o amor a segundo plano.
Admito que sou, sim, do tipo careta, do tipo démodé, pois, apesar dos exemplos, apesar de todas as dificuldades pelas quais passei e que, por vezes, passo na vida, ainda acredito no amor, no respeito e na consideração pela pessoa com quem divido as minhas inquietações, os meus sofrimentos, as minhas alegrias e tristezas.
Eu não ministro aos meus filhos ensinamentos outros que não sejam concebidos à luz do amor, do respeito e da consideração, os quais são, disso tenho certeza, a base de uma união duradoura e da construção de uma família.
Aquele que orienta os filhos a formarem uma família à luz de interesses menores e que não sejam em face do amor, orienta a construção de um castelo de areia, que será levado com o vento, que não resistirá à primeira intempérie.
Da mesma forma que não se orienta um filho a formar uma família com esteio no interesse econômico, não se pode, ademais, dar maus exemplos a eles, estimular a má conduta, emprestar aquiescência aos deslizes.
Não se constrói uma sociedade minimamente decente, ministrando conselhos daninhos aos filhos, ensinando-os, enfim, os meios para levar vantagem, em detrimento do semelhante e dos valores morais. Tenho proclamado, com ênfase e repetidamente, que não vale tudo, por exemplo, para ascender. Não vale tudo para vencer. Tudo neste mundo deve ter limite. O limite é a ética, a honra, o pudor.
Quero sonhar, sim. Quero que meus filhos sonhem, também. Eu os quero vencedores. Todavia, não os estimulo a vencer de qualquer jeito, sob os escombros de sua dignidade. A casa de pai deve, sim, ser a escola de filho. Mas deve ser uma boa escola. Uma escola decente, que o conduza pelos caminhos da honradez, da dignidade e da decência, diversa da escola de Marcelo Odebrecht, por exemplo, que, ao que se infere de suas próprias palavras, estimula na sua família a cumplicidade para realização do malfeito, ao admitir que prefere punir uma filha que denuncie o malfeito que a autora do deslize.
Os desejos do homem, a sua ambição, a sua volúpia pelo poder e pelos bens materiais não podem ser de tal monta que o levem à degradação moral, a ponto de sublimar o malfeito, como se os fins justificassem os meios.
Só para ilustrar, lembro que Sócrates, tido por muitos como o mais sábio dos homens, entendia que se encontrava mais próximo dos deuses quando menos desejava. Por isso, se orgulhava de viver uma vida modesta, sem ambição; e ambição, definitivamente, na minha concepção – e de muitos, importa dizer – tem limites.

O poeta e o boquirroto

 

Em 1979 comprei o meu primeiro aparelho de som. Era um Três em Um – rádio, toca discos e fita cassete – , da Sony; grande novidade à época. Era o que havia de mais compacto no mercado, mesmo assim, comparado aos aparelhos de hoje, era um trambolhão, difícil de ser transportado, mas excelente para ser exibido.

Recém-casado, recém-formado, iniciando a construção da minha história, fixei domicílio no Conjunto Habitacional Turu, conjunto de casas populares, localizado no bairro do mesmo nome. Era uma casa simples, com piso de cimento, sem muro, sem forro, mas com o mínimo de conforto, onde vivi momentos de rara e intensa felicidade, ciente e consciente de que era tudo que eu podia oferecer a mim mesmo e à pessoa que escolhi para viver a minha história de amor e de vida.

Com o aparelho Três em Um, vivendo a bela e desafiante aventura de constituir uma família e de construir a minha própria história, fixei, embevecido e embalado pelo desafio, o meu próprio domicilio, curtindo os meus cantores e cantoras favoritos, ouvindo-os nos antigos long plays, os antigos discos de vinil.

Tendo sido o meu primeiro aparelho de som de qualidade, claro que eu tinha muita afeição pelo Três em Um. Pensei até guardá-lo para posteridade. Juro! O cuidado era tanto  que, como não havia forro na casa, por precaução, mandei fazer uma estranhíssima capa de flanela, com a qual o cobria por inteiro, desfigurando-o, mas, na minha visão, protegendo-o das intempéries, sabido que não seria fácil adquirir outro.

Com o Três em Um a me fazer companhia, colocado em lugar de destaque na minha sala de visitas, sob a estranha capa de flanela, que só era retirada em momentos especiais, eu esperava, com singular expectativa,  a chegado do sábado, para, mais uma vez, reunir a parentalha para ouvir músicas, sobretudo as canções do ídolo maior Roberto Carlos, cujos discos, sempre lançados nas proximidades do Natal, a gente ouvia o ano inteiro, repetidamente, exaustivamente, até estourar a paciência dos menos afeiçoados ao seu canto e voz.

Sempre gostei de músicas. Gosto até hoje. Os meus dias sem música não seriam os mesmos. Com música enfrento até engarrafamento sem me irritar. Nesse sentido, é compreensível que várias músicas tenham marcado a minha vida, especialmente as que falavam – e falam –  ao coração, em cuja arte destaco os inigualáveis Roberto Carlos, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran,  Maysa,  e a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim,  dentre outros, sem deixar de curtir, em outras circunstâncias, as obras mais intelectualizadas de compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque.

Todos, de certa forma, compuseram ou cantaram  músicas que marcaram, com tintas fortes, a minha vida. De Gilberto Gil, que ponho em destaque nessas reflexões, me chamou a atenção, entre tantas obras primorosas, a música intitulada Metáfora, da qual destaco a seguinte passagem: “Uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz lata pode estar querendo dizer o incontível. Uma meta existe para ser um alvo. Mas quando o poeta diz meta pode estar querendo dizer o inatingível.”.

O que quero refletir, aqui e agora,  a propósito da letra da música de Gilberto Gil,  é o óbvio:  o poeta tem licença para dizer o que quiser, e deve, sim, ser compreendido e respeitado em face do que diz, conquanto possa ser criticado em face da qualidade da sua poesia. Todavia, ainda assim, está autorizado a dizer o que pensa, sem ser censurado pelo que pensa e diz.

Inobstante, nós, nas nossas relações, sobretudo nas atividades profissionais,  sem exercitar a veia poética, posto que não a possuímos, não temos licença para dizer o que bem entendemos. Temos, sim, ao reverso, que  pensar, repensar, contar até dez, refletir, enfim,  sobre as consequências que decorram das nossas palavras; na repercussão daquilo que dizemos ou fazemos, sobretudo quando exercemos uma posição de destaque e temos ciência da repercussão daquilo que falamos.

O juiz, por exemplo, não pode, nas suas decisões – ou mesmo fora dos autos – dizer o que bem entende, fugir do exame da provas, vilipendiar o bom-senso, concluir precipitadamente, sem estar autorizado em face das provas produzidas ou pela conveniência.

O juiz não pode ser um fanfarrão, um falastrão, um boquirroto, dizer tudo que lhe vem à mente, como não pode, de resto, qualquer um cujas palavras possam repercutir.

Não pode e não deve o juiz, ademais, antecipar seus julgamentos, agir como agem os que estão numa mesa de bar ou num campo de futebol. É preciso ter postura, portar-se de acordo com as exigências e liturgia do cargo, assertiva que vale, de mais a mais, para quem exerça uma liderança.

Da mesma forma, não pode o representante da parte em juízo, na defesa do seu cliente ou do Estado, ser desleal na produção e no exame  das provas que dão base à sua postulação, numa vã tentativa de ludibriar, de levar o juiz na conversa, para levar vantagem, para se sair bem, para vencer a contenda, a qualquer custo, de qualquer forma, sejam quais forem os meios e as consequências, pois tudo isso equivale, em proporção e consequência, a dizer além do que deve e pode.

Lado outro, não pode o advogado ou representante do Ministério Público,  sob qualquer argumento, ainda que em nome da ampla defesa, da plenitude de defesa ou do interesse público, ser desleal com a parte adversa, fazer uso de meios impróprios para alcançar os seus objetivos, indo além ou aquém da expectativa que se guarda em relação à sua atuação.

No nosso mundo, diferente do mundo do poeta, não temos licença para dizer o que nos vem à cabeça, sem medir as consequências.  Não podemos alegar o que não podemos provar. Não podemos fazer acusação ou afirmação levianas, sob pena de pagarmos um elevado preço pela ousadia.

Se é verdade que o juiz não pode decidir em face de suas intimas convicções, que não deve argumentar com o que lhe vem à mente, sem base em provas regularmente produzidas,  não é menos verdadeiro que o advogado não deve se valer de sua capacidade postulatória para formular alegações infundadas, para formular pleitos que sabe destituídos de base legal ou para achincalhar, desrespeitar, afrontar o magistrado em face de uma decisão que lhe tenha sido desfavorável.

É preciso, pois, medir as palavras, pois se ao poeta se concede licença para o uso das palavras, ao boquirroto, dependendo da afirmação que faz, podem ser reservados os rigores da lei.

Traficante ou usuário?

Não gosto de tratar de questões jurídicas nos meus artigos. É que tenho a pretensão de fazer chegar as minhas reflexões ao maior numero possível de leitores, e é óbvio que, se me limitasse a escrever acerca de questões penais, por exemplo, as minhas crônicas não teriam o alcance por mim pretendido.

Em face dessa pretensão, inobstante, eu não passo ao largo das cobranças, já que muitos são os que me pedem reflexões técnicas, pois querem saber a minha opinião sobre os temas mais atuais em matéria  penal.

Em face dessas insistentes cobranças, vou abrir algumas exceções, mas pretendo falar de temas que interessem a todos e que possam despertar no leitor algum interesse em torno da matéria, visto que não pretendo escrever para uma parcela específica da população.

Assim pensando, resolvi fazer algumas ponderações, a propósito do crime de tráfico de drogas, com a pretensão de desmistificar uma falsa verdade que alguns, por esperteza ou malandragem, tentam estabelecer, para alcançar benefícios legais previstos na Lei de Drogas, e em face mesmo da discussão que se faz iminente no STF, a propósito da constitucionalidade do artigo 28 da lei em comento.

Nessa senda, anoto que é um rematado equívoco, por exemplo, pretender que a quantidade de droga apreendida em poder do acusado define, por si só, tratar-se de droga destinada ao uso ou à traficância. Com efeito, é mais do que comum, sempre que alguém é preso, por exemplo, com dois, quatro, oito papelotes de maconha ou duas, quatro, oito pedras de crack, o argumento de que, em face da quantidade da droga apreendida, estar-se-ia defronte de um usuário e não de um traficante, a deslegitimar a manutenção de sua prisão. Na mesma balada, e da mesma forma equivocada, há os que concluem, precipitadamente, que basta a apreensão de uma quantidade expressiva de drogas para que se constate tratar-se o detido, sem maiores questionamentos, de um traficante.

Posso afirmar, para desmistificar, que nem uma coisa nem outra. Tudo depende do contexto da apreensão, tudo depende, depois, dos dados que serão coligidos.  Nem a pequena quantidade leva, de logo, à conclusão de que se trata de um usuário, nem uma quantidade expressiva é indicativa de estar-se diante de um traficante, convindo anotar que quando me refiro a quantidade expressiva não me refiro a toneladas de drogas, porque, nesse caso, a inferência lógica é de que se trata mesmo de traficância. Refiro-me, sim, a quantidade relevante, mas que não deixa evidenciado, de logo, à míngua de outros dados, tratar-se de traficância.

Não creio, por exemplo, que um usuário abastado se limite a adquirir pequenas porções de drogas, aventurando-se nas bocas de fumo com regular frequência, razão pela qual o fato de ser apreendida em seu poder uma significativa quantidade de drogas não deve, só por isso, levar à conclusão de que se trata de um traficante, sem que se faça uma análise do fato à luz de outros elementos de prova.

Da mesma forma, o fato de alguém ser preso com 05 (cinco) papelotes de maconha, por exemplo, não leva a concluir, sem a consideração de outros dados, tratar-se de um simples usuário. Tudo, portanto, deve ser aferido à luz do contexto, dos demais elementos de provas coligidos durante a persecução criminal, razão pela qual, tenho reafirmado, em sede de habeas corpus, de cognição rarefeita, não ser possível a emissão de um juízo de valor definitivo acerca da questão, pois que se traduziria numa injustificada precipitação.

É por isso que, em face do contexto, pode-se, sim, conceder liberdade a quem tenha sido preso com uma quantidade expressiva de drogas e, numa aparente contradição, negar o mesmo benefício a quem tenha sido preso com pequena quantidade, pois, repito, tudo depende do contexto, da quadra fática, do histórico do detido e de outros elementos que não podem, por óbvias razões,  deixar de ser considerados.

O que quero dizer, em outras palavras, é que, diferente do que possam pensar os que almejam liberdade provisória ou medidas cautelares diversas da prisão à luz apenas da quantidade da droga apreendida, é que a quantidade de drogas, isoladamente, nos conduz, necessariamente, à conclusão de que o detido seja traficante ou usuário de drogas.

É preciso ter presente que nenhum juiz analisa os pleitos de liberdade, em face de crimes desse jaez, levando em conta apenas e tão somente a quantidade da droga apreendida. Logo, é inviável tentar convencer o juiz, ainda na fase preambular da persecução ou em sede de habeas corpus, com cognição rarefeita e não verticalizada, de que tal e qual acusado esteja a merecer a sua liberdade provisória ou qualquer outro favor legis,  apenas e tão somente em face da quantidade da droga apreendida,  num juízo de pura precipitação.

O que é preciso ter em conta, diante dessas questões, é que a quantidade de drogas não tem o condão de antecipar, por si só, um juízo de valor acerca da tipicidade penal, e que, ademais, para manter uma prisão ou decretá-la, o que importa é a análise, concomitante, de outros dados consolidados nos autos,  sem perder de vista, por exemplo, as circunstâncias da apreensão  e a história pregressa do acusado.

Diante dessa perspectiva, sempre à luz do contexto, reafirmo que a quantidade de droga apreendida pouco importa para definir o acusado como traficante ou usuário, pois ela, isoladamente, não nos conduz à conclusão acerca da tipicidade penal e o consequente tratamento a ser dispensado ao indiciado.

E que não nos iludamos: não existe, desde a minha compreensão, nenhuma possibilidade de se fixar critérios objetivos para distinção entre traficantes e usuários, convindo anotar, como antecipei acima, que este artigo está sendo redigido na manhã de quinta-feira, dia 13, antes, portanto, do julgamento do habeas corpus manejado em favor do paciente Francisco Benedito de Souza, no qual o Supremo Tribunal Federal debaterá acerca da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

Somos todos iguais perante a lei?

É princípio republicano: todos são iguais perante a lei. Verdade? Em parte, sim. Contudo, uns são mais iguais que outros, já que aprontam e fazem o que lhes dá na cabeça, na certeza da impunidade, contando com a complacência das instâncias formais de controle, que, conforme se sabe, ao longo da nossa história, têm sido seletivas, com os olhos voltados apenas para os criminosos egressos das classes menos favorecidas, com os olhos vendados quando se trata de delinquente de posição destacada.
Nesse cenário, temos testemunhado, com desalento, o enriquecimento ilícito de muitos agentes públicos, cientes da impunidade, certos de que as instâncias de controle só excepcionalmente os alcançarão. E assim, agem à luz do dia, à vista de todos, como o mais destemido dos meliantes, pois têm ciência e consciência de que, se forem presos, será por pouco tempo, apenas o suficiente para que o cidadão desavisado tenha a falsa impressão de que a justiça não é discriminadora, que vale para todos.
Esse é o quadro que, infelizmente, até bem pouco tempo, mais precisamente até o julgamento do famigerado “mensalão”, se descortinava sob os nossos olhos, a minar a nossa esperança, a nossa crença de que a lei deveria a todos alcançar, sem discriminação, sem a seletividade que hoje tem sido a sua marca mais visível e, também, mais desalentadora.
Todavia, vejo, agora, uma flagrante e alentadora tendência no sentido inverso, ou seja, de igualar a todos os brasileiros perante a lei, ou, pelo menos, de tentativas nesse sentido, como temos testemunhado em face das diversas operações deflagradas pelas instâncias federais, que nos dão a esperança – que, espero, não seja vã – de que, logo, logo, as instâncias estaduais possam agir com o mesmo denodo, no sentido de punir exemplarmente quem faz uso de um mandato outorgado para alcançar o dinheiro público.
Espero, sinceramente, que isso ocorra com a máxima brevidade. É que tem que ser assim mesmo. Ninguém deve – ou deveria, pelo menos – se sentir autorizado a fazer o que lhe apraz no exercício do poder, na certeza da impunidade, na certeza de estar acima da lei, de estar à ilharga dos órgãos de controle do Estado, sensação que, sejamos sinceros, decorre da omissão, da leniência, da inércia, enfim, desses mesmos órgãos, sobretudo no âmbito estadual.
Portanto, é preciso acabar com essa nefasta cultura terceiro-mundista de que uns podem sempre mais que os outros, de que a lei não vale para todos, de que os seus rigores valem para uma maioria desamparada e desassistida, e de que os seus favores são destinados apenas e tão somente a uma elite, a uma minoria que tanto mal tem feito ao país.
Mas, convenhamos, sejamos realistas, para que isso se torne uma regra, para que os órgãos persecutórios – sobretudo no que se refere aos Estados, mais propícios a ingerências indevidas – ajam com o necessário destemor, ainda há um longo caminho a percorrer, porque entre nós ainda viceja, com muito mais intensidade, o apadrinhamento, o sistema de proteção, as ingerências indevidas, o favorecimento.
A cultura da impunidade, infelizmente, está sedimentada entre nós, pois, em certa medida, somos todos complacentes com as roubalheiras que se perpetuam no Estado. E, quando ocorre alguma reação efetiva das instâncias de controle, envolvendo figuras destacadas da República, testemunhamos reações destemperadas e inconsequentes dos investigados, acostumados, desde sempre, com a impunidade, com a certeza de que estão acima da lei, como tem ocorrido nos dias presentes em face da ação destemida, no âmbito federal, da Polícia, do Ministério Público e de um magistrado, que não têm medido esforços para alcançar os meliantes de colarinho branco que tomaram de assalto a Petrobras.
Tenho testemunhado, com certa indignação, reações descontroladas e irresponsáveis de figuras de destaque no cenário nacional, motivadas pelas ações destemidas e exemplares das instâncias formais de controle, acostumados que foram, desde sempre, com a complacência, com a omissão do Estado que, como anotei acima, só tinha as suas ações voltadas para a pequena criminalidade.
Os tempos, definitivamente, são outros, e nunca pensei testemunhar uma medida de força contra próceres da República, a reafirmar o fortalecimento das instituições. Eu até imaginava que isso pudesse ocorrer, mas em filme ou em sonho, razão pela qual a realidade que vivemos hoje ainda assusta a muitos como eu, acostumados com a omissão do Estado.
Nunca imaginei testemunhar figuras expressivas da República sendo investigadas e obrigadas a prestar contas à sociedade. Tampouco pensei em testemunhar a prisão de tantas pessoas destacadas da sociedade, exatamente as que sempre se colocaram acima da lei, confiantes, cientes da omissão das instâncias de controle.
Por tudo isso, creio que está próximo o dia em que, por essas plagas, como no primeiro mundo, todos serão, materialmente, iguais perante a lei. E quando esse dia chegar, quem vai dar risadas sou eu. Por enquanto, esboço apenas um sorriso acanhado, com o justificado receio de que tudo, ao fim e ao cabo, como tantas outras operações levadas avante no âmbito federal, se transforme num grande pesadelo.
O que espero mesmo, quase impaciente, é que, também nos Estados, onde os desvios de verbas públicas são uma sórdida realidade, sobretudo nas esferas municipais, as instâncias de controle – Ministério Público, Polícias e Poder Judiciário – saiam da inércia, deixem a sua prosaica letargia de lado, para, assumindo uma postura definitiva, agirem na mesma medida e com a mesma tenacidade das instâncias federais, no sentido de punir os que teimam em sangrar os cofres públicos.
A verdade é que não se pode mais transigir com tanta inércia em face da sangria dos cofres públicos municipais, em detrimento dos interesses da população, sangria que decorre da certeza da impunidade, em face da omissão, da inércia, enfim, dos órgãos de controle, salvo uma ou outra exceção.
Estou testemunhando, sim, o fortalecimento das nossas instituições. E chegará o dia em que, as ações que hoje testemunho como uma exceção, irão se tornar uma regra. E, quando isso se tornar realidade, o gestor público poderá até se locupletar do dinheiro do contribuinte, porque isso é inevitável, mas o fará sabendo que, se for pego, não se beneficiará do tratamento discriminatório que hoje prepondera na esfera criminal; ele o fará ciente de que a lei, definitivamente, vale para todos.
Tenho reafirmado que nada é mais danoso para a convivência social que a ação dos que se imaginam superiores, dos que pensam estar acima da lei; dos que esquecem que as pessoas são, essencialmente, iguais, razão pela qual, perante a lei, ninguém deve se sentir imune ou superior, convindo trazer à colação, para ilustrar, a sábia e reflexiva lição de Luis Roberto Barroso, segundo o qual nada mais triste para o espírito do que uma pessoa se achar melhor que a outra, seja por sua crença, cor, sexo, origem ou por qualquer outro motivo ( in A fé, a razão e outras crenças).

A sociedade precisa de proteção

O que se ouve dizer e o que se lê, em todas as revistas especializadas, em todos os artigos que tratam da questão prisional, em todos os seminários e congressos nos quais se tratam de temas relacionados à criminalidade e ao sistema carcerário, é que nunca se prendeu tanto, que os juízes abusam da prisão provisória, que prendem primeiro para depois condenarem, que, perigosamente, invertem a lógica da presunção de inocência, que a prisão deveria ser, mas não é, a última ratio da extrema ratio, e que, por isso, tem sido utilizada abusivamente.

Verdades absolutas? Não! Verdades, sim, mas relativas. Não é verdade, por exemplo, que os juízes façam tabula rasa do princípio da presunção de inocência ou que não reconheçam os malefícios da prisão e de que o cárcere deva ser a última opção. Contudo, é preciso reconhecer que, verdadeiramente, nunca se prendeu tanto e que há um número excessivo de prisões provisórias.

Mas por que isso ocorre? Por que se prende tanto? Porque os juízes são insensíveis?  Porque temos a mentalidade terceiro-mundista? Porque os juízes desconhecem a situação carcerária do país? Porque não sabem que as prisões são uma universidade do crime? Porque desconhecem que as prisões são verdadeiras masmorras?  Porque não sabem que são uma escola de recidiva? Porque não têm consciência de que os direitos humanos são desrespeitados nas chamadas instituições totais? Porque pensam que crime se combate apenas com prisão? Porque, enfim, lhes falta sensibilidade?

Atrevo-me a responder às indagações, assumindo o risco de ser contestado, dizendo que os juízes – em sua maioria, pelo menos – não são insensíveis e nem desconhecem a realidade carcerária do Brasil, e muito menos as garantias legais inseridas em nossa Carta Magna. Aventuro-me a afirmar, nesse sentido, que se prende muito porque nunca se cometeu tantos crimes violentos e nunca se reincidiu tanto nas práticas criminosas mais nefastas para o conjunto da sociedade.

Prende-se muito, ademais, porque a prisão ainda é a face mais visível, a mais didática, a mais exemplar das (re)ações das instâncias persecutórias, conquanto se tenha que admitir a sua quase falência e, no mesmo passo, se tenha a convicção de que ela deva ser reservada apenas para os criminosos violentos e/ou recalcitrantes, como tem sido, pois não me ocorre que alguém permaneça preso se não cometeu crime violento ou sem que seja contumaz.

 Prende-se muito, porque não há políticas públicas preventivas da criminalidade, razão pela qual temos que trabalhar com os efeitos da ação criminosa, cientes de que as causas da criminalidade permanecem inalteradas, realimentando o sistema. Prende-se muito, de mais a mais, porque entendemos ser preciso dar uma resposta à sociedade, que tem que ser minimamente protegida. Prende-se muito, finalmente, porque não se pode fazer vista grossa diante do criminoso recalcitrante, da criminalidade grave, como antecipei acima.

Os que fazem esse tipo de questionamento pensam, equivocadamente, olhando apenas um lado da questão, que só os autores de crimes merecem a tutela do Estado, que só a eles importa a proteção contra os excessos. A sociedade, sob essa mesma visão, não mereceria proteção, razão pela qual dever-se-ia, em face da escalada criminalidade, sublimar a presunção de inocência em detrimento do interesse público,, como se fosse um direito absoluto; e, conforme sabemos, direito absoluto não é, pela singela razão de que direito absoluto não existe.

Portanto, é necessário colocar as coisas no seu devido lugar. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Se é verdade, com efeito, que a prisão, máxime a provisória, deveria ser a última opção – e efetivamente o é -, não é menos verdadeiro que a sociedade tem o direito à proteção das instâncias de controle, as quais, para esse fim, devem, sim,  sem excessos que possam ferir a razoabilidade, valerem-se dos mecanismos de tutela para sua proteção, sabido que a não observância ao direito de proteção corresponde, também,  a uma lesão a direito fundamental.

É preciso não olvidar da obrigação positiva do Estado quanto à materialização dos direitos fundamentais, dentre eles, mas do que nunca nos dias atuais, o direito à segurança, positivado na Constituição Federal.

À guisa de ilustração, anoto que o Direito Penal serve, simultaneamente, como limitação ao poder de intervenção do Estado, como instrumento de combate ao crime. Todavia, deve, com a mesma intensidade, proteger a sociedade e seus membros dos abusos do individuo. Assim é que o mesmo direito penal que protege a liberdade individual em face de uma repressão desmedida do Estado, deve preservar o interesse social ainda que à custa da liberdade do indivíduo (Claus Roxin)

Não se pode, diante da criminalidade recorrente e da situação de quase descalabro que todos nós testemunhamos, deixar tudo como está, colocar em liberdade meliantes perigosos, a pretexto de que prisão não corrige ou de que  os acusados, no atual sistema penal, tendem a sair pior do que entraram, mesmo porque as pessoas assaltadas ou estupradas, por exemplo, jamais entenderiam a liberdade de um roubador ou de um estuprador, à invocação da presunção de inocência – a qual, como qualquer outro principio, deve, sim, em determinadas circunstâncias, ser relativizado .

É preciso, pois, ter em conta que, assim como o preso individualmente considerado, a sociedade também precisa de proteção, razão pela qual não comete nenhum desatino o magistrado que, diante do criminoso violento e/ou recalcitrante, opte por mantê-lo preso, ainda que provisoriamente, sem que, com isso, atente contra a Constituição Federal, pois, afinal, a mesma Constituição que destaca a presunção de inocência, estabelece que a sociedade tem direito à proteção.

Ademais, não se deve perder de vista que, se o interesse de um cidadão se puser em linha de confronto com outro interesse, um deles deve ser sacrificado, como ocorre com o direito à liberdade e o direito à segurança e proteção da sociedade, sem que isso importe em abespinhamento da ordem jurídica.

À conta de reforço, anoto, forte na lição de Gilmar Mendes, que os direitos fundamentais expressam também um postulado de proteção, já que eles não contêm apenas uma proibição de excesso mas também uma proibição de omissão. Nesse sentido, a proibição de proteção deficiente impõe ao Estado o dever de proteger o individuo contra ataques de terceiros, mediante a adoção de medidas de força.

Por que insisto em escrever?

François Truffaut, cineasta francês, diretor, ator e crítico, morto aos 52 anos, de câncer no cérebro, vinte e um longas-metragens, um punhado de  curtas, centenas de artigos sobre cinema, dizia, com simplicidade:   “Eu faço filmes para realizar meus sonhos de adolescente, para me fazer bem e, se possível, fazer bem aos outros” (Folha de S. Paulo, de 21 de junho de 2015)

Algumas vezes tenho me perguntado por que insisto em escrever? Indago a mim mesmo, reiteradas vezes,  se não seria melhor o silêncio, se não seria melhor para as minhas relações de amizade, para minha paz interior, para manter uma boa convivência com os que pensam diferente de mim,  ficar contando as estrelas, admirando o por do sol, silente e passivo, deixando a banda passar, como a moça feia debruçada na janela a que faz menção Chico Buarque na famosa e deliciosa  A Banda: “…a moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela…”

Todavia, alguma coisa muito instigante me impulsiona a escrever. É alguma coisa muito forte, algo difícil de ser contido. É quase uma necessidade. Vou observando o mundo, examinando a conduta das pessoas, e vou sendo instigado, no mesmo passo, a dizer o que penso, e sinto,  em face do que vejo.  Não dá, na minha percepção, na minha visão de mundo, para, simplesmente, deixar acontecer. Eu não toleraria essa passividade. Não é o meu perfil. Não é a minha praia, para usar uma expressão própria dos dias atuais.

Assim é que, quando o impulso me leva à reflexão e esta me leva a escrever, não tenho peias, não tenho controle de mim mesmo. Nesse sentido, deixo a inércia, sou instado,  e me apresso a dizer o que penso sobre isso ou aquilo, com cuidado para não falar sobre o que não conheço para não parecer arrogante; nem mesmo a incerteza quanto à recepção dos meus escritos me desestimula.

E, nessa sanha incontrolável, vou escrevendo, refletindo, traduzindo em pensamento as palavras que dentro de mim não querem calar, pois, reafirmo,  sinto uma enorme necessidade, quase doentia, de compartilhar as minhas inquietações, ainda que não tenha a exata dimensão da sua repercussão, ou seja, de como as pessoas assimilam as coisas que digo, afinal, nesse mundo em que viceja, em profusão, a liberdade de expressão, eu sou apenas mais um a se aventurar no mundo das letras, sem ser sequer um dos mais qualificados, ciente e consciente das minhas limitações intelectuais.

Fico, cá do meu canto, me questionando, a propósito dessa propensão de não silenciar, ciente de que, para uma boa convivência, melhor mesmo é não dizer, é permanecer calado, optar pelo mutismo acomodado, pela inércia covarde, sabido que aquele que fala, que diz o que pensa, que não contém o impulso, corre sempre o risco de ser incompreendido, pois as palavras têm uma força inigualável, podendo ser bem ou mal interpretadas, dependendo de quem se aventure a penetrar no espírito do cronista, em face, sobretudo, da vagueza, da polissemia de alguns termos, a possibilitar várias interpretações, sobretudo se analisada fora do contexto, o que pode, sim, ocorrer, em face, por exemplo, da má vontade de quem se aventura a ler o texto.

Todavia, ainda assim, mesmo correndo o risco da incompreensão, não deixo de dizer o que penso, e sinto,  em face dos mais variados temas. Tenho dito, para mim mesmo, quando me ocorrem esses questionamentos, que eu não quero ser, nunca vou ser, me recuso a ser um Meursault, personagem de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, pois, diferente do personagem e de muitos que pensam e agem como ele, não aceito levar  uma vida banal, irrelevante.

A vida e o pensar para mim não são indiferentes.Tudo na vida para mim faz sentido. Mesmo a dor do próximo ( lembro, para quem não leu a obra de Camus, que nem a morte da própria mãe abalou Meursault), para mim, tem relevância. Diferente de Meursault, me recuso a ser levado, arrastado pela correnteza da vida e da história, ainda que, por isso,  possa ser incompreendido.

Parafraseando Fracois Truffuat, eu escrevo para me satisfazer, e, se possível, para agradar aos outros, para induzir à reflexão, pois sei que há muitos que assimilam bem o que escrevo, ainda que isso não seja o mais relevante, pois, afinal, numa sociedade plural e diversificada como a nossa ,  é mais que natural que as pessoas divirjam, que tenham pontos de vista diferentes dos meus,  daí que o mais relevante mesmo é a constatação de que me faz bem escrever e que, decerto, me sentiria feliz e honrado se pudesse, com os meus escritos ( desculpem a pretensão descabida), fazer bem às pessoas, o que seria uma recompensa sem igual para quem, como eu, não almeja ser mais do que efetivamente sou.

Um brado contra a discriminação e a intolerância

Preliminarmente, consigno que não faço apologia ao descuido com a saúde. Muito pelo contrário, procuro levar uma vida saudável, fazendo exercício com regular frequência e me alimentando com moderação. Portanto, essa crônica não é uma manifestação a favor da vida descuidada; faço-a apenas como um brado contra toda forma de discriminação.

A inspiração me veio de uma briga de condomínio, no Rio de Janeiro, que foi parar na justiça, porque uma juíza federal chamou o porteiro do seu prédio de “Bolo de Banha”, em face da barriga exuberante que ostenta, como uma vingança por tê-lo flagrado dormindo no trabalho. O episódio extrapolou os limites do condomínio e foi parar na 1ª vara civil da comarca de Rio de Janeiro, onde foi distribuído um pedido de indenização por danos morais.

Sabe-se que o ser humano parece (?) ter um prazer pra lá de doentio de discriminar o outro. Às vezes, por pura gozação, sem maiores consequências; outras tantas, para sacanear mesmo, para ferir, magoar, espezinhar. Discrimina-se por tudo. Discrimina-se em face da roupa, da cor, da altura, da voz, da opção sexual, da posição social, das orelhas, do corte de cabelo, da roupa, da estatura, de uma deficiência. Discrimina-se, enfim, pelos mais diferentes motivos e pelas mais variadas e injustificáveis motivações.

Nos dias presentes, um dos mais discriminados, maior alvo de gozação é, sem dúvidas, o(a) gordo(a). Nesse quesito, ninguém supera o(a) gordo(a), sendo que, quando se trata de gorda, sexo feminino, portanto, a discriminação chega a níveis de intolerância.

Nessa questão, o sexo feminino tem sido o objeto preferencial da discriminação, e por isso muitas mulheres almejam ser magras, a qualquer custo, conquanto isso não  seja privilégio de muitas, pelas mais diversas razões, que vão da genética à falta de condições materiais.

A verdade é que, como afirmei acima, vivemos a ditadura da magreza. Nesse sentido, não escapa ninguém – tanto faz ser homem, quanto mulher. Tem que ser magro (a). Ser gordo (a) parece ser um pecado.

Nesse ambiente, discrimina-se o(a) gordo(a), sem pena e sem dó. Nas academias, então, ambiente que frequento e que conheço bem, o(a) gordo(a) é sempre visto como ele(a) é, ou seja, como gordo(a). Ele(a) parece não ter identidade. É gordo(a) e ponto. É, simplesmente, ponto de referência. Nada mais do que isso, descontados, claro, os exageros da afirmação.

As pessoas não consideram outras possibilidades, outras razões pelas quais umas engordam e outras não. Tudo passa por uma tendenciosa e precipitada constatação: o(a) gordo(a) é gordo(a) porque quer, por desleixo, como se não fosse o desejo de muitos ter um corpo sarado,  saudável e escultural.

 Eu, pelos mais diversos motivos, sempre tive um marcante sobrepeso que me colocou no rol dos gordos, embora não me sinta discriminado,  quiçá porque não tenho uma gordura muito perceptível.  Na minha família, por exemplo, em face da protuberância abdominal que ostento, poucos me chamam pelo nome. Chamam-me, mesmo os meus filhos, carinhosamente, de “Gordo”, como se fora pré-nome. Mas isso nunca me incomodou. E não incomodou porque, de rigor, não me acho gordo, nem discriminado.

O (a) gordo(a), entretanto, nem sempre foi discriminado(a); pelo menos nos níveis que constatamos nos dias atuais. Vivi uma época na qual magreza era, ao contrário dos dias atuais, sinônimo de doença, de desnutrição, de necessidade. Os pais, no passado, faziam tudo para ver seus filhos roliços. E nessa faina, muitos ganhavam quilinhos extras para sempre. Mas as pessoas conviviam bem – se é que é possível – com a gordura. Recordo de pelo menos três colegas de infância que, por serem magros, tinham os sugestivos apelidos de “Filé de Borboleta”, “Come Papel” e “Sopa de Osso”.

Mas, deixando de lado os magros e musculosos, o que quero mesmo é refletir sobre a gordura, que é tema candente nos dias atuais. A verdade, portanto, é que, em se tratando de gordura e magreza, hoje em dia os papéis se inverteram. Está, com efeito,  decretado: é proibido ser gordo(a).

Devo dizer, no entanto, que é preciso pôr um fim a essa infernal patrulha, deixando que cada pessoa viva como é possível viver. Vamos deixar o(a) gordo(a) em paz. Que cada um cuide si. Não faz sentido discriminar por isso. Aliás, não faz sentido nenhuma forma de discriminação.

Cuide da sua beleza, cuide do seu corpo, controle a sua gula, feche a sua boca, exiba seus músculos, seu bumbum durinho, esnobe com a sua panturrilha, promova os seus bíceps e tríceps, mas deixe que o próximo viva como bem entender, como é possível viver em face de sua realidade.

Pare de ser fiscal da barriga dos outros. Cuide da sua vida. Cada um deve viver como lhe aprouver. Da minha gordura e da minha saúde cuido eu. Do seu corpo e da sua magreza, cuide você.

É preciso que sejamos mais tolerantes com as pessoas. Vamos parar de discriminar, afinal, chamar alguém de “Bolo de Carne”, “Filé de Borboleta”, “Come Papel” e  “Sopa de Osso”, em face da magreza ou da gordura, é tão discriminatório e condenável quanto chamar o próximo de “Maneta”, “Perneta”, “Cegueta” ou “Ceguinho”, em face de uma deficiência física ou visual.

Voando nas asas de uma quimera?

Tenho medo de que a minha visão de mundo possa não ser compreendida pelos meus filhos. Afinal, eles ainda têm tudo por construir, e o mundo em que vivemos deixa transparecer a prevalência das condutas heterodoxas, a privilegiar os caminhos nem sempre condizentes com a minha visão de mundo, como o fizeram, por exemplo, os moradores de Tubiacanga, na famosa crônica A Nova Califórnia, de Tobias Barreto, os quais, ao descobrirem que a violação das sepulturas rendia aos profanadores alguns gramas de ouro, aderiram à profanação que antes condenavam.

Meus filhos têm testemunhado, com algum desalento, a vitória dos que fazem apologia de ações pouco recomendáveis, como o fizeram os outrora éticos e críticos moradores de Tubiacanga, que só tiveram escrúpulos enquanto não viram os proveitos auferidos pelo protagonista Raimundo Flamel.

Os jovens, meu filhos entre eles, podem, sim não compreender que seja possível viver sem usar dos expedientes que todos nós condenamos, já que, na opinião de muitas pessoas, o que importa mesmo é ajuntar bens materiais, sem espaço para os escrúpulos, porque se esquecem de que, pelo menos na minha e na visão de muitos que pensam como eu, o que importa mesmo nessa vida é não desperdiçar afetos (Machado de Assis, Helena).

A propósito, dia desses, conversando em família, disse aos meus filhos que me preocupava muito em ser apontado por eles, um dia, como responsável por eventual insucesso em sua vida profissional, em face das minhas posições, radicais para alguns. Nessa conversa franca, olho no olho, eles concluíram que não viam nada de errado na minha maneira de ser, nas posições por mim assumidas como pai e como profissional. Mas, ainda assim, tenho medo de uma reação, de ser incompreendido. Tenho receio de que eles um dia, revoltados com tanta licenciosidade, com tantas notícias que degradam os nossos homens públicos e que alimentam a desesperança do povo, terminem por concluir que não vale a pena tanto rigor, que é preciso mais flexibilidade para enfrentar o mundo.

Recordo-me de certo dia em que meu filho, ainda bem pequeno, brincava com os primos e outros amigos. Determinada hora, como não obedeciam a ninguém, resolvi impor minha autoridade de pai. Chamei-o e determinei que sentasse ao meu lado. Ele me olhou, e com os olhinhos bem tristes, perguntou-me se estava de castigo de novo. Eu respondi que sim, ao que ele redarguiu: “Pai, e os outros? Por que só eu fico de castigo?”

Aquela pergunta foi como uma facada no meu peito. Decidi, então, precipitadamente, liberá-lo. E disse aos presentes, repercutindo a inquietação do meu filho, que não pretendia mais mantê-lo de castigo, pois não achava justo que as regras de boa conduta só valessem para ele.

Por essas e por outras é que temo que, como na obra ficcional de Amos Oz, Uma certa paz, meus filhos terminem por concluir um dia que é chegada a hora de dar um basta às concessões, de deixarem as minhas orientações,  de seguiram o curso “natural” da vida, de competirem com as mesmas  armas, por entenderem que, pelas vias que elegi, as conquistas são muitos mais difíceis.

Convém trazer à colação, para ilustrar, excertos do desabafo do personagem Ionatan Lifschitz, da obra ficcional antes mencionada –  obra já referida por mim, nesse mesmo espaço, em outro artigo -,  o qual, determinado dia, cansado do mundo em que vivia, sedento de viver uma vida diferente da que lhe tinha sido imposta, resolveu partir para o tudo ou nada, expondo as suas inquietações mais ou menos nos seguintes termos:  “O tempo todo, em toda a minha vida, eu abro mão e abro mão e já quando eu era pequeno me ensinaram que a primeira coisa é abrir mão, e na turma abrir mão, e nas brincadeiras abrir mão, e ter consideração, e dar um passo ao encontro de, e no Exército e no trabalho e na minha casa e no campo de esportes ser sempre generoso e não criar caso e não perturbar e não insistir mas sim prestar atenção, levar em consideração, dar ao próximo, dar ao coletivo, dar ajuda, se atrelar ao objetivo sem ser mesquinho, sem contabilizar e o que resultou de tudo isso resultou que dizem de mim Ionatan é bem legal, um rapaz sério com quem se pode falar, pode procurá-lo, você vai procurá-lo você vai se arranjar com ele,  ele sabe das coisas, um rapaz dedicado um homem simpático. Mas agora chega. Basta. Acabaram-se as concessões. A partir de agora começo uma nova história.”

Definitivamente, tenho receio de que meus filhos concluam, com algum grau de realismo, que em face das minhas ideias e obstinações,  eu viva, sem me dar conta,  voando sob as asas de uma quimera, o que, decerto, seria, para mim, um desalento.

É isso.