Flavia Guerra Cavalcanti, professora da UFRJ
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“[…]Não podemos, portanto, concluir que a Câmara se elevou ao patamar moral da sociedade brasileira, como se esta fosse melhor do que aquela. Em ambas, encontramos pessoas que podem atingir um resultado positivo, desde que sejam coagidas a praticar a justiça[…]”
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A cassação do mandato de Natan Donadon (sem partido-RO) no plenário da Câmara por votação aberta não deixa de ser um alento em um país onde os comentários mais ouvidos nas ruas é o de que “não há jeito” e de que “o Brasil não sai do lugar”. Houve um avanço, e isso tem de ser reconhecido. No entanto, esse otimismo é um otimismo em relação ao resultado, pois não houve mudança na natureza daqueles que compõem a Câmara.
Os deputados não votaram por convicção — do contrário, a cassação já teria ocorrido quando da primeira votação —, mas simplesmente porque estavam visíveis. A situação nos remete à discussão apresentada por Platão no século IV A.C., no Livro II de “A República”. No diálogo entre Sócrates e Gláucon, o tema da justiça e da injustiça é relacionado à visibilidade.
Gláucon conta a história de Giges, um pastor que servia ao governante da Lídia. Depois de um terremoto e de chuva torrencial, o solo onde Giges pastoreava se abriu. O pastor desceu pela fenda e encontrou um cavalo de bronze que guardava um cadáver e um anel de ouro. Giges apanhou o anel e voltou para casa.
No dia da assembleia dos pastores, Giges percebeu que, ao girar o engaste do anel e passá-lo para a palma da mão, tornava-se invisível para os demais. Quando o girava ao contrário, tornava-se novamente visível. Diante da possibilidade de agir na invisibilidade e, por isso, não ser punido, Giges seduz a mulher do rei, mata-o e assume o trono. Logo, conclui Gláucon, ninguém poderia ser justo de bom grado, mas apenas sob coerção.
A visibilidade trazida pelo voto aberto na cassação de mandato agiu como uma forma de coerção sobre os deputados, como se o anel de Giges tivesse sido virado para o lado da visibilidade, expondo todos à opinião pública. Então dependemos da visibilidade para termos justiça?
As críticas ao oportunismo dos deputados são legítimas, mas o seu comportamento não está tão distante do dos cidadãos que os elegem, confirmando a conhecida metáfora do Congresso como microcosmo da sociedade. No dia a dia, é comum a tentativa de burlar a Lei Seca, que funciona como um anel de Giges virado para o lado da visibilidade. O cidadão exclama sem pudores: “Não há problema em beber e dirigir porque hoje não há Lei Seca.” Isto é o mesmo que dizer que não se é capaz de seguir as regras sem qualquer forma de coerção ou antes que seus atos se tornem visíveis para a sociedade.
Os exemplos cotidianos são inúmeros. O teste antidoping é uma forma de visibilidade, tão aleatória quanto a Lei Seca. O atleta que utiliza substâncias proibidas faz uma aposta: a de que o anel de Giges poderá permanecer virado para o lado da invisibilidade. Se der sorte e não for escolhido para fazer o teste, continuará na invisibilidade, auferindo as vantagens decorrentes do uso das substâncias.
Não podemos, portanto, concluir que a Câmara se elevou ao patamar moral da sociedade brasileira, como se esta fosse melhor do que aquela. Em ambas, encontramos pessoas que podem atingir um resultado positivo, desde que sejam coagidas a praticar a justiça. A verdade é que Câmara e sociedade estão caminhando juntas e ainda não estão prontas para praticar a justiça por ela mesma, como queria Platão, sem necessidade de coerção. Nem sabemos se isso será possível algum dia. Enquanto isto, só nos resta aperfeiçoar as instituições e, neste sentido, o Brasil avançou com a adoção do voto aberto para cassação de mandato.