CATARSE

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“[…]Logo, é preciso reconhecer que o grito intempestivo, a encenação e a postura beligerante não resolvem. E exatamente por isso, mantenho o equilíbrio em face de uma agressão e não saio da linha, principalmente, quando isso acontece no meu ambiente de trabalho, onde me imponho maior equilíbrio ainda e mantenho a calma, em respeito à liturgia do cargo, postura que se exige, sobretudo, de um magistrado[…]”

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Tenho certeza de que amadureci muito nos últimos anos. Digo melhor: amadureci mais ainda. Como se não bastasse, também pude descobrir que não é só a idade que nos faz amadurecer, uma vez que isso está totalmente associado ato de querer ou não. Se fosse apenas pela idade, todos seriam maduros. Contudo, não é isso o que vejo, quando me deparo com pessoas que, definitivamente, passe o tempo que passar, não amadurecem. Basta olhar em volta.

No meu atual momento de vida, não é qualquer descortesia ou atitude grosseira que me tira do sério, pois o meu objetivo de vida é a relação pacífica e cortês, por isso, na maioria das vezes, tendo estado imune às provocações.

Anoto, nesse sentido, que tendo amadurecido mais ainda nos últimos anos, em face das lições que assimilei da convivência num órgão colegiado, estou sempre preparado para, se for o caso, ceder, contemporizar, transigir, compor, a suportar calado as provocações, a contar até cem antes de reagir. É que o confronto não me apraz nessa fase da minha vida. Por isso, suporto com resignação e equilíbrio eventuais grosserias que são feitas a mim, as injustiças que penso estar sofrendo, tanto que ninguém nunca testemunhou uma reação intempestiva da minha parte durante as reuniões coletivas dos órgãos julgadores dos quais faço parte.

Mas, como todos sabem e testemunharam, nem sempre foi assim, já que em épocas passadas, agressões disparadas contra mim receberiam a resposta correspondente. Não tinha essa de levar desaforo para casa. Hoje, levo-os todos, sem me deixar contaminar, sem reagir, tudo com muito equilíbrio como se espera de um magistrado.

Nos dias presentes, como diz Ferreira Gullar, em artigo publicado na  Folha de São Paulo, “eu não quero ter razão, eu quero mesmo é ser feliz”. Mas para ser feliz, verdadeiramente, como eu sou, tem-se que passar por uma espécie de purificação, de limpeza da alma. As almas impuras são quase sempre agressivas, descorteses, mal-educadas, desrespeitosas. Dessas eu procuro manter distância.

Definitivamente, nos dias presentes, não passo recibo à grosseria.  Não dou atenção à discórdia, conquanto abomine, sim, a falta de postura, de educação, o murro na mesa, a voz alguns decibéis acima do que recomenda a boa educação.

Pensando assim, não acho elegante, vejo com especial comiseração, a postura dos que almejam impor o seu ponto de vista na marra, sem lucidez, sem equilíbrio, precipitadamente, açodadamente, na marra, no grito, no escândalo que a todos nós nos constrangem.

Tenho dito às pessoas mais próximas que argumentos devem ser contrapostos com argumentos e que “contra todos os expedientes da arte e da intriga, vale mais, modesta e obscuramente, ter-se razão” (Calamandrei).

Logo, é preciso reconhecer que o grito intempestivo, a encenação e a postura beligerante não resolvem. E exatamente por isso, mantenho o equilíbrio em face de uma agressão e não saio da linha, principalmente, quando isso acontece no meu ambiente de trabalho, onde me imponho maior equilíbrio ainda e mantenho a calma, em respeito à liturgia do cargo, postura que se exige, sobretudo, de um magistrado,

Ao longo dos anos, tenho me libertado dos pensamentos negativos, em face de um exercício continuo de autoanálise, razão pela qual imagino estar passando por verdadeira catarse, a me fazer melhor como gente, como cidadão e como profissional a cada dia, a cada momento.

Tenho, nessa auspiciosa fase da minha vida, me libertado dos sentimentos mesquinhos e das emoções reprimidas. Daí por que vivo uma prazerosa e indescritível sensação de alivio e de pacificação comigo mesmo e com o mundo ao meu redor. Em face dessa libertação, tenho afastado de mim, com muita sofreguidão, os maus sentimentos.

Dessa forma, mesmo quando me sinto agredido, sobretudo quando concluo desnecessária a agressão, quando percebo alguma reação que julgo descabida em relação a minha pessoa, procuro, com equilíbrio, administrar as adversidades, em tributo à minha felicidade, posto que, afinal, é o que importa mesmo, definitivamente. Ademais, para ser feliz como sou, só mesmo me libertando dos maus sentimentos e me prevenindo das maledicências do mundo.

Provocações?  Elas vêm, batem no meu peito mas resvalam como uma bala em obstáculo sólido. Depois, voltam, sim, como um petardo disparado pela minha alma, no coração dos que não sabem controlar os seus impulsos.

Por isso, mesmo já tendo convivido com perturbações psíquicas, com o medo, com traumas e com a sensação de estar oprimido, hoje tenho a sensação de que me curei disso tudo. Daí a certeza de que sou feliz, que é, afinal, tudo o que almejo, pois a mim não perturba nenhum tipo de ambição material que não seja somente aquilo que posso adquirir com o que ganho honestamente.

Poderia dizer, com algum exagero, inspirado, intenso em Zeca Pagodinho, que no atual estágio da minha vida, só posso levantar as mãos pro céu, agradecer e ser fiel ao destino que Deus me deu, pois, se não tenho tudo o que preciso, com o que tenho vivo, e de mansinho lá vou eu.

Assim agindo, repito, vou purificando a minha alma, defenestrando as minhas neuroses, administrando, quando necessário, as neuroses do semelhante, seguindo a minha vida, libertando-me dos sentimentos malsãs, deixando fluir as emoções que antes reprimia, pacificando e aliviando o meu espírito das sensações que possam me infelicitar.

SENHOR DO MEU DESTINO

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“[…]Devo dizer, nessa linha de pensar, que, não fosse a minha determinação de mudar o caminho que, aparentemente, já estava traçada para mim, muito provavelmente eu não seria o que sou hoje, e, muito provavelmente também, estaria trabalhando na lavoura, cuidando da terra, como, afinal, foi o destino dos que, como eu, nasceram e se criaram convivendo com o campo[…]”

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Sócrates ensinou que uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida. Em Fédon ele diz que uma vida irrefletida leva a alma a ficar “confusa e aturdida, como se estivesse bêbada”, enquanto uma alma sábia alcança a estabilidade e seu vagar chega ao fim.

Nessa linha de compreensão, teimo em levar uma vida reflexiva, mesmo diante da óbvia constatação de que, não raro, o resultado das minhas reflexões pode não ser muito palatável, o que, para mim, não é nenhum óbice a impedir a minha contínua vida de reflexão.

Assim determinado, começo essas reflexões com uma indagação inquietante: O homem tem o poder de mudar o seu destino? Ou é verdade que cada a uma já nasce com o seu destino definido, cabendo a cada um de nós apenas aguardar que o tempo fluo, na certeza de que a projeção do nosso futuro já está definida?

Muitas vezes ouvir, diante de um infortúnio, de um tropeço ou de uma derrocada, as pessoas costumam dizer na tentativa de dar conforto às vítimas das desditas, que foi o destino que assim o quis, como que reafirmando que, em face dele, somos impotentes, só nos restando mesmo a conformação.

Claro que a incursão em torno desse tema exigiria de mim, de rigor, um conhecimento que não tenho, uma profundidade de análise que não sou capaz de fazer. Compreendo, no entanto, que, apesar das minhas limitações intelectuais, posso, sim, refletir sobre a questão como qualquer pessoa minimamente racional pode fazê-lo, pois, afinal, o objetivo mesmo é só pensar, exercer o direito de dizer o que penso e sinto ante os mais diversos acontecimentos que permeiam a minha vida, sem nenhuma outra pretensão que não seja desnudar a minha alma, me expor ao julgamento daqueles que se aventuram ler as coisas que escrevo.

A propósito do tema em comento, devo dizer que, segundo a minha percepção, fruto apenas da minha experiência de vida, em face de tudo que já testemunhei ao longo da minha provecta existência, que, naquilo que depende só de nós, nós somos, sim, os únicos responsáveis pelo nosso, digamos, destino.

Devo dizer, nessa linha de pensar, que, não fosse a minha determinação de mudar o caminho que, aparentemente, já estava traçada para mim, muito provavelmente eu não seria o que sou hoje, e, muito provavelmente também, estaria trabalhando na lavoura, cuidando da terra, como, afinal, foi o destino dos que, como eu, nasceram e se criaram convivendo com o campo.

Mas eu decidi que não era isso que eu queria, e, nesse afã, aproveitei as oportunidades que se apresentaram na minha vida, sempre com muita tenacidade, e com convicção de que meu mundo deveria ir muito além do campo e da roça.

Nesse afã, cuidei de mudar a direção, cuidei de pavimentar o caminho noutro rumo, tendo alcançado, pelas forças da minha determinação, os meus reais objetivos, mesmo quando tudo parecia conspirar contra, face as enormes dificuldades pelas quais passei, depois que o nosso provedor optou por nos abandonar.

Posso dizer, então, que, no que dependeu da minha vontade, eu mudei a minha rota, contribuindo, decisivamente, para construção da minha história, que poderia, sim, ter sido diferente, se eu permanecesse “com a boca escancarada e cheia de dentes, esperando a morte chegar”, como narrou Raul Seixas.

Tenho convicção, em face mesmo de tudo que vivi e testemunhei, que o mesmo não se dá quando deixamos a vida nos levar, sem fazer nenhum esforço para mudar o rumo dos acontecimentos. Nesse caso, o destino de cada um termina sendo traçado pelos outros, pelas forças exteriores que não sejamos capazes de enfrentar – por medo, covardia ou acomodação.

Aquele que, diante das dificuldades da vida, prefere se acomodar e deixar acontecer, aí sim, acaba sendo levado pela correnteza da vida como um barco sem comando enfrentando uma tempestade. E isso ocorre porque não foi capaz de segurar as rédeas da sua história.

Aquele que não assume o comanda da sua vida, da sua história, que fraqueja e sucumbe diante do infortúnio, não é, definitivamente, o senhor do seu destino, razão pela qual só lhe resta mesmo assumir, conformado, que “foi  destino foi quem quis assim”, quando, na realidade, ele próprio foi quem se omitiu, se negando a sair da zona de conforto que poderia mudar a direção da sua vida, perspectiva em face da qual as portas do mundo se abrem ou se fecham, dependendo da força e da determinação de cada um.

Para ilustrar e roborar o que digo, anoto que o genial Nelson Cavaquinho (que tocava mesmo era violão), era do tipo que deixava a vida seguir o seu fluxo, que não lutava para mudar a rota, que se deixou levar sem mover uma palha para mudar a direção. Era do tipo que, diferente de muitos, não se aproximava das pessoas que não fosse por afeto. Nenhum interesse que não fosse o prazer da convivência o movia. Deixou acontecer. Ele nunca forçava a barra. Deixava os acontecimentos fluírem. Com essa conduta, traçou o seu próprio destino porque não se empenhou em modificar o curso dos acontecimentos. Era, portanto, do tipo acomodado que, apesar da genialidade, não tirou proveito material da sua criatividade, porque preferiu que fosse assim, se acomodou com a situação, não fez questão de pavimentar o caminho que o levaria noutra direção.

É claro que, por vezes, nem tudo depende só da boa vontade de cada um, da determinação de cada um. Às vezes uma boa dose de sorte ajuda muito. Contudo, devo alertar, tomando de empréstimo as lições do poeta popular, que “não adianta um pé de coelho no bolso traseiro, nem mesmo a tal ferradura suspensa atrás da porta ou um astral bem maior que o da noite passada, pois toda sorte tem quem acredita nela”. (Fernando Mendes).

Digo mais, agora inspirado, ao reverso, em Mia Couto (Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, editora Companhia das Letras), que não devemos nos deixar levar pela desesperança, achando que tudo é destino e que contra o que está escrito nada podemos fazer, pois tenho testemunhado não ser verdadeira a afirmação de que a vantagem de pobre é saber esperar, e esperar sem esperança, pois não foram poucos os que, lutando com todas as dificuldades propiciadas pela vida, ainda assim venceram, afinal, com disposição e fé, somos, sim, os senhores do nosso destino ou, pelo menos, devemos tentar assumir o comando dele”.

É isso.

 

 

A PRISÃO PREVENTIVA NÃO É UM FIM EM SI MESMA

 

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A prisão preventiva, com efeito, não é um fim em si mesma. E aquele magistrado que, a pretexto de dar uma resposta imediata à opinião pública, decretar uma prisão sem que deixe patenteada, quantum satis, a sua real necessidade, num regime garantista como o nosso,  flerta, iniludivelmente, com a arbitrariedade, pois coloca o sistema penal apenas a serviço do poder punitivo (Direito penal), passando, nessa perspectiva, à ilharga de comezinhos princípios constitucionais garantidores do respeito à liberdade e à dignidade da pessoa humana.

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Antecipo estas reflexões anotando que aqui não se cuida de um libelo em favor de marginais perigosos, aos quais devem ser dispensados os rigores da lei, conforme temos feito nos processos de nossa relatoria, prática que, de resto, tem sido adotada por todos nós que atuamos nas diversas Câmaras Criminais.

O que almejo com essas reflexões é tão somente reafirmar o óbvio, ou seja, que num regime de garantias, é inaceitável que ainda se prolatem decisões segregacionistas (prisão ante tempus) sem a devida fundamentação, como tem sido observado, iterativamente, em nosso Estado.

Tenho reafirmado que o processo penal, em qualquer sociedade democrática, só se torna legítimo se for constituído a partir de uma Constituição igualmente democrática. Com efeito, a uma Constituição autoritária corresponde, sem dúvidas, um processo penal também autoritário; a uma Constituição democrática, noutro giro, deve corresponder, necessariamente, um processo penal também democrático, a serviço da máxima eficácia das garantias constitucionais do indivíduo.

Essas premissas visam a reafirmar que, especialmente no que se referem às prisões provisórias, elas não devem ser implementadas ao sabor das conveniências do julgador, ao sabor das circunstâncias e sem uma base empírica e legal que a legitime, pois que, da inobservância dessas premissas e da sua implementação levada a efeito, a partir de impulsos antidemocráticos e antigarantistas, resulta a sua anêmica fundamentação, que a torna írrita e passível de reparação.

A prisão preventiva, com efeito, não é um fim em si mesma. E aquele magistrado que, a pretexto de dar uma resposta imediata à opinião pública, decretar uma prisão sem que deixe patenteada, quantum satis, a sua real necessidade, num regime garantista como o nosso,  flerta, iniludivelmente, com a arbitrariedade, pois coloca o sistema penal apenas a serviço do poder punitivo (Direito penal), passando, nessa perspectiva, à ilharga de comezinhos princípios constitucionais garantidores do respeito à liberdade e à dignidade da pessoa humana.

O que tenho testemunhado, com preocupação, é que, muitas vezes, em face mesmo do estrépito do crime, tem-se incrementado as prisões provisórias como sucedâneo das decisões condenatórias transitadas em julgado, dando a elas, nesse sentido, contornos de punição antecipada, conquanto se saiba que, sobretudo agora, com as inovações acerca das medidas cautelares(cf. Lei 12.403/2001), a prisão, mais do que nunca, constitui-se a extrema ratio da ultima ratio.

Por que volto ao tema? Porque toda semana a cantilena é a mesma nas Câmaras Criminais: os juízes, com as exceções costumeiras, não fundamentam, quantum sufficit, as conversões que fazem das prisões em flagrante em preventivas. O pior é que não se vê nenhuma reação do órgão fiscalizador, salvo exceções pontuais, diante dessa quadra de abespinhamento da ordem legal.

Tenho reafirmado que não se deve fazer cortesia com o direito alheio, mesmo correndo o risco de ser incompreendido. O juiz, essa tem sido a tônica das minhas decisões, não deve decidir conforme o desejo da maioria, mas à luz do caso concreto, sem olvidar a necessidade de que as suas decisões, ex vi legis, devem ser fundamentadas. É que, nesse cenário, ele não pode quedar-se inerte diante de violações ou ameaças de lesão a direitos fundamentais.

O juiz, no processo penal – que é o que interessa para essas reflexões – não deve ter atuação política, mas constitucional, que se consolida à medida que, com as suas ações, protege direitos fundamentais, ainda que nesse desiderato tenha que adotar posição contrária à maioria.

É de Ferrajoli a lição: “o objetivo justificador do processo penal é a garantia das liberdades do cidadão”. Francesco Carnelutti, de seu lado, adverte que a prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, pois, assim como podem curar o enfermo, também podem lhe ocasionar um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia, e sobretudo com a anestesia geral, que é meio indispensável para o cirurgião, que, no entanto, dela não pode abusar.

Para encerrar, relembro que a dignidade da pessoa humana é o valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda ordem jurídica – constitucional e infraconstitucional.

É claro, e nisso estamos todos de acordo, que a sociedade precisa de proteção. Mas essa proteção que tenho proclamado não pode ser a qualquer custo. Para isso, as instâncias persecutórias haverão de desenvolver o seu desiderato, tendo com norte que o réu não é objeto, mas sujeito de direitos, reconhecimento que não implica afrouxamento  das ações de controle, que devem ser realizadas, sim, mas sem perder a  perspectiva de que a dignidade da pessoa humana não pode ser uma ficção.

 

COMPLACÊNCIA TÓXICA

Há pessoas que não têm boa percepção da realidade porque se contentam em apenas olhar o que está diante delas em vez de refletir profundamente sobre o que se apresenta diante dos seus olhos. Essa posição, puramente contemplativa em face da realidade, é que as conduzem a, por exemplo, votar em pessoas despudoradas, sem compromisso com as promessas que fazem, muitas das quais tendentes, pura e simplesmente, ao logro, à obtenção de vantagens de cunho pessoal, levando os incautos, sem a exata visão da realidade, a se contentarem apenas com percepção das sombras dessa mesma realidade. (Sócrates).

Conquanto me coloque na condição de uma pessoa comum, sei que, de certa forma, as minhas posições podem influenciar as pessoas. Por isso, não me limito, aliás, me recuso a ver apenas as sombras do que está em volta de mim.

Prefiro, ao reverso, encarar a realidade, olhá-la de frente, sem medo, sem receio, sem receio de expor as minhas inquietações, sem me importar com os que, numa visão reducionista da realidade, advertem, para estancar o pensamento, que juiz só fala nos autos, olvidando-se os críticos que juiz é componente da sociedade, que ele participa do seu acervo cultural e dos problemas que a envolvem, e que é um equívoco imaginar que exista juiz neutro, asséptico, acrítico ou inolente.

Esses críticos, é bem de ver-se, não se dão conta de que neutralidade, em relação aos magistrados, é uma inviabilidade antropológica (Zaffaroni). Nesse sentido, importa consignar, os que pensam que existem juízes neutros, apenas se enganam, pois, repito, antes de ser magistrado, somos todos partícipes das tendências sociais nas quais nos achamos envolvidos; pensar de forma diversa é imaginar que somos uma categoria de alienados.

Devo dizer, agora, em face do tema que escolhi para essas reflexões, que não tenho receio de, algumas vezes, parecer monocórdico ou monotemático por, aparentemente, insistir nos mesmo temas, pois, afinal, de rigor, múltiplos são os temas sobre os quais já expendi as minhas opiniões, as minhas inquietações, pois me incomoda, como disse acima, a posição meramente contemplativa, imberbe (sentido figurado), neutra, passiva, anódina e acomodada diante da realidade.

A verdade é que, reconheçamos, a realidade que testemunhamos nos últimos tempos tem nos impelido a, muitas vezes, tratar, até com certa frequência, dos mesmos temas, daí que não me recuso fazê-lo, afinal, como diz Caetano Veloso, está tudo fora de órbita. Aliás, no Brasil, desde o descobrimento, tudo parece estar mesmo fora de órbita. Por isso insisto em refletir sobre temas aparentemente reiterados, os quais, no entanto, têm a sua relevância em face do momento em que estamos vivendo.

Importa anotar nesse panorama – e aqui avanço, definitivamente, na direção do tema que elegi para meditar -, como tenho destacado em vários artigos e/ou crônicas, que tendemos a ser complacentes, quando nos convém, com os desvios de conduta, se eles, de alguma forma, nos dizem respeito.

Essa tem sido, infelizmente, uma realidade que se descortina sob os nossos olhos, olhos que assimilam – e aceitam com benevolência, como indisfarçável condescendência –  as condutas heterodoxas, dependendo do autor do desvio, dependendo dos nossos próprios interesses.

Penso, com efeito, que, para alguns críticos contumazes da conduta dos “outros”, a realidade tem  cores diferentes se os desvios de conduta são de pessoas pelas quais têm algum apreço, e/ou quando, de alguma forma, são beneficiários (os críticos) desses mesmos desvios. Nesse cenário, o que se constata é que os desvios de conduta são assimilados como práticas, digamos, normais, desde que não sejam as práticas dos nossos vizinhos; esses, sim, merecem ser censurados, quando não condenados, quando agem em desacordo com os valores morais que cultivamos ou deveríamos cultivar.

Tenho qualificado esse tipo de atitude de complacência tóxica. Os efeitos danosos dessa conduta compassiva são imensuráveis, desastrosas mesmo, para o conjunto da sociedade, porque, com ela, terminamos por sedimentar na sociedade o sentimento de que a vida é mesmo assim, que é preciso relativizar, também, as condutas morais, premissa a partir da qual terminamos por influenciar os caminhos das novas gerações.

A capacidade que temos de apontar nos outros os defeitos que não vemos – ou preferimos fingir não ver – nas pessoas que estão no nosso entorno e que deveriam ser desencorajadas de seguir na direção errada, é, além de tóxica, perversa, pois estimula a formação de uma geração de oportunistas, para a qual o céu é o limite.

Tenho dito, repetidas vezes, que não adiantA sentar numa mesa de bar, numa roda de amigos, num ambiente familiar e criticar a ação nefanda de políticos que tomaram de assalto o Estado brasileiro, para, no mesmo passo, fazer vista grossa em face das condutas desviantes e condenáveis daqueles que estão próximos de nós, ou pelos quais nutrimos simpatia, como fizeram, por exemplo, Artur Azevedo, Raul Pompeia e Jorge Amado, que foram defensores ardorosos do nefasto autocrata  Floriano Peixoto (Schmidt, Paulo, “Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes da República, Leya, 2016-02-26T03:00:00+00:00. ibooks).

A esperança que tenho é de que operações como a Lava-jato sirvam para diminuir o ímpeto dos que ascendem ao poder, em face é de uma outorga popular, para, nele, poder, promoverem toda sorte de falcatrua. Todavia, antes, precisamos fazer a nossa parte. Precisamos preparar as gerações futuras para se insurgirem contra essas práticas nefandas, sem discriminar os seus, condenando-os indistintamente.

Devemos, sim, nos unir numa cruzada, definitiva e moralizadora, contra os desvios de conduta, seja das pessoas que estão próximas de nós, seja dos que estão distantes dos nossos olhos ou pelos quais tenhamos alguma simpatia, desestimulando, na medida do possível, as gerações futuras de seguirem os passos dos que condescendem com os desvios de conduta.

É isso.

EM UM MINUTO TUDO PODE MUDAR

David Lurie é um professor universitário, de meia-idade, 52 anos, divorciado, que divide o seu tempo entre o desânimo das aulas que ministra – se dedica à fruição dos grandes livros e da música erudita, com emprego na Universidade do Cabo, África do Sul – e as satisfações momentâneas que lhe proporcionam uma prostituta chamada Soraya.

David, determinado dia, sem nenhum pudor, sem controle, sem medir as consequências, se envolve com uma aluna da universidade onde leciona, de cujo envolvimento, tornado público pela própria aluna, resulta a sua demissão, vindo, em decorrência, a perder os amigos e a reputação.

Sem rumo e sem perspectiva, decide passar uns dias na propriedade rural da filha, Lucy. Lá, para completar a mudança definitiva do curso da sua vida, testemunha uma tragédia: a casa dela é invadida por três assaltantes, os quais, ademais, a estupram.

Esses dois acontecimentos, esses fatos marcantes, interligados, que modificam, definitivamente, a forma de viver e de ver a vida de David Lurie, foram apanhados do romance Desonra, a obra mais festejada de J.M. Coetzee, de 1999, os quais são a minha inspiração para reflexões que pretendo desenvolver neste artigo.

O que traduzem esses dois fatos da vida e quais as lições que podemos deles apreender? Atrevo-me responder: que uma atitude impensada, uma ação descontrolada, pode, sim, num minuto, mudar a nossa vida. Esses fatos nos ensinam, ademais, que é preciso estar atentos às armadilhas que a vida nos apresenta, para as quais quase nunca estamos preparados.

A realidade, nada obstante, é que, em face das ciladas que a vida nos prepara, quase nunca estamos preparados, mas que, dependendo das circunstâncias, como o mínimo de prudência, com um pouco de sensatez, podem, sim, ser evitadas – as armadilhas – ou superadas – as ciladas.

No primeiro episódio, a responsabilidade, é cediço concluir, é unicamente do personagem do romance em comento, que, sem controle e sem pudor, se envolve com uma menor, aluna da Universidade na qual lecionava e de quem era professor, mas que poderia, sim, com o mínimo de controle, de prudência e discernimento, ter evitado.

Quanto ao segundo evento – assalto e estupro de sua filha -, é forçoso reconhecer que a ele não se pode imputar a responsabilidade pela ocorrência, e nem tinha mesmo condições de evitá-lo, dado que aqui registro apenas à guisa de ilustração para deixar consignado que nem tudo depende só da nossa vontade, da nossa prudência.

O certo é que algumas armadilhas e/ou ciladas da vida não podemos evitar, como no caso do assalto, seguido de estupro, que teve que testemunhar o professor David; outras, querendo, como um pouco de força de vontade, podemos, sim, evitar, conquanto não o façamos, muitas vezes, por absoluta falta de controle moral, por incapacidade que muitos  de nós temos  de acionar, quando necessário,  os freios morais que cada um deve ter para essas armadilhas/ciladas, como se deu com o protagonista do romance, que, podendo evitar, não o fez, deixando-se envolver com uma estudante menor de idade.

O que pretendo trazer à reflexão, definitivamente, é que não é razoável, não é racional, conquanto compreensível, não evitar o protagonismo de fatos que podem ser evitados, que só dependem de nós, sobre os quais temos – ou deveríamos ter – controle, como se deu no primeiro episódio – envolvimento com a estudante menor de idade -, do qual resultaram transtornos vários ao eminente professor universitário.

O certo é que, em face do que podemos evitar, é preciso sempre agir com muita prudência, acionar os mecanismos de controle, agir com discernimento, pensando e contando até um milhão de vezes, antes de tomar uma decisão que possa mudar o rumo da nossa vida, que venha em detrimento da nossa paz, que possa nos conduzir pelos caminhos que nos levam ao desespero, à inquietude, à decrepitude moral.

O personagem do romance, num ímpeto, sem refletir, envolve-se com a pessoa errada, paga o preço do erro, é expulso da universidade, joga na lama o seu nome, voltar a viver com a filha com quem tem uma relação conflituosa, e, ainda por cima, testemunha o seu estupro, acontecimento que, sói ocorrer, marcam definitivamente a sua vida, a sua história, a sua honra.

O que há de se ponderar, definitivamente, não custas redizer, que é mesmo o que importa para essas reflexões, é que há acontecimentos que só dependem de nós para evitá-los e que, por não ter a capacidade de evitá-los, teremos que arcar com as consequências da estupidez de não ser capaz de nos impor limites.

Nenhum de nós, é claro, tem o poder de prever o futuro. Não sabemos, portanto, que nos ocorrerá daqui a um minuto. Por isso, convém evitar as ações impensadas, porque essas dependem só de nós e delas podem resultar, até, a ruptura com a nossa própria história.

Assim agindo, com os pés no chão, com as peias em ação, refletindo sempre, ponderando a todo instante, podemos evitar que as consequências de uma ação impensada possam infernizar a nossa vida e das pessoas que estão em nosso entorno sobre as quais os efeitos das ações impensadas se irradiam, fazendo-as sofrer na mesma medida.

PENSE NAS COISAS PEQUENAS E SERAS FELIZ

Ouvi, muitas vezes, de pessoas que tinham alguma ascendência sobre mim, que, na vida, para vencer, era preciso pensar grande. Pensar grande na visão dessas pessoas, é almejar mais, sempre mais, pouco importando os meios que nos levem a alcançar esses objetivos. Em outras palavras: era preciso ser ambicioso, agir sempre com determinação para alcançar mais, muito mais, deixando claro, nesses ensinamentos, que, para ir além, o céu seria o limite.

Eu, felizmente, nunca assimilei essas lições. Eu sempre pensei miúdo, no sentido de que sempre fiz as coisas com os pés no chão, sempre me conformei com pouco. Nunca pretendi ir além do que fosse possível alcançar. Meu horizonte nunca foi muito distante, o que, claro, deve ser uma deformação da minha personalidade. Sempre almejei o básico para sobreviver com dignidade. A mim me bastava uma família e condições materiais para lhe oferecer o mínimo de conforto.

É claro que, por pensar assim, durante muito tempo, vendo a ascensão dos ambiciosos, dos que pensavam grande, passei algum tempo me penitenciando, com a sensação de ser um tolo, um estranho no mundo de competição, onde os mais espertos, os mais atilados, os mais ambiciosos e destemidos sempre levam vantagens.

Ficou em mim, nesse cenário, a sensação, como uma penitência, de que podia ter ido além e que, por ser covarde, fiquei sempre aquém. Nesse sentido, durante muito tempo me senti perseguido por esse sentimento. Hoje, no entanto, amadurecido, vejo, conformado, que, sem ambição, fui além do que podia imaginar, na certeza, agora, de que, sendo como sempre fui, sou mais feliz.

Aprendi, também, com a vida, a sublimar as coisas mais simples, a não me agastar excessivamente com os problemas do mundo, a fixar a minha visão nas coisas singelas, a curtir os momentos mais simples: ouvir música, ler um livro ou assistir a um filme, sem, no entanto, ser alienado.

Ao invés de me agastar com os problemas para cuja solução não posso sequer dar a minha contribuição, procuro curtir os momentos que reservo  à convivência familiar, ao meu e-books, ao meu tablet, a minha biblioteca, ao meu quarto de dormir, a um passeio, no final de tarde, num shopping, uma viagem com a família.

No mesmo passo, como disse acima, descuro, abstraio as coisas grandes, aquilo que não posso alcançar, o que não posso resolver, limitando-me a olhar em volta e pensar nas coisas simples da vida, buscando usufruir apenas do que sei que posso alcançar com o fruto do meu trabalho, para não ter que cair na tentação que tem levado muitos à desmoralização pública.

Essas reflexões nunca vêm por acaso. Elas quase sempre surgem de uma leitura que realizo e da qual sempre procuro tirar uma lição, além do prazer que decorre, naturalmente, de estar lendo.

A inspiração para esse artigo, especificamente, veio de um romance que acabo de ler, cuja passagem que me impeliu à reflexão menciono a seguir.

Theo, filho do protagonista Henry, no romance Sábado, de Iam McEwan – romancista inglês dos mais conhecidos de sua geração, autor, dentre outros, dos romances Serena, O Inocente, O Jardim de Cimento, Reparação e Solar -, em determinado momento de um diálogo com o protagonista, soltou um aforismo que foi ao encontro do que penso hoje. Disse, com efeito, que, quanto mais abrangente é o nosso modo de pensar, mais tudo parece escroto.

O pai dele, em face disso, pediu-lhe que explicasse melhor, e ele disse:

— Quando a gente olha para as coisas grandes, a situação política, o aquecimento global, a pobreza do mundo, tudo parece mesmo horrível, nada está melhorando, não há nada de bom para esperar. Mas então eu penso nas coisas pequenas, próximas… sabe como é, uma garota que acabei de conhecer, ou essa música que a gente vai tocar com o Chas, ou brincar na prancha de esquiar na neve, no mês que vem, e aí parece ótimo. Então, o meu lema será este: pense nas coisas pequenas (McEwan, Ian. “Sábado.” Companhia das Letras. eBooks). 

Claro que é impossível, no sentido pregado na obra ficcional, a gente se desligar, definitivamente, dos grandes problemas nacionais, tais como a corrupção que assolo e destrói a nossas esperanças, levando a reboque os nossos sonhos, do descredito das nossas instituições e dos nossos representantes, da violência que grassa, da malandragem dos que, no poder, o exercem sem controles morais, pois isso só seria possível se assumirmos a condição definitiva de alienados; e, se assim procedêssemos, seria como que entregar de vez o país aos espertalhões, que, é fácil constatar, só pensam em seus interesses.

Mas é possível, sim, desviar o pensamento dos grandes problemas nacionais e, até internacionais, para sublimar as coisas pequenas que são as que nos  trazem felicidade.  como, por exemplo, um almoço em família ou uma roda de bate-papo com as pessoas para as quais destinamos os nossos afetos.

COMO UM GATO, NÃO CEDO AO PRIMEIRO AFAGO

 

un-gato-bebe-433Tenho dito, sem surpresa, para os que me conhecem, que não sou do tipo que se entrega ao primeiro afago, ao primeiro aceno. Esse é um traço da minha personalidade que muitos não compreendem. Assim sendo, se deixo transparecer que me entreguei, pode ser – e na maioria das vezes é mesmo -, uma entrega apenas aparente. Nessas questões sou muito resistente. Se é certo ou errado não sei dizer. Sei, no entanto, que, se me entrego mesmo, sou levado ao paroxismo, quase sem meio-termo; sou intenso, tenaz, incondicionado. Antes as os ditames do coração sou quase sem limites, impetuoso, sem perder a racionalidade.

A vida – pessoal e profissional – me ensinou a ser assim, a ter cautelas nas minhas relações, por isso pareço – e sou mesmo – do tipo ermitão, ensimesmado, opção de vida que fui compelido a fazer, depois de mais de trinta anos lidando com criminosos dos mais variados matizes, em cuja lida deparei-me, muitas vezes, com acusados que supunha, num primeiro e precipitado olhar, ser culpados, mas que eram inocentes, conquanto do tipo repulsivos, aparentando ser o que não era, me levando, como levaria qualquer um, a equívocos que conduzem um juízo precipitado.

Lado outro, a justificar o meu ressabiamento, deparei-me com acusados que imaginei inocentes, do tipo de afago fácil, conquistador, envolvente, mas que, ao fim e ao cabo, era culpado, os quais, constatei depois, tratava-se mesmo de pessoas dissimuladas, forjadas para enganar, escamotear, fingir, ludibriar, dessas com as quais todos nos deparamos por aí, cuja maior “virtude” é a capacidade de passar as penas do semelhante.

Com esses tipos extremados e enganadores aprendi muito do que sei da vida. Aprendi, nesse mundo, que a condição de juiz nos ensina a confiar desconfiando, a crer descrendo, procurando, no entanto, apenas por prevenção, sem amarguras, pois o homem existe mesmo é para provocar em nós esse sentimento contraditório que só ele é capaz de proporcionar, conviver amistosamente, mas com a cautela necessária.

Por ter vivido intensamente os momentos marcantes que me foram proporcionados pelo meu trabalho e por ter, no mesmo passo, me defrontado com as personalidades mais díspares e mais surpreendentes, é que, como uma defesa, aprendi a agir com cautelas nas minhas relações, sem me deixar envolver pelo primeiro aceno, sem me deixar impressionar com o primeiro gesto, sem me precipitar na primeira avalição, para não julgar precipitadamente, afinal, como tenho reafirmado, do ser humano se pode esperar qualquer coisa.

Reluto, olho, tergiverso, vou adiante ou dou um passo à frente, para, só depois, sedimentar as minhas relações. Reflito, pois, com muita intensidade, para, só depois, me entregar; entrega que, muitas vezes, se verifico tibieza no interlocutor, nem se concretiza definitivamente; mas se ela se concretiza, rompidas todas as barreiras, explodidas todas as pontes, vou ao extremo, me entrego por inteiro.

Como um gato, portanto – diferente do cão -, tenho uma enorme dificuldade para me afeiçoar ao estranho. Aliás, como os gatos, nem consigo mesmo me afeiçoar aos estranhos, por isso me identifico muito com esse animal, por quem tenho paixão, adoração. E quem não os conhece imagina, equivocadamente, tratar-se de um animal frio e calculista, dado a traições, o que, definitivamente, é um equívoco; equívoco que só se dissipa depois que se convive com eles, que são dóceis, amáveis, carinhosos, brincalhões, amigos, mas tudo na medida certa, sem exageros, sem fingimentos, daí a minha identificação com o bichano.

Não sou mesmo, repito, do tipo simpático, entregue ao primeiro afago. Aliás, tenha até uma certa restrição ao primeiro fago; tenho sempre a perturbadora sensação de que ele pode ser meramente protocolar – e, na maioria das vezes, é mesmo -, por isso prefiro primeiro a cautela para só depois, consolidar a relação. Preservo, nas minhas relações, uma distância de prudência, distância e prudência que me permitem me proteger dos afagos oportunistas.

É muito difícil para mim me apresentar como a pessoa que não sou. Por isso nunca trago as pessoas enganadas sobre mim. Nesse sentido, que tem que se decepcionar comigo o faz logo no primeiro momento, no primeiro contato, pois não sei dissimular.

Às vezes, na ânsia de ser simpático, forço a barra, até tento ser o que não sou verdadeiramente, apenas para preservar a fidalguia, o relacionamento. Mas não vendo essa falsa percepção de mim mesmo por muito tempo. Logo me revelo por inteiro. Em mim, devo dizer, causa até uma certa irritação o afago desmedido, os elogios obsequiosos, a conivência oportunista, o excesso de mesura, os gestos que parecem excessivos.

Quiçá em face da equivocada ideia de que gato deve ser desprezado por ser um animal ensimesmado, Albert Camus narra no livro A peste o comportamento de um dos personagens que, todos os dias, depois do almoço, nas horas em que a cidade inteira cochilava no calor, um velhinho aparecia numa varanda do outro lado da rua, com os cabelos brancos e bem penteados, ereto e austero nas suas roupas de corte militar, chamava os gatos com um “bichano…bichano” ao mesmo tempo meigo e distante. Os gatos, prossegue a narrativa, levantavam os olhos pálidos de sono, sem se perturbarem. O outro rasgava pedacinhos de papel e os jogava na rua; os bichos, atraídos por essa chuva de borboletas brancas, avançavam para o meio da calçada, estendendo uma para hesitante para os últimos pedaços de papel. O velhinho malvado escarra, então, sobre os atos, com força e precisão. Se um dos escarros atingia o alvo, ele ria. Para infelicidade do velhinho ranzinza, quando mais ele precisos dos gatos, em face da enormidade de ratos que apareceram durante a epidemia, eles tinham desaparecido. Não havia gatos para os ratos e nem para servirem de alvo para os escarros do personagem. (Albert Camus, ebook)

A lição se pode tirar do episódio, se comparado com o jeito esquisito de algumas pessoas, cautelosas, arredias como um gato, é que não se deve julgá-las e nem escarrar sobre elas as suas iras, apenas porque elas não são como gostaríamos que fossem.

 

DE SACO CHEIO

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“[…]Essa história de que, por ser magistrados, somos ricos é uma pecha que incomoda, que enche o saco, que estigmatiza, tanto que, por pensar assim, parcela expressiva da sociedade, nos distingui – distinção que incomoda -, algumas vezes, com a venda de bens ou serviços por valores inflacionados, em face dessa equivocada impressão de que somos ricos e sem limites para gastar[…].

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O título que dei a esse artigo decerto que pode até não ser o mais apropriado, o mais condizente. Mas foi o que achei que podia traduzir com mais fidedignidade como me sinto em face do tema que escolhi para as minhas reflexões de hoje.

Devo dizer, inicialmente, que não é pecado ser rico. Juntar bens materiais não é, numa sociedade capitalista, nenhum pecado. Pecado mesmo – para não dizer crime – é amealhar bens materiais ilicitamente, desviando verbas públicas, fazendo negócios espúrios, recebendo propina, vendendo decisões, passando a perna nas pessoas.

Amealhar bens materiais com dignidade, com o fruto do trabalho, honestamente, sem achacar o semelhante, é algo que deve, até, ser enaltecido, afinal, para enriquecer, além de trabalhar, tem-se que ter habilidade e sorte para esse fim. Ninguém deve ser condenado, portanto, por ser rico, por viver bem, em face dos bens que conseguiu, pagando os seus impostos, vivendo, enfim, com dignidade.

Faço essa digressão apenas para dizer que, não sendo rico, vivendo apenas com os meus estipêndios, vivendo como vivem os que são bem remunerados, mas sem ostentação, se esnobismo, até modestamente, estou de saco cheio de tanto ouvir, por onde passo, nas compras que faço, nos ambientes que frequento, que desembargador é rico e que, por ser rico, não deveria ter restrições para comprar e nem deveria pechinchar.

Devo dizer, como um desabafo, que isso é uma falácia, que ninguém enriquece sendo juiz ou desembargador, pela elementar razão de que, se é verdade que somos bem remunerados, a considerar a nossa realidade, nenhum de nós, que não tenha herdado, que não tenha casado com consorte rico ou que não tenha ganhado na loteria, não pode, não tem como ser rico, se viver somente dos valores que percebe a guisa de remuneração.

Essa história de que, por ser magistrados, somos ricos é uma pecha que incomoda, que enche o saco, que estigmatiza, tanto que, por pensar assim, parcela expressiva da sociedade, nos distingui – distinção que incomoda -, algumas vezes, com a venda de bens ou serviços por valores inflacionados, em face dessa equivocada impressão de que somos ricos e sem limites para gastar.

Dia desses, conversando com os amigos a propósito das dificuldades financeiras pelas quais passa a expressiva maioria do povo brasileiro, ouvi deles que problema financeiro só quem não tem são os políticos e magistrados, e que estes com os salários em torno de 100 mil reais, não tinham do que se queixar, o que, convenhamos, é uma equivoco, uma maldade, uma grosseria que incomoda, pois nos coloca numa situação delicada diante de tantas dificuldades pelas quais o semelhante passa nos dias atuais.

Vou reafirmar, para que não se tenha mais dúvidas: nenhum juiz ou desembargador que viva apenas do salário pode ser rico, porque, simplesmente, ninguém que ganhe o salário que percebe um magistrado pode, de rigor, enriquecer, a menos que tenha a capacidade de multiplicar os pães ou que tenha obtido bens  por outro caminho que não seja os referentes aos seus ganhos mensais.