OS DONOS DA VERDADE EM TEMPOS DE COVID-19

Nesses dias de pandemia propiciada pelo novo coronavirus o que não faltam são atitudes arrogantes dos que pensam conhecer a verdade e delas ser proprietários, embora a sua verdade conflite com a ciência e que, por prudência e discernimento, devessem agir com mais responsabilidade, em face, sobretudo, das consequências das suas pregações.

As pessoas que se julgam proprietárias da verdade – ainda que a sua verdade conflite com a verdade científica – imaginam, equivocadamente, que se bastam, têm uma visão equivocada do mundo, vivem em conflito, estimulam a discórdia, são narcísicas empedernidas, que só têm ouvidos para escutar o que lhes interessa, elegendo o próprio umbigo como o centro do universo. E nessa lida, acabam se isolando ou falando para um diminuto grupo de sequazes fanatizados para os quais a lucidez e o bom senso são um artigo de luxo.

Não sei lidar bem com esse tipo de situação, pelo fato de ter uma enorme dificuldade de conviver com os que se imaginam proprietários da verdade, como se esta fosse, como qualquer objeto de consumo, colocada à venda numa prateleira de supermercado; que pudesse, enfim, ser comprada no comércio da esquina, ou pudesse ser construída à luz de suas idiossincrasias, dos seus desejos ou de suas equivocadas convicções.

Contudo, não é assim que as coisas funcionam; não é assim que a banda toca. E por mais intensas que sejam as nossas convicções, é preciso ter humildade ante os fatos da vida, é preciso respeitar o que a ciência ensina, mesmo que isso implique em prejuízos às nossas vontades, ou, noutra dimensão, aos projetos de poder de quem quer que seja, pois que, em determinadas circunstâncias da vida, os nossos interesses pessoais devem ceder ao interesse público.

É preciso humildade para ouvir e para decidir, sobretudo se a via de decisões se estreita em face da ciência, em face do conhecimento de quem estudou e se preparou para essa ou aquela finalidade.

Não se constrói o mundo com arrogância, tentando impor as nossas vontades e os nossos desejos pessoais, seja qualquer for a posição que tenhamos na sociedade, sobretudo se as nossas posições/interesses entram em rota de colisão com a ciência, como o fazem, por exemplo, os lideres populistas, cujas energias são despendidas apenas e tão somente em face dos seus projetos pessoais –  de vida e de poder.

 A vida ensina. Mas há os que teimam em não aprender e preferem arrotar incoerência e arrogância, levando consigo, quando se trata de uma liderança, os indefesos e ignorantes, como se deu, por exemplo, em Milão e no México, nesses dias de Covid-19, levados aos caos em face da ação irresponsável de suas lideranças que preferiram dar vazão a sua arrogância em vez de ouvirem os doutos, aqueles que, à luz da ciência, estavam em condições de aconselhar para a adoção das melhores providências ante a ameaça do novo coronavírus.

Na ficção, tudo é possível, mesmo que no mundo dos mortais ainda não tenha nascido um dono da verdade, conquanto haja, sim, os que se arvoram proprietários dela, a ponto de, em defesa do seu ponto de vista, tentar desqualificar o interlocutor, em vez de se deter no objeto do conhecimento.

O que se imaginam donos da verdade crêem, em face de um enorme equívoco de percepção, estar sempre certos; o erro, o equívoco, a percepção equivocada está sempre, desde o seu olhar, com o interlocutor; e se a essa teimosia/arrogância se somam aos interesses pessoais e um projeto de poder, aí não há salvação.  

Nesse cenário, são quase sempre histriônicos, não hesitam em destratar, desmerecer os que pensam de forma diferente; e assim, tentam ganhar no grito, dão murros na mesa, perdem a postura e a compostura, incapazes que são de parar para ouvir o ponto de vista de quem pensa diferente, ainda que mais qualificados para discussão; gritam, agridem os que ousam discordar, em vez de melhorar o argumento (Desmond Tutu).

Esses são do tipo, que, em face da sua conduta, se tornam indomáveis e tendem ao isolamento, porque não sabem, não aceitam mesmo conviver com a diversidade de pensamento; pensam, equivocadamente, que são infalíveis; e, mesmo estando no poder, de certa forma padecem de solidão, tendo a fazer-lhe companhia apenas a sua própria ignorância/arrogância.

Nessa senda, convém lembrar Elio Gaspari, para quem “a convicção de estar sempre certo nos impede de reconhecer que somos capazes de errar”, razão por que, por pensarem desse modo, vivem em permanente solidão, na suposição, também equivocada de se bastarem a si mesmos (Vinicius de Morais).

É oportuno chamar à colação, para ilustrar, a reflexão do ministro Luís Roberto Barroso, segundo o qual “quem pensa diferentemente de mim não é meu inimigo”, para, na mesma linha, argumentar que “a verdade não tem dono e que respeitar o outro e conviver com a divergência não significa abrir mão de si próprio”.

É preciso aprender a conviver com pluralismo e com a diversidade de pensamento, sem  tentar impor um pensamento único. Pena que existem os que não aceitam a diversidade como algo natural; pensam solitariamente, não aceitam a divergência, veem-na como uma afronta, e por isso, ao invés do argumento contrário, focam, muitas vezes, na pessoa de quem o enuncia, numa lamentável reafirmação desse péssimo hábito brasileiro de que é o melhor argumento é desqualificar moralmente quem está do lado oposto.

É isso.

O SILÊNCIO INTELIGENTE

A literatura é uma fonte inesgotável de inspiração. E foi exatamente nela que encontrei a inspiração para esse artigo: Dom Quixote de la Mancha, que revisito nesses dias de reclusão imposta pela ameaça do novo coronavírus.

Para que não façam uma interpretação equivocada do sentido dessas reflexões, devo me antecipar dizendo que não prego aqui censura ou autocensura. Afinal, o silêncio oportuno e razoável é, também, uma forma de expressão.

O que almejo, tão somente, em face de determinadas lideranças – e aqui antecipo o sentido dessas reflexões – é que pratiquem o silêncio inteligente, ou seja, que falem somente o essencial e com muita responsabilidade; fora disso, nada mais razoável que o silêncio.

Dito isso, à guisa de introdução, trago à colação, agora, para ilustrar, passagem inspiradora, em face dos dias atuais, da monumental obra de Miguel de Cervantes.

Pois bem. Em determinado momento, o estalajadeiro indaga do seu hóspede, no caso Dom Quixote, já suspeitando de sua falta de juízo, se trazia consigo dinheiro.

Don Quixote respondeu que não trazia nem um tostão porque nunca havia lido nas histórias dos cavaleiros andantes que algum o carregasse.

O estalajadeiro disse-lhe, então, que estava enganado, pois, a história nada falava certamente porque aos autores pareceu que não era preciso mencionar uma coisa tão clara e tão necessária de se levar, como dinheiro e camisas limpas, e nem por isso haveria de se acreditar que não os trouxessem.

Prosseguiu o estalajadeiro dizendo que decerto todos os cavaleiros andantes, de quantos livros estão cheios e atulhados, levavam bem forradas as bolsas, para o que desse e viesse; “e que também levavam camisas e uma arca pequena com unguentos para curar as feridas que recebiam…”.

A lição que se pode tirar dessa passagem da obra extraordinária de Miguel de Cervantes, trazendo-a para os dias atuais, nos quais defrontamos com uma pandemia que já roubou a vida de milhares de irmãos em todo o planeta e onde vicejam manifestações ignorantes,  é que, dada a sua obviedade , não precisaria lembrar aos homens públicos, máxime aos que têm papel de destaque, que eles não podem delirar, que não podem escarnecer a ciência, que não podem assumir posições pensando apenas em seus interesses pessoais ou no seu projeto de poder, como o fez – e faz-, por exemplo, o ex-ministro Osmar Terra, que, em rota de colisão com a ciência, terminou por perder a pouco credibilidade que ainda tinha.

Nessa toada, é de relevo anotar que dos homens públicos, sobretudo dos que exercem, com sua fala e suas pregações, certo fascínio em parcela expressiva da sociedade, espera-se, sempre, como um imperativo inescapável, bom senso, sensatez e equilíbrio, e que não se deixem levar pela solerte preocupação com eventuais vantagens que possam ser alcançadas em face de determinadas circunstâncias da vida, como se constata, nos dias atuais, em face da tragédia que assola o mundo decorrente da Covid-19.

Tenho dito que, nas conversas informais, no restrito ambiente familiar, nas rodas de bate-papo, numa rodada de cerveja, numa mesa de bilhar, num carteado, ou em qualquer outro ambiente, todos podemos – conquanto não devêssemos! – , até, delirar um pouco; podemos falar bobagens, dizer asneiras, porque, nessas circunstâncias, das bobagens e das asneiras ditas não resultam maiores consequências.

Todavia, o delírio, as palavras inoportunas, o dizer sem pensar, sem medir as palavras não são aceitáveis, por óbvio, quando proferidas por um líder qualquer, porque o delírio e as palavras ditas sem pensar, sabidamente, podem, sim, exercer certo fascínio em expressiva parcela da população. Daí que, em situações que tais, recomenda o bom senso que o líder busque o silêncio inteligente, que, repito, é, sim, uma forma de expressão, como antecipei no início dessas reflexões.

O homem – e nesse sentido não escapa o líder –, tem-se dito, é dono do que cala e escravo do que fala; mas não só isso. Ele é, também, responsável pelas consequências do que diz e, nesse sentido, tratando-se de uma liderança, precisa pensar antes de falar.

Se as palavras têm poder, como ensinam os sábios, é de rigor que todos devamos ter prudência e descortino no falar, dada as suas conseqüências.

É preciso saber a hora de falar e de calar.

Assim sendo, quando não temos formação profissional em determinada área do conhecimento, não é recomendável que nos deixemos levar pelo instinto ou pela vaidade para sair por aí, num microfone ou nas redes sociais, dizendo e escrevendo bobagens, espargindo mentiras e enganando as pessoas.

Na atual conjuntura, mais do que nunca, é preciso ter cuidado com as palavras; essa conclusão não é minha, mas de todos os que têm bom senso.

Por tudo que temos testemunhado nos dias presentes, é cada vez mais importante que as pessoas que tenham o mínimo de bom senso advirtam, lembrem aos açodados e descomprometidos de que a verdade não pode ser solapada para satisfazer às idiossincrasias de ninguém; e isso serve, no mesmo passo e na mesma dimensão, para os disseminadores de fake news, muitas das quais pensadas para confundir, sobretudo ao cidadão incauto, que, por conveniências e interesses pessoais, se deixa levar por falsas informações, replicando-as nas redes sociais, disso resultando conseqüências muitas vezes imprevisíveis.

A responsabilidade pelo silêncio inteligente é de todos nós. Ademais, a nenhum de nós é dado o direito de, numa situação tão grave como a que nos encontramos, falar bobagens e espalhar fake news na esperança de influenciar os acólitos fanatizados pela refrega política.

Se a prudência recomenda que, nos dias em que vivemos, nós, cidadãos comuns, não disseminemos bobagens pelas redes, em face de suas consequências, como muito mais razão deve silenciar quem exerça uma liderança.

Aquele que não for capaz de agir com bom senso e equilíbrio em face dos momentos difíceis pelos quais passa a humanidade, que seja capaz, pelo menos, de colocar em prática o que denomino de silêncio inteligente. Afinal, como dizia Albert Einstein, a estupidez humana e o universo são infinitos, e nada pior para combater a Covid-19 que a estupidez do homem.

É isso.

É PRECISO AMAR AS PESSOAS

O diplomata Sérgio Vieira de Mello foi enviado ao Iraque, depois da derrubada de Saddam Hussein pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, como chefe da missão da ONU, em Bagdá, para ajudar a pacificar o país. Todavia, como sabido, pouco pôde fazer para restabelecer a paz.

É que, no dia 19 de agosto de 2003, um caminhão-bomba foi lançado contra o prédio da ONU, matando 24 pessoas e ferindo outras tantas, naquele que foi considerado o maior atentado até então praticado contra uma representação das Nações Unidas.  Entre as vítimas da tragédia estava o grande brasileiro Sergio Vieira de Mello.

Por óbvio que não é possível resumir aqui a obra desse festejado diplomata carioca, já condensada em documentários – um deles disponível gratuitamente no YouTube  – e biografias alentadas.

E pelo fato de não ser possível sintetizar a sua monumental ação diplomática neste espaço, anoto, apenas, que há um consenso universal em torno de sua ação humanitária: foi um dos homens que mais contribuíram para a paz mundial, cumprindo ressaltar, nesse sentido, como exemplo, as suas destacadas ações no Timor Leste, em Ruanda e na repatriação dos refugiados da Guerra do Vietnã.

Com o lançamento do filme intitulado Sérgio, na Netflix, que conta parte de sua história, – estrelado por Wagner Moura, no papel principal, e Ana de Armas, como Carolina Larriera, esposa do diplomata -,   Sergio Vieira de Mello voltou a ser lembrado e eu voltei a me interessar pela sua história.

Antes de assistir ao filme e para confortar a minha péssima memória, saí em busca de informações sobre o diplomata, já que a sua biografia – o Homem que Queria Salvar o Mundo, de Samantha Power –  eu li há mais de 15 anos.

Encontrei na mesma Netflix as informações por mim pretendidas, e as recomendo. Trata-se do documentário também intitulado Sérgio, a que assisti nesses dias de pandemia.

Trata-se de um documentário denso, profundo, instigante, trágico e inspirador, que vale a pena assistir, conquanto não o recomende aos mais sensíveis, especialmente em face do dramático resgate – e tentativa de resgate – das vítimas do atentado, dentre as quais o próprio Sergio Vieira de Mello.

O detalhe que chama a atenção no documentário e que me levou a escrever estas reflexões, foi que – atenção! –  todas as vezes que o pessoal do resgate conseguia contato com Sérgio Vieira de Mello, parcialmente soterrado –  numa tentativa de regaste que se mostrou debalde -, este, entre a vida e a morte, imobilizado sob os escombros, num atitude que impressionou a equipe de salvamento, perguntava, insistentemente, como estava o resgate dos funcionários da representação, e pedia – acreditem!– que não se preocupassem com ele, e cuidassem dos seus companheiros também soterrados.

Isso se chama empatia, isso é altruísmo, o que parece faltar a algumas lideranças brasileiras e alguns dos seus sequazes mais fanatizados, os quais, nesses tempos de pandemia propiciada pelo novo coronavírus, parecem ter o seu pensamento e suas forças voltadas apenas para os seus próprios interesses, capazes que são de, até, promoverem buzinaços em frente a hospitais  ou de hostilizarem manifestação pacífica de enfermeiros, esses, sim, alguns dos destacados heróis nacionais dos dias presentes.

Menos mal que, noutras esferas, as pessoas têm mostrado a sua empatia e atitudes altruístas para com o povo sofrido do Brasil, como se constata, por exemplo, em face da exuberante rede de solidariedade que se formou para ajudar os mais necessitados, e para dar condições de trabalho aos médicos brasileiros – estes também heróis destacados -, vítimas, como nós outros, do descaso com que sempre foi tratada a saúde no Brasil.

Enquanto o povo sofre – e morre –  por falta de atendimento, algumas destacadas lideranças da nação disputam cargo e poder ou buscam uma boquinha para protegidos, muitos delas (lideranças) saídas do submundo do crime, fazendo-o sem nenhum constrangimento, à luz do dia, naturalmente, numa demonstração abjeta e torpe de que não estão nem aí para o sofrimento do povo.

E que se faça o doloroso registro:  é a classe menos favorecida que pagará, sim, além do sofrimento infligido pela Covid-19, pelos pecados de um sistema injusto e concentrador de rendas.

Diante dessa inevitável tragédia social, precisamos de lideranças fortes e comprometidas, ante a inevitabilidade do exacerbamento dos já desfavoráveis indicadores sociais, agora traduzidos em mais desemprego e mais fome, impondo-se, nesse cenário, a ação efetiva do Estado e sua rede de proteção, para que possam ser minorados o sofrimento e a dor do povo mais humilde.

No cenário desalentador a que me reporto, é inaceitável, sob qualquer perspectiva, que, nos dias presentes, de tanto sofrimento e dor, pessoas irracionais, dignas de desprezo, ainda persistam com ações que traduzem menoscabo pela dor e sofrimento alheios, não só subscrevendo e repassando fake news dolorosas – como a que noticia falsamente o enterro de caixões sem corpos -, mas, sobretudo, apostando no caos para que, depois, possam dele tirar algum proveito político.

Mas do que nunca, é preciso lembrar, com Renato Russo, que é preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã.

É isso.

A COVID-19 E O APAGÃO DA DECÊNCIA

No ambiente familiar no qual fui criado, acostumei-me a testemunhar, desde a mais tenra infância, as pessoas serem enaltecidas pela sua decência, pela sua honradez; nesse mesmo ambiente testemunhei, lado outro, críticas acerbas aos que não tinham compromisso com os valores morais.

Dito isso, pondero que, nos dias atuais, como de resto sempre ocorreu, é de rigor a constatação de que a absoluta maioria das pessoas age com decência; não fosse assim a sociedade não sobreviveria.

Mas há um grupo incorrigível de pessoas para o qual a decência, infelizmente, sofreu um lamentável apagão, motivo pelo qual se pode dizer que são incorrigíveis.

Nesse sentido, importa reafirmar que há pessoas (com destaque para as que exercem um múnus público) que não se importam em agir de forma decente, descomprometidas que são com a dignidade e o decoro de suas ações, ainda que desse comportamento possa resultar a sua desmoralização pública.

Esta reafirmação é inquietante, sobretudo nos dias atuais, diante da ação destruidora da Covid-19, porque traduz, a toda evidência, aquilo que já temos constatado em alguns homens públicos – mas não só eles, registre-se – qual seja, a total falta de altruísmo e respeito para com os semelhantes, exatamente quando o ser humano mais precisa de empatia e solidariedade.

Como exemplo mais proeminente, nos dias atuais, dessa lamentável falta de decência de alguns, chama a atenção, por exemplo, as notícias veiculadas na imprensa dando conta de roubalheiras em várias unidades da Federação a propósito da compra de respiradores e equipamentos de proteção individuais, instrumentos de primeira necessidade para o combate à Covid-19.

É dizer, numa situação de emergência, de dor e de sofrimento, quando incontáveis brasileiros perecem diante de uma pandemia devastadora, testemunhamos ações indecentes e oportunistas de seres humanos de segunda categoria, os quais, no afã do lucro fácil, fazem maquinações, não em defesa da vida, mas em desfavor dela, objetivando tirar proveitos pessoais, fazendo-o, por exemplo, em detrimento, literalmente, do ar que falta nos pulmões dos pacientes internados nas UTIs das unidades de saúde.

Diante desse tenebroso cenário, enquanto os pacientes Covid-19 buscam o ar que lhes falta para sobreviverem, assistidos por abnegados agentes de saúde – médicos, enfermeiros, auxiliares –, os canalhas de sempre, sem pudor e sem sentimento, se valem da situação de emergência, com o necessário excepcional relaxamento das medidas de controle, para dela tirarem proveitos materiais.

Ao lado desses espertalhões vejo, ademais, no mesmo ambiente contaminado pela falta de decência e de empatia, os replicadores de notícias falsas, os quais não perdem a oportunidade para, em face de suas paixões políticas e de seus interesses econômicos, veicularem, sem pudor e sem escrúpulos, noticias que em nada contribuem para o enfrentamento da Covid-19,  disseminando, com sua ação irresponsável,  informações que confrontam as medidas sanitárias e preventivas propostas pelas autoridades públicas responsáveis pelo combate ao coronavirus.

A propósito e para ilustrar, destaco que, segundo pesquisa desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 73,7% das informações e notícias falsas sobre o novo coronavírus circulam pelo aplicativo de mensagens WhatsApp; 10,5% no Instagram e 15,8% no FaceBook, o que revela o perigo de uma notícia fake, considerando-se que a maioria das pessoas tem se valido dessas vias para se “informarem”, cumprindo destacar que 71,4% das notícias falsas veiculadas via WhatsApp citam como fonte exatamente a Fiocruz, por mais estranho que isso possa parecer.

O grave, a propósito das fake news – que, como sabido, são disseminadas, sobretudo, nas redes sociais -, é quando o líder de uma nação  faz uso dessas mesmas redes sociais para veicular notícias dissociadas da realidade, como todos testemunhamos recentemente, do que resultou a decisão do Facebook,  do Instagram e do Twitter de removerem as mensagens veiculadas pelo presidente da República, por se tratarem de  informações  com potencial capacidade de causar sérios riscos à população.

Nesses dias de pandemia, o que de menos precisa a sociedade brasileira é de espertalhões, de leis destinadas a protegê-los e da veiculação irresponsável de notícias falsas, cumprindo destacar, para não dizer que não falei de coisas boas, a ação destacada e digna de encômios dos homens/mulheres de bem, os quais, com sua ação, contribuíram – e contribuem – para a construção de uma rede de solidariedade nunca vista dantes em nosso país.

O quadro aqui delineado merece detidas reflexões – e o repúdio veemente, na mesma medida – dos cidadãos de bem, cumprindo lembrar, aqui e agora e a propósito, de uma lição comezinha do saudoso John Kennedy: se você agir sempre com dignidade, talvez não consiga mudar o mundo, mas será, com certeza, um canalha a menos para atormentar a nossa vida.

É isso.

ABUSOS NA TRAVESSIA

Dou início a estas reflexões, como sempre faço, com a narrativa de um fato histórico, a partir do qual passo a esgrimir as minhas compreensões sobre determinados fatos da vida, um dos quais protagonizei no último final de semana, na travessia Cujupe-Ponta da Espera.

Os fragmentos abaixo foram apanhados na biografia de Tiradentes, magistralmente escrita por Lucas Figueiredo, na passagem que cuida da cobrança de impostos em face da produção do ouro em Minas Gerais. Os excertos são uma oportuna advertência quanto aos abusos a que todos nós somos submetidos, nas mais diversas esferas de atividades, nos mais diversos ambientes, em face dos mais diversos atores.

Aspas para o autor, na parte que interessa às reflexões:

“Um burocrata zeloso e astuto observador da cena mineira, o desembargador português José João Teixeira Coelho, tinha matado a charada: A falta do quinto do ouro [imposto sobre a produção do metal precioso] não procede dos extravios, como se entende; procede, sim, da decadência das minas, e esta decadência tem suas origens físicas. O magistrado ia adiante: fazer o diagnóstico errado, ou seja, insistir na repressão como forma de aumentar a arrecadação, traria consequências as mais perigosas e as mais funestas. Profético, Teixeira Coelho avisava: Os naturais de Minas e de toda a América são homens de espírito, e se a humanidade os pode fazer honestos e dóceis, o abuso do poder somente os fará criminosos”. (from “O Tiradentes: Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier” by Lucas Figueiredo).

Repito com o desembargador Teixeira Coelho, na parte que importa para o desenvolvimento do meu raciocínio: o abuso do poder pode perturbar o espírito, mesmo do homem mais dócil e honesto. Daí que, diante de um abuso, é preciso prudência e equilíbrio.

Agora, um fato protagonizado por mim, que justifica a ênfase que dou ao excerto.

Dia 12 de janeiro próximo passado eu retornava, com a minha família, de Cururupu, no ferry-boat das 14:30, operado pela Internacional Marítima.

No interior da embarcação, estacionei o veículo no local determinado pelos funcionários da referida empresa. Percebi, no entanto, que, estacionado o veículo, eu não tinha como abrir a porta para descer. Cuidei, então, de afastá-lo da lateral do Ferry, mas fui instado, pelo marinheiro, a não retirar o veículo do local que ele havia determinado, pois, se assim o fizesse, comprometeria o espaço destinado aos outros veículos.

Fiz ver a ele que somente afastando o veículo da lateral eu poderia abrir a porta e sair, mas ele me disse que o veículo tinha que ficar no local que ele determinou. E aduziu: o senhor teu direito à travessia porque comprou a passagem, mas o seu carro vai no local que eu determinar.

Eu insisti que, para sair do interior, tinha que deslocar o veículo. Começou um natural bate-boca: ele determinando que eu fizesse o que ele mandava, e eu insistindo para que respeitasse um espaço mínimo para eu sair do interior o veículo.

Nesse momento apareceram mais dois marinheiros, já exaltados e arrogantes. Um deles foi claro: tinha que ser como determinado. Um outro, menos exaltado, propôs que eu mudasse de lugar. Pensei em não fazê-lo, porém, constrangido com a arrogância dos marinheiros, aquiesci.

Senti medo. Eu estava com a minha família. Não queria causar-lhes sofrimento. Calei, olhei em volta e vi que não tinha a quem apelar. Decidi, então, obedecer à alternativa mais razoável: mudei de lugar, calado, sem dizer uma palavra. Mas o abuso, a arrogância e a prepotência com que fui tratado, claro, me agastaram.

Como o desembargador Teixeira Coelho, posso dizer: sou homem de espírito, sou honesto e sou dócil. Mas é certo também, como conclui o eminente magistrado, que o abuso de poder pode, sim, fazer nascer um criminoso, se ele não for capaz de se controlar.

Sei que se eu tivesse insistido para que respeitassem o meu direito de ter acesso ao exterior pela porta do motorista, como deve ser, eu poderia ser vítima de agressões – pelo menos verbais -, as quais, por óbvio, me fariam reagir. Mas preferi a prudência e recuei, pura e simplesmente.

Fiz o que eles determinaram os arrogantes marinheiros. Todavia, senti-me espezinhado, vilipendiado, desrespeitado. E, por isso, interiormente, me revoltei. Mas me contive, repito. É que, nessas situações não há muito o que fazer. Não há a quem recorrer.

Acho que fiz bem em não protagonizar uma reação que pudesse depois ser mal interpretada.

Tivesse eu reagido com a mesma arrogância, provavelmente seria manchete em jornais e blogs.

Os marinheiros? Bem, eles têm muito poder. E poder intimidatório, pois, confesso, senti pavor quando três deles partiram para cima do meu carro. Nessa hora, depois de contar até cem, fiz o que era prudente fazer: obedeci. O culpado de tudo, afinal, fui eu.

E por que assumo a culpa? Porque ousei reivindicar um elementar direito que ninguém respeita e que ninguém reclama, qual seja, entrar e sair do veículo com o mínimo de comodidade, direito que nos sonegam por pura ganância, pois para a empresa é mais lucrativo o espaço destinado aos veículos que o mínimo de comodidade aos passageiros, ainda que esse passageiro seja o condutor do veículo.

Logo, reivindicar um direito elementar, sob a ótica de quem se acostumou a impor a sua autoridade sem ser contrariado, é sempre uma afronta, a reclamar uma reação abusiva.

É isso.

PELO PODER VALE TUDO?

Sempre que participo de uma disputa pelo poder, faço a mesma pergunta: vale tudo pelo poder? É sobre essa questão que pretendo refletir, aqui e agora.

Pois bem.

Há uma teoria segundo a qual todas as nossas motivações, todas as nossas energias, enfim, não passam de aspirações pelo poder. Essa seria, pois, segundo a teoria, a essência da energia humana.
Segundo a mesma teoria, até mesmo o sexo pode se traduzir em categorias de poder, “seja porque queremos possuir o corpo de outra pessoa – e, portanto, possuímos a pessoa completamente -, seja porque achamos que, ao possuí-lo, impedimos outros de fazê-lo; ambas as situações nos permitem a satisfação do poder que exercemos sobre alguém” (Leszek Kolakowki, in Pequenas Palestras sobre Grandes Temas, editora Unesp, p. 12).

Hobbes, nessa linha de compreensão, entendia que o movimento primário de todo ser humano é, sim, em direção ao poder. É dele a conclusão: “[…] evidencio uma inclinação geral de toda a humanidade, um perpétuo e incansável desejo de poder após poder, que só cessa com a morte”. Por causa disso, entendia que devia haver um poder absoluto para controlar o homem[…]” (apud Martin Cohen, Casos Filosóficos, 2012, p.135).

É compreensível, pois, à luz dessas menções teóricas – corroboradas na prática -, que muitas das nossas energias são despendidas na busca pelo poder. Daí que não são poucos os que, obstinados, perseguem o poder de todas as formas, sem sopesar as consequências, despendendo até as energias que não têm, pois são daqueles que buscam o poder pelo poder, sejam quais forem os caminhos, pouco lhes importando os meios.

Os que perseguem o poder como uma obsessão, todos temos testemunhado, sobretudo nas pugnas eleitorais, agem, muitas vezes sem se darem conta, descontroladamente, sem freios e sem peias; agem como um carro desgovernado descendo uma ladeira, motivo pelo qual se predispõem a lutar com as armas que têm às mãos, ainda que o façam, muitas vezes, arrostando, lancetando a própria história.

Nessa liça, nesse afã, há os que se sentem estimulados a usar de expedientes pouco convencionais para ascender, pouco importando as consequências de sua ação.

São fatos que testemunhamos com frequência, sobretudo, repito, nas disputas de comando, nas quais, não raro, o menos importante são as ideais e o interesse público, pois, afinal, para os que buscam o poder pelo poder, este é um fim em si mesmo, razão pela qual o almejam a qualquer custo.

É preciso ter presente, entrementes, que, definitivamente, não vale tudo pelo poder. Não vale, por exemplo, mentir, escarnecer, vilipendiar, denegrir, arrostar a honra que eventuais adversários e nem daqueles que eventualmente se aliem aos circunstanciais adversários.

A busca do poder, tenho isso muito presente, com inabalável convicção, não deve levar os postulantes a uma luta fratricida e sem limites. Ao contrário, ela deve impor aos contendores o necessário e inefável respeito à dignidade e à honra de tantos quantos se envolvam na pugna, sejam adversários, sejam os eleitores, aos quais devem ser assegurados o direito de escolha e de alinhamento.

Não vale tudo pelo poder, definitivamente, posto que a disputa regada a ódio, ambição e vaidade não constrói; antes, dependendo dos expedientes utilizados, destrói reputações, macula a honra, levando a reboque, nessa faina, e em alguns casos, a própria instituição que se pretende comandar.

A disputa é sempre salutar, é sempre benfazeja; faz parte do jogo democrático. Mas quando falo em disputa, restrinjo-me ao campo das ideias, não àquela regada, por exemplo, a ataques e desrespeitos ao adversário.

O homem público se credencia para o exercício do poder, em face da sua honradez, da história que construiu. Dessa forma, a sua conduta deve, como imperativo moral, ser escorreita, ilibada, imaculada, postura que se exige igualmente, como um imperativo moral, durante todo processo eleitoral.

Nesse sentido, entendo que não se deve transigir, por exemplo, com ataques oportunistas aos que se envolvem numa disputa, mesmo nas disputas políticas paroquiais, nas quais o que menos valem são as propostas dos candidatos, atomizadas, não raro, por agressões torpes contra a honra dos contendores.

A luta pelo poder não pode ser travada olvidando-se os contendores do interesse público e da preservação das instituições, afinal, tudo tem limites.

Assim, por mais fascinante e inebriante que seja o poder, a sua busca não pode ser levada às últimas consequências, – pela via da intolerância, por exemplo, que, como lembra Voltaire, cobriu a terra de morticínios, ou com menoscabo da dignidade da pessoa humana, que é valor a ser sublimado a qualquer custo, por mais renhida que seja a disputa.

A dignidade da pessoa humana, solapada amiúde nas disputas de poder, cumpre lembrar aos que dela se descuram e para realçar a sua relevância, é valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda ordem jurídica, constitucional e infraconstitucional, cumprindo consignar, com a advertência de Immanuel Kant, que as coisas têm preço e as pessoas, dignidade; dignidade que não deve ser vilipendiada, por mais renhida que seja uma disputa e por mais que se ambicione o poder.

É isso.

DIAS DE INTOLERÂNCIA

Desde muito jovem, tenho assistido – e participado como protagonista, muitas vezes, – aos mais diversos embates, nas mais diferentes frentes, pelos mais diversos motivos. Mas sempre mantendo o equilíbrio, sem agredir, sem abespinhar ninguém, conquanto defenda os meus pontos de vista sempre com muita ênfase, porque esse é o meu jeito de ser, de enfrentar as questões de maneira sempre muito enfática; sou intenso mesmo. E por já ter visto de tudo, posso dizer que nada mais me surpreende, embora me deixe estarrecido.

Não entendo, sinceramente, a razão do vale-tudo, das agressões gratuitas, usadas como argumentos heterodoxos e metajurídicos, sobretudo em ambientes nos quais se espera dos contendores o necessário equilíbrio, a indispensável sensatez e o inarredável respeito pelos que pensam de maneira diversa.

A realidade é que desse vale-tudo, das agressões desmedidas e desnecessárias resultam péssimos exemplos, sobretudo quando os contendores deveriam protagonizar atitudes sensatas. Logo, é preciso convir que qualquer forma de agressão é um péssimo exemplo, e não educa; antes, deseduca, pois, agressões, quaisquer que sejam, causam em cada um de nós um certo estupor, uma grave sensação de que alguma coisa está fora de ordem.

A intolerância dos homens públicos, daqueles de quem se espera atitudes equilibradas, é forçoso constatar, termina contaminando – o que é mais grave ainda – parcela significativa da sociedade, que passa a usar dos mesmos expedientes contra os que ousam pensar de modo diferente, o que pode ser comprovado nas redes sociais, onde os contrários travam uma verdadeira guerra, com muitas agressões, tendo a antecedê-las muita intolerância. Dessa forma, a intransigência – espanta que muitos não vejam – açula, em ambientes antes fraternais, os embates que, muitas vezes, levam à ruptura das relações. E assim, movidos pelos embates, pela falta de cortesia, pelas atitudes desabridas de muitos, fruto da intolerância que permeia a nossa vida, não são poucos os que veem como inimigos aqueles que pensam de modo diferente.

A verdade é que os contendores que não se impõem limites, deixam entrever que, na tentativa de sobrepujar aquele que elegeu como inimigo, não vale perder pela força dos argumentos; tudo o mais vale, segundo tenho testemunhado em diversos ambientes onde a pluralidade de pensamento deveria ser vista como algo natural.

Ganhar, vencer, sobrepujar aquele que se elegeu como adversário, de qualquer maneira, de toda sorte, é o comando, é o que move o contendor mais aguerrido. Os meios? Isso pouco importa. As consequências? Irrelevantes. O interesse público? É questão secundária.

Tudo faz crer, enfim, que as descortesias, os ataques, as agressões verbais, a falta de respeito e a desconsideração em face do semelhante são movidos por um único e prevalecente sentimento, qual seja o de entender que importante mesmo é assumir com a pose de vencedor da contenda, ainda que em detrimento de outros valores mais importantes.

Nesse afã, não há espaço para tolerância, para a concórdia, para fraternidade, uma vez que a tolerância, nesse ambiente, é confundida com covardia. Nesse cenário, pensam os contendores, é preciso agir sempre e reagir sem enleio, sem titubeio, com a necessária agressividade; se preciso, com armas mais contundentes, com ataques mais letais, ainda que a ofensa se dirija à honra e à dignidade do desafeto.

Para ilustrar e para deixar claro que, mesmo em nações que julgamos civilizadas, a intolerância, as agressões gratuitas, os ataques pessoais contra os que pensam diferente permeiam as relações – sobretudo quando o afã é desprestigiar o antagonista -, trago um exemplo que apanhei no best-seller Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

Narram os autores que, em 2008, Barack Obama, na noite de sua eleição, com a sua família reunida num palco em Chicago, se congratulou com McCain por sua carreira heroica de contribuições à nação, num gesto de tolerância quase incomum.

McCain, mais cedo, em Phoenix, Arizona, tinha feito um discurso cortês de reconhecimento da vitória de Obama, a quem descreveu como um homem bom que amava o seu país, e lhe desejou uma boa jornada, num exemplo clássico de reconciliação pós-eleição.

Tudo parecia levar ao caminho da civilidade.

Todavia, segundo os autores, havia algo errado no Arizona, pois, tão logo McCain mencionou Obama, a multidão vaiou aos berros, forçando o senador do Arizona a acalmá-la, numa situação típica de intolerância, a evidenciar que o apelo à conciliação de McCain não resistiu aos arroubos de insensatez.

A partir daí, Obama, a reafirmar o óbvio, passou a ser questionado na sua legitimidade, a ser submetido a uma oposição mais do que perniciosa.

Ante situações que tais tenho dito que, em vez do jogo sujo, desleal e sorrateiro, permeado de agressões desnecessárias, conflagrando os ambientes nos quais se espera ponderação e equilíbrio, com posições radicalizadas, as pessoas deveriam ter uma atitude de grandeza, apostando na concórdia e na temperança.

Claro, reconheço, é uma utopia esperar gestos de grandeza de determinadas pessoas, sobretudo daquelas que não têm espírito público, cujo centro do universo é seu próprio umbigo.

Mas não se deve apostar na distopia, nas ações disruptivas que não edificam; que, antes, fazem sucumbir valores que nos são caros, como a paz e a fraternidade.

O arrivismo, as diatribes, as más condutas, o jogo baixo, a intolerância e o estímulo à discórdia não constroem; antes, introjetam em todos o grave sentimento do confronto.

É isso.

HOMEM HOMINI LUPS

José Luiz Oliveira de Almeida*

Na história podemos apanhar vários exemplos de até onde pode chegar a maldade do homem, na busca de uma vantagem material. No porão dos navios negreiros, por exemplo, que por mais de trezentos anos cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa nordeste do Brasil, mais de três milhões de africanos fizeram uma viagem sem volta, para servirem à ambição do homem, a possibilitar que impérios fossem erguidos à custa do seu sofrimento.

O capitão da belonave inglesa Fawn, que capturou, na costa brasileira, o navio negreiro Dois de Fevereiro, relatou o que viu nos porões do referido navio, nos seguintes termos: “Os vivos, os moribundos e os mortos amontoados numa única massa. Alguns desafortunados no mais lamentável estado de varíola, doentes com oftalmia, alguns completamente cegos; outros, esqueletos vivos, arrastando-se com dificuldade, incapazes de suportar o peso dos seus corpos miseráveis. Mães com crianças pequenas penduradas em seus peitos, incapazes de dar a elas uma gota de alimento. Como os tinham trazido até aquele ponto era surpreendente: todos estavam completamente nus. Seus membros tinham escoriações por terem estado deitados sobre o assoalho durante tanto tempo. No compartimento inferior o mau cheiro era insuportável.  Parecia inacreditável que serem humanos fossem capazes de sobreviver naquela atmosfera”(cf. Eduardo Bueno, in Brasil, uma história, fls.121/122, 2012).

Esse fato histórico decerto que confirma o que tenho dito repetidas vezes: o homem tem tudo para temer o próprio homem; homem homini lups. Por isso, a afirmação mais que contemporânea de Mougenot, de que se o homem não vivesse o instinto de dominação, poderíamos beber água do mesmo rio, mesmo um sendo lobo e o outro, ovelha (Edilson Mougenot Bonfim).

A verdade é que a luta do homem é quase sempre em face do próprio homem. Nesse sentido, vivemos lutando contra a inveja, o preconceito, a vingança, o ódio, a perfídia, o descaso, a prepotência, a arrogância, a perseguição, a maldade, o sentimento mesquinho do homem em detrimento do próprio homem.

Nenhum animal que habita a terra atemoriza tanto o homem quanto ele próprio. Confesso que tenho medo do homem. Aliás, todos nós temos medo dessa espécie. E, imagino, todos sabem do que estou falando e em qual dimensão coloco essas reflexões. E não pensem que é paranoia. É apenas a constatação de quem milita na área criminal há mais de trinta anos, lidando com os mais diversos instintos.

Impregnado desse sentimento, penso que ninguém que se depare com uma pessoa desconhecida em lugar ermo deixa de se dominar pelo medo. Eu tenho medo, tu tens medo, nós temos medo, eles têm medo. É assim que, nos dias atuais, conjugamos o verbo. Apesar de se poder afirmar que os bons são a infinita maioria, não dá pra esquecer que os maus, os que nos apavoram, são uma minoria destemida, ousada, perniciosa, audaciosa, poderosa e violenta, porque usa os expedientes que os homens de bem não ousam fazer uso.

Dessa forma, o homem já não vê no homem um irmão, mas um desafeto, um inimigo em potencial. E se esse homem for um dos etiquetados pelo sistema, aí não tem apelo: se possível, sempre de acordo com as circunstâncias, mudamos a direção para não ter que cruzar, que nos defrontar com o (des)igual(?), com receio do que pode ocorrer.

Portanto, é de estarrecer a constatação do quanto nos precavemos contra o homem. Assim é que, quando colocamos o rosto na porta da rua, quando deixamos o recôndito do nosso lar, passamos a viver a obsessão de, a qualquer momento, sermos vitimados pela violência, praticada pelo homem, em detrimento do próprio homem.

Na rua, mesmo nos lugares bem habitados, é triste constatar que, por temermos o homem, sentimos em cada transeunte um inimigo em potencial. E isso também não é paranoia, convém repetir. Isso é fato. É uma lamentável realidade, triste realidade.

Evitamos a escuridão e o lugar ermo porque tememos o homem, e pelo mesmo motivo nos trancamos em nossa casa. Na rua, evitamos conversar com um desconhecido, porque tememos o homem, que já não vê como irmão o seu semelhante, que deixou de ser solidário para ser solitário, que é muito mais sozinho do que vizinho (Mougenot).

Por essas e outras razões, quando os nossos filhos saem para se divertir, ficamos em casa a torcer para que não se deparem com um malfeitor; e o malfeitor que tanto tememos é o próprio homem que, muitas vezes, a pretexto de se defender da violência, sai armado de casa, para, na primeira oportunidade, atacar o semelhante.

Foi-se o tempo em que a maldade do homem, conquanto existisse, estava mais circunscrita à ficção que à realidade. Foi-se o tempo em que era possível dormir com as janelas abertas, sem temer a ação dos meliantes.

A verdade é que, como disse acima, a luta do homem é quase sempre em face do próprio homem; homem que, muitas vezes, para se dar bem, para levar vantagem, não mede as consequências de suas ações.

É isso.