ESPAÇOS DE RACIONALIDADE

Há uma velha e conhecidíssima lição de Rui Barbosa, segundo a qual Justiça tardia não é justiça, senão que injustiça qualificada e manifesta.

A Constituição Federal, copiando o que já era regra no Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispõe que a prestação jurisdicional será prestada em prazo razoável, exatamente para que as decisões judicias serôdias não se constituam, como, de fato, têm se constituído, numa manifesta injustiça, como bem assinalado pelo ilustrado baiano.

Todavia, não basta a Constituição prescrever e erigir à condição de direito fundamental a duração razoável do processo para que o cidadão, como num passe de mágica, tenha acesso a uma ordem jurídica justa (Kazuo Watanabe); tanto que, apesar do comando constitucional, o cidadão que precisa do Poder Judiciário deve estar ciente de que vai esperar por um longo tempo para uma solução, ainda que se trate de questões de menor relevância.

A realidade é que, em face dos nossos conhecidos problemas estruturais, o sistema de resolução dos conflitos pela via jurisdicional não tem alcançado os seus objetivos, disso resultando que, a depender de uma solução adjudicada, não chegamos à tão sonhada pacificação social, que, afinal, é a finalidade da lei, do Direito e a razão da existência do Poder Judiciário.
Diante dessa realidade insofismável, que, por vezes, resulta na quebra da credibilidade do Poder Judiciário, tenho para mim que somente uma mudança definitiva de cultura terá o poder minorar os nossos problemas.

Nessa direção, ou seja, da necessária mudança de cultura, o Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2010, editou a Resolução 125, com o escopo de organizar, nacionalmente, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, mas também os serviços que envolvam os meios alternativos de solução de conflitos, especialmente os consensuais, como a conciliação e a mediação.
Apesar do tempo decorrido da edição da referida Resolução, constato que não são poucos os que ainda optam, desnecessariamente, pelo via adjudicada para resolução dos conflitos, resistindo às vias alternativas para solucioná-los, mesmo após o advento do Novo CPC e ainda que saibam que a judicialização, definitivamente, não é o caminho mais racional nesse sentido, em face, sobretudo, do excesso de demanda nos Tribunais, a inviabilizar a tão sonhada razoabilidade de tempo na entrega do provimento jurisdicional.

Nesse panorama, “para que o Sistema Judiciário como um todo possa cumprir o seu papel com eficiência e em tempo razoável, deve ser reservado ao Poder Judiciário, fundamentalmente, causas mais significativas que exijam o controle de legalidade nos casos de lesão ou ameaça de lesão a direitos. ”(Roberto Portugal Bacellar, in Integração de Competências e Mudança de Cultura para o Desempenho das Atividades de Conciliador e Mediador).

É preciso reafirmar algo que todos nós que militamos na esfera judicial já sabemos há bastante tempo: é falsa a conclusão de que de somente uma sentença aplicando a lei ao caso concreto, de cuja disputa resultam sempre vencedores e vencidos, pacifica a sociedade.

A tão almejada pacificação social, é preciso ter presente, não se alcança, necessariamente, com uma sentença. Desde a minha compreensão, ela só tenderá a ser alcançada quando as pessoas forem capazes de sentar a uma mesa de negociação, nos ambientes próprios para essa finalidade, que tenho denominado de espaços de racionalidade, onde as partes se empoderam, assumem as rédeas do seu destino, resolvem por si os seus problemas, cedendo aqui e ganhando acolá.

É preciso ter em linha de conta que, numa disputa de interesse em face de uma pretensão resistida, com duas partes em disputa, litigando com todas as suas forças, quando um ganha e a outra necessariamente perde, a tão sonhada pacificação social se transforma numa quimera.

Como leciona a saudosa professora Ada Pellegrini Grinover, a pacificação social “não é alcançada pela sentença, que se limita a ditar autoritativamente a regra para o caso concreto, e que, na grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela costuma insurgir-se com todos os meios na execução; e que, de qualquer modo, se limita a solucionar a parcela de lide levada a juízo, sem possibilidade de pacificar a lide sociológica, em geral mais ampla, da qual aquela emergiu, como simples ponta do iciberg”(in Os Fundamentos da Justiça Conciliativa).

Diante da constatação de que somente pela via consensual conseguiremos resultados que condigam com a tão sonhada pacificação social é que, no Tribunal de Justiça do Maranhão, na condição de presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, tendo o luxuoso e determinado auxílio do colega Alexandre Lopes Abreu e de uma equipe dedicada de funcionários, além do apoio inexcedível do presidente José Joaquim Figueiredo dos Anjos e do Corregedor Marcelo Carvalho Silva, temos implementado uma política arrojada de estímulo às vias alternativas de solução de demandas, disponibilizando aquilo que tenho denominado de espaços de racionalidade, que são os nossos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, nos quais, com profissionais qualificados, buscamos solucionar, pela via consensual, os litígios que decorrem da vida em sociedade, na certeza de que, com isso, damos a nossa contribuição para uma vida menos conflituosa.

É isso.

O JULGAMENTO DO SEMELHANTE A PARTIR DAS NOSSAS PRÉ-COMPREENSÕES

As maiores e mais instigantes experiências que tive no exercício do múnus público, como promotor de justiça e magistrado, foram as que resultaram do meu convívio com os seres humanos dos mais diversos matizes.
Dessa convivência enriquecedora, a grande lição que assimilei foi a de que do ser humano podemos esperar tudo, uma vez que, todos haverão de concordar, ele não cansa de se superar. Nesse sentido, quando pensamos já ter visto de tudo, o ser humano, para surpreender, aparece com alguma novidade.
Ante essa elementar constatação de que o ser humano vive para surpreender, é que o legislador deve estar sempre atento, pois, afinal, as novas figuras típicas aparecem exatamente em face da capacidade que o homem tem de inovar nas trapaças, de se superar nas suas ações.
Outra lição que assimilei nessa convivência com pessoas das mais variadas colorações é quanto à incapacidade que temos de incursionar sobre a alma do ser humano.
Dessa incapacidade resulta que, na nossa convivência com o semelhante, julgamos, precipitada e impiedosamente, a sua conduta, mesmo que seja necessário perceber as razões pelas quais ele agiu assim e não assado.
Às vezes, nas conversas informais, digo que a minha especialidade, depois de mais de trinta anos convivendo com criminosos dos mais diversos perfis, com testemunhas e com profissionais do direito das mais diversas colorações, é conhecer gente, para, em seguida, racionalmente, concluir ser essa uma tarefa quase impossível.
Digo isso porque, na verdade, conhecer a alma do ser humano é tarefa quase impossível mesmo para os profissionais que se prepararam para essa faina, pois, afinal, como diz o ditado popular, o lobo pode perder os dentes, mas a sua natureza jamais.
Diante dessa constatação, sou forçado a reconhecer que, apesar do tempo de convivência com pessoas dos mais diversos perfis, nem eu e nem ninguém é capaz de dizer, verdadeiramente, que conhece o ser humano.
E isso é fácil de constatar, posto que os exemplos dessa impossibilidade permeiam a nossa vida.
Com efeito, nos mais diversos ambientes somos instados, a toda hora, a reafirmar a nossa incapacidade no que diz respeito a conhecer o ser humano. Logo, essa é a razão de nos surpreendermos, a cada momento, com reações de congêneres que imaginávamos não ser possível.
Por isso, invariavelmente, diante da notícia dessa ou daquela atitude do ser humano, tomados de surpresa, costumamos, numa exclamação, simplesmente dizer: “Não é possível!”.
Apesar das dificuldades que todos nós temos de conhecer o semelhante, insistimos, por teimosia ou necessidade, nessas tentativas quase vãs. E o que é ainda mais grave: insistimos em julgá-lo, mesmo sem dever fazê-lo, porque, efetivamente, não somos capazes mesmo de conhecer a alma de ninguém; às vezes, até a nossa própria alma nos surpreende.
A verdade é que, reconheçamos, temos por hábito julgar o ser humano, apesar de não conhecê-lo.
Eu, você, todos, enfim, estamos sendo submetidos, a todo momento, aos julgamentos do semelhante. E, o mais grave, é que somos julgados, sempre, a partir das idiossincrasias de quem nos julga; e, da mesma forma, agimos em relação ao semelhante a partir das nossas pré-compreensões.
Não há uma só ação de um ser humano que não passe pelo filtro censório de outro ser humano.
Para julgar um colega, um vizinho, um irmão, um desafeto, temos sempre o espírito atilado, como se fossemos capazes, insisto na afirmação, de conhecer a alma das pessoas que julgamos.
Mas é preciso ter presente, e digo isso em face da minha experiência de vida e não em face de qualquer conhecimento teórico acerca do tema, que, para julgar um semelhante com grande probabilidade de minimizar os erros de avaliação, só se fôssemos capazes, o que não somos, de ver o mundo a partir dos seus olhos.
O mundo que meu semelhante vê sob os seus olhos não é, definitivamente, o mundo que vejo, disso resultando que quando me atrevo a julgar uma atitude do semelhante, eu o faço com grande possibilidade, quase inevitável possibilidade, de julgá-lo muito mal. Daí porque, quase sempre, cometemos injustiça quando nos atrevemos a condenar essa ou aquela atitude do semelhante, à vista do que os nossos olhos enxergam.
É por isso que se diz que, diante de um fato, a lente, os olhos do intérprete fazem a diferença.
Diante do mesmo fato, da mesma atitude, dependendo da posição do intérprete, podemos ter compreensões diferentes.
Para ilustrar como o homem, julgando o ser humano a partir da sua lente, da sua visão de mundo, pode cometer injustiça, cito o exemplo a seguir:
Um soldado americano foi condecorado por ato de bravura, na Guerra do Vietnã, e expulso das forças armadas americanas por sua orientação sexual.
É dele a frase definitiva e que bem retrata o que pretendo refletir nessas linhas:
“Por matar vários homens fui condecorado; por amar um homem fui expulso das forças armadas”.
O mundo visto pela lente do soldado, como se vê, diferia, diametralmente, do mundo visto pelos olhos dos seus comandantes, tendo sido ele julgado não em face do mundo que seus olhos enxergavam, mas pelo mundo que enxergavam os olhos dos seus superiores.
É isso.

A PLEA BARGAIN EM DISCUSSÃO

Está na ordem do dia uma proposta do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, para viabilizar a introdução no Brasil da plea bargain, que nada mais é que um modelo por meio do qual o acusado aceita se submeter a uma pena, sem processo, em condições, digamos, vantajosas, assumindo, de logo, a autoria do crime.

Esse modelo, de origem na common low, é popular nos Estados Unidos, de onde se pretende fazer a importação para o Brasil, convindo anotar que, mesmo na América, ele não passa ao largo de questionamentos, em face dos números que evidenciam a sua propensão para injustiças.

Com efeito, segundo noticiou o jornal O Globo, do último dia 03 de fevereiro, em pelos menos 25% das condenações revertidas em 2017, nos Estados Unidos, os réus que cumpriam penas tinham se declarado culpados, a evidenciar os furos do modelo, mesmo numa nação de primeiro mundo, com instituições muito mais estruturadas e em condições de prestar um serviço mais acurado que as instâncias de controle brasileiras.

A pergunta que se faz, então é a seguinte: se nos Estados Unidos o modelo proporciona injustiças, levando inocentes à cadeia, que é tudo o que não desejamos, o que esperar da aplicação desse mesmo modelo no Brasil, onde as agências de controle agem de forma deficiente e, principalmente, discriminatórias, cujas ações estão voltadas, como regra, para oprimir os miseráveis selecionados pelo sistema penal?

A verdade é que punimos pouco, e o pouco que punimos o fazemos muito mal, não só em face da seletividade do sistema, mas, sobretudo, porque todos nós sabemos que as provas amealhadas no ambiente judicial são quase sempre caudatárias do que se produziu em sede preliminar (inquérito policial), contaminadas, muitas vezes, pelos mais diversos vícios de procedimento e de produção, cujas consequências se traduzem em erros judiciários só excepcionalmente reparados.

Nessa realidade, é forçoso reconhecer que não são poucos os que são punidos com a conivência das instâncias persecutórias, quase sempre em face de “provas” obtidas nos inquéritos policiais, as quais, de regra, por opção do órgão acusador, são apenas repetidas em sede judicial, sem maiores rigores críticos, empoderando, perigosamente, as instâncias persecutórias primárias.

Vou mencionar apenas dois exemplos da falibilidade/fragilidade do sistema, para demonstrar o quão perigosa é a adoção, por essas plagas, da plea bargain, sem descurar, claro, que os fatos narrados nos exemplos, pela proposta do Ministro Sérgio Moro, poderão não se enquadrar nos pressupostos autorizadores de uma solução negociada, mas que, ainda assim, têm sua utilidade para as reflexões que faço aqui e agora, como uma reafirmação incontestável de que, como diz o gigante Elio Gaspari, o Brasil convivo com leis suecas e com uma realidade haitiana.

Primeiro exemplo: um cidadão preso por trazer consigo uma pequena porção de maconha, se dos autos constarem depoimentos dos agentes públicos (policiais) de que tal diligência ocorreu devido a denúncias anônimas de que o réu seria conhecido como traficante, o indigitado, podem ter certeza, uma vez ratificadas as informações dos agentes estatais em sede judicial – e essa é a tendência -, será inapelavelmente condenado como traficante – e, quiçá, por associação para o tráfico – sem que seja exigida do órgão acusador, no caso o Ministério Público, a adição, ao acervo probatório, de qualquer outro dado que possa emprestar conforto às “provas” produzidas pela instância persecutória primária, ainda que a quadra fática possa ter sido tão somente fruto de uma vendeta dos agentes públicos, o que nunca pode ser descartado.

Outro exemplo. Nos crimes contra o patrimônio (roubo e furto, por exemplo), cuja principal testemunha é, quase sempre, o ofendido, qualquer pessoa suspeita da prática do crime poderá ser presa, processada e condenada, tendo por escopo probatório, como prova decisiva e definitiva, apenas a palavra do ofendido, desconsiderando-se, na maioria das vezes, a falibilidade da sua memória e outros vícios persecutórios, do que pode resultar, com muita probabilidade, uma condenação injusta, como temos testemunhado muitas vezes.

Nos dois cenários acima descritos, apenas a guisa de ilustração, conquanto admita-se a absoluta fragilidade persecutória, nenhum réu, ainda que não tenha cometido o crime, mas se sentido acossado, pressionado pelo sistema, escapara de uma punição, disso inferindo-se que, tenha ou não cometido o crime, acenada a possibilidade de um acordo para diminuição da reprimenda, ele tenderá, em face de sua situação de absoluta fragilidade ante o Estado acusador, sentar-se a uma mesa de negociação, em face mesmo de sua condição de miserabilidade, ciente de sua condição de alvo preferencial das agências de controle.

Nesse ambiente, creia, não vejo como transigir com a introdução entre nós da plea bargain, ante a perspectiva, sempre presente, de que muitos acordos poderão ser firmados com vícios de consentimento, em face mesmo da situação de absoluta fragilidade de um acusado ante a força persecutória do Estado, quase sempre desleal em face dos mais pobres.

É verdade que a plea bargain imprime celeridade às decisões, resultando dele, ademais, a economia de recursos e de tempo, em face, por exemplo, dos chamados crimes solitários, ou seja, praticados por uma só pessoa.

A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: em nome da celeridade, da abreviação do tempo, da economia de recurso, é possível a defesa de um sistema que tende a multiplicar os erros judiciários, a perpetuar a discriminação penal?

Impende anotar que não vejo, como alguns, sob a perspectiva da legalidade, a inviabilidade da adoção do sistema, pois, como sabido, nas questões afeitas aos Juizados Especais Criminais já é prevista a possibilidade de acordos.

Acho, da mesma forma, que nem a Constituição Federal e nem as leis ordinárias proíbem a plea bargain.

A minha análise se circunscreve tão somente às questões que condizem com as injustiças do sistema penal brasileiro, cujas ações persecutórias, porque seletivas, podem levar a injustiças, se o acusado for instado a aceitar um acordo, em face de uma acusação frágil a qual, muitas vezes, só se justifica em face da sua condição de miserável, da opção preferencial do sistema penal pelos mais pobres.

É isso.

A VITÓRIA DOS MELIANTES

O presidente da República editou um decreto que, na prática, facilita a posse de arma de fogo, uma das promessas de sua vitoriosa campanha.
Depois do decreto, o debate foi intenso – e continua aceso -, em face das consequências da facilitação da posse de armas de fogo para o conjunto da sociedade.
Nesse sentido, há antevisões/opiniões para todos os gostos, razão pela qual também me aventuro fazer algumas reflexões em torno do tema, em face do que entrevejo como consequência mais evidente do afrouxamento da posse de arma de fogo e, no futuro, do porte.
Por conta dos debates em torno das consequências do polêmico decreto, há os que apostam no aumento da criminalidade, sob o argumento – que flerta com a realidade – de que, quanto mais armas em mãos dos cidadãos, maior a probabilidade de violência, ainda que o decreto trate apenas da flexibilização da posse.
Há outros que, ao reverso, acreditam que, estando o cidadão de posse de uma arma de fogo – em sua residência ou em seu comércio, por exemplo -, o meliante pensará duas vezes antes de agir, disso decorrendo, por consequência, que a violência contra a pessoa e contra o patrimônio, por exemplo, tenderá refluir.
Noutros ambientes onde o mesmo tema é tratado, há os que entendem, numa outra perspectiva, que a posse de arma estimulará, dentre outras consequências danosas, a violência doméstica, antessala do feminicídio, tão presente nos dias atuais.
Para o meu espanto, ainda há, por outro lado, os que acham que a só liberação da posse de arma de fogo ainda é pouco para desestimular a prática de crimes. Nesse sentido, não são poucos os que almejam, ademais, a liberação do porte de arma de fogo, sempre sob o argumento de que, armando a população, a violência urbana tenderá a arrefecer.
Eu, cá do meu canto, com a experiência que acumulei, devo dizer, tão somente, que, quanto mais armas, mais crimes, e que, ademais, não acredito em solução mágica para enfrentar a criminalidade; como, de resto, ninguém de bom senso acredita.
Nesse panorama, a única certeza que tenho, numa visão diametralmente oposta aos que defendem a posse e o porte de arma de fogo, é que, quanto mais flexível o controle, mais crimes violentos serão praticados.
Desde o meu olhar, em razão da flexibilização da posse de arma de fogo – e do seu porte, no futuro -, numa análise bem particularizada da questão, a mais provável consequência que disso advirá é que ela passará, doravante, a ser o novo sonho de consumo dos meliantes, o novo objeto de desejo dos assaltantes, a potencializar a nossa exposição em face da criminalidade violenta.
Creiam – e espero muito estar errado -, logo, logo, os meliantes, que, antes, atacavam as pessoas nas ruas, nas paradas de ônibus, no comércio e nas residências em busca, preferencialmente, de aparelhos celulares e coisas que tais, flexibilizados o porte e a posse de arma de fogo, voltarão as suas ações, fundamentalmente, para a subtração desse espetacular instrumento de intimidação.
O que poderá resultar, portanto, da flexibilização que se almeja é que, em face dela, os meliantes serão contemplados com mais facilidades para o acesso às armas de fogo, para, depois, infernizarem a nossa vida, em cada logradouro público, em cada esquina da cidade, quando, numa outra perspectiva, o que é mais grave, não estiverem a serviço das organizações criminosas.
É claro, pois, desde a minha compreensão, que, o estar de posse – ou portando – uma arma de fogo, em vez de se traduzir em maior segurança ao cidadão, como, equivocadamente, pensam muitos, se traduzirá em mais violência, ante a perspectiva de que os facínoras serão os verdadeiros beneficiários da flexibilização em comento.
O problema da arma de fogo não é estar em poder – porte ou posse – das pessoas de bem, as quais, por óbvio, não vão sair por aí assaltando nem matando ninguém, salvo em situações excepcionais, mas em mãos de meliantes ou servindo às organizações criminosas, que serão, ao fim e ao cabo, os verdadeiros beneficiários das medidas que favorecem a posse e o porte de arma de fogo.
O tempo dirá se estou com a razão.
Todavia, espero, sinceramente, que a minha análise da questão esteja equivocada, e que, com mais armas em poder do cidadão, testemunhemos o refluir dos índices de criminalidade, no que, definitivamente, não acredito.
É isso.

A VERSÃO DO DIABO

Samuel Butler, escritor britânico, do século 19, disse, certa feita, que Deus escreveu todos os livros, mas ninguém se preocupou em ouvir a versão do diabo sobre o que realmente aconteceu. E assim, não foram poucos os que já tentaram decifrar o que efetivamente o escritor pretendeu dizer.

Os que circunscrevem a análise do seu pensamento sob o aspecto puramente religioso o fizeram apenas opondo Deus ao diabo, numa clara visão reducionista do seu pensamento.

Nesse sentido, há os que afirmam, por exemplo, que a frase traduz tão somente que Deus é a verdade, e o diabo, a mentira. Já outros concluem, simplesmente, à luz do pensamento do autor consolidado na frase, que o pensamento do diabo foi colocado de lado porque Deus não gosta dele. Além desses, há, também, os radicais que, por outro lado, concluem, tão somente, que ouvir a versão do diabo vai fazê-los queimar no inferno.

Como muitos já tiraram as suas conclusões sobre a pretensão do autor, penso que também posso apresentar as minhas, na certeza de que será apenas mais uma, no universo amplo e mais inteligente das que já foram apresentadas.

Pois bem. Cá do meu lado, entendo que uma das conclusões que se pode tirar do pensamento do autor é que ele pretendeu chamar a atenção para a necessidade de que, para se tirar uma conclusão, para se fazer um julgamento justo, devem ser ouvidos os dois lados, isto é, faz-se necessário que se estabeleça o contraditório, para que não julguemos as pessoas sem dar a elas a oportunidade de se contraporem à versão apresentada em seu desfavor.

É dizer: é preciso ter cuidado com os prejulgamentos, com os julgamentos precipitados, com as conclusões de chofre, pois, somente quando se oferece à parte contrária a possibilidade de se manifestar sobre tal ou qual assunto, é que se pode inferir, tirar uma conclusão tão justa quanto possível, pois, se assim é no processo, assim é na vida também. Logo, é preciso ter presente que uma coisa é o fato, ou seja, o que efetivamente ocorreu. Outra, bem diferente, é a versão, a impressão, a conclusão que outrem tira do fato, à luz de suas idiossincrasias.

Em face da inobservância dessas cautelas mínimas de convivência, é que, muitas vezes, somos julgados injustamente. E as pessoas, lamentável dizer, parecem ter uma especial capacidade de julgar antes de ouvir a parte contrária, antes de dar a ela o direito de sobre tal ou qual acusação se manifestar. E quando, finalmente, se dá ao imputado o direito de se contrapor às acusações, a malquerença, a má repercussão e a má impressão sobre a sua conduta já se instauraram. Aí, de nada adiante dar a ela o direito de se defender, pois já está definitivamente condenada pela opinião pública.

O bom seria mesmo, mas aí já seria esperar muito do ser humano, que ninguém se precipitasse diante de uma informação, de uma censura, que, muitas vezes, contata-se ter sido apenas mais uma leviandade, própria dos dias que estamos vivendo.

A constatação óbvia é que, num mundo povoado de halters, permeado de notícias falsas, onde se dissemina o ódio gratuitamente, mais do que nunca é preciso ouvir o outro lado. Daí a necessidade de checar, perscrutar, avaliar a informação, ver a credibilidade da fonte, uma vez que não se pode dar ouvidos e acreditar na primeira informação.

Tenho reafirmado essa prudência, sobretudo na condição de Ouvidor do Poder Judiciário do Maranhão. Ouço as reclamações para, como sói ocorrer, ter o cuidado de, antes de adiantar uma posição, ouvir o reclamado, estabelecendo assim o necessário contraditório. E como acontece regularmente, depois de ouvir a parte adversa, tirar uma conclusão diferente daquela que poderia ter alcançado se não tivesse tido a cautela de, antes, ouvir o reclamado. Dessa forma, na itinerância da Ouvidoria, em várias comarcas, tenho podido reafirmar a necessidade de checarem-se as informações.

Para usar a expressão do escritor antes mencionado: preciso, sim, ouvir também o diabo, antes de chegar a uma conclusão. É preciso, pois, receber com cautela a primeira informação. Eu, de meu lado, prudente, checo tudo; tanto no trabalho quanto na vida pessoal, pois não me aventuro, com efeito, a acreditar na primeira informação, ainda que ela pareça fidedigna, real, levando o incauto, muitas vezes, a enganar-se.

Não é o que temos testemunhado, no entanto. As pessoas, sem nenhum pudor, sem nenhum cuidado, não só acreditam na primeira versão, como tratam logo de levá-la adiante, as vezes por pura maldade, por espírito mesmo de emulação, sobretudo quando se trata de informação contra as pessoas eleitas como desafetas ou em relação às quais nutrem alguma antipatia.
Todavia, repito, é preciso ouvir a versão do diabo, estabelecer o necessário e prudente contraditório, se se pretende formar um juízo minimamente justo em face dessa ou daquela informação.

É isso.

 

 

FAMÍLIA E CONTROLE SOCIAL

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“[…]Todavia, é triste admitir, as instâncias informais – a família, sobretudo – também têm falhado muito. Daí não ser incomum que uma família inteira se envolva com práticas criminosas, razão pela qual é de rigor que assumamos a nossa parcela de responsabilidade frente a muitas transgressões que poderiam ser evitadas, se formássemos cidadãos de bem nos ambientes familiares.
Quando se planeja e executa um assalto nos moldes do praticado recentemente em Bacabal, quando os gestores públicos tomam de assalto o Estado e quando licitações são fraudadas a olhos vistos, no afã de dilapidar o patrimônio público, para ficar apenas nesses poucos exemplos de transgressões, podem ter certeza de que tudo isso é estimulado pela certeza que todos têm de que só excepcionalmente serão alcançados pelas instâncias persecutórias do Estado. Daí a necessidade de que as instâncias informais, com destaque para a família, funcionem como a primeira e mais relevante trincheira de luta contra os desvios de conduta[…]”

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A grande maioria das pessoas não age de forma criminosa; isso é fato. Se não fosse assim, a vida em sociedade seria verdadeiramente uma tragédia.
As razões que levam as pessoas a optarem pelos desvios de conduta são diversas, o que torna impossível, pois, descrevê-las neste pequeno espaço. Contudo, posso dizer que a escola e, principalmente, a família, concorrem, decisivamente para a paz social, atuando ambas, de forma preventiva, como instâncias informais de controle.
É de sabença que, se as instâncias formais e informais de controle social (Poder Judiciário, Policias, Ministério Público, família, escola, igreja, sindicatos etc) funcionam a contento, tem-se, por consequência, índices de criminalidade quase desprezíveis, face à elementar constatação de que a formação moral do cidadão, somada à (quase) certeza da punição, inibem, geralmente, as práticas criminosas.
Portanto, o funcionamento simultâneo e eficaz das instâncias de controle social é tudo o que uma sociedade civilizada almeja, pois, quando pelo menos uma delas não desempenha bem o seu papel (e isso ocorre com frequência), os desvios de conduta recrudescem, tornando a vida em sociedade, por vezes, muito difícil.
No Brasil, admitamos, as instâncias formais de controle – Poder Judiciário, Ministério Público e Polícias – não funcionam como todos desejamos. E quando o fazem, agem de forma seletiva, a favor de uma classe de privilegiados imune às ações persecutórias.
Todavia, é triste admitir, as instâncias informais – a família, sobretudo – também têm falhado muito. Daí não ser incomum que uma família inteira se envolva com práticas criminosas, razão pela qual é de rigor que assumamos a nossa parcela de responsabilidade frente a muitas transgressões que poderiam ser evitadas, se formássemos cidadãos de bem nos ambientes familiares.
Quando se planeja e executa um assalto nos moldes do praticado recentemente em Bacabal, quando os gestores públicos tomam de assalto o Estado e quando licitações são fraudadas a olhos vistos, no afã de dilapidar o patrimônio público, para ficar apenas nesses poucos exemplos de transgressões, podem ter certeza de que tudo isso é estimulado pela certeza que todos têm de que só excepcionalmente serão alcançados pelas instâncias persecutórias do Estado. Daí a necessidade de que as instâncias informais, com destaque para a família, funcionem como a primeira e mais relevante trincheira de luta contra os desvios de conduta.
As pessoas de bem aprendem nas escolas, no ambiente familiar e nas igrejas – para mencionar apenas as mais relevantes instâncias informais de controle -, como devem se comportar. E assimilam, nesses ambientes, as boas lições para sua vida. E assim, não são poucos os que optam por uma vida de retidão, em face desse aprendizado.
Nessa perspectiva, devemos, sim, apostar as nossas fichas na família, como principal e definitiva instância de controle, com capacidade de fazer desestimular a prática de crimes. E digo isso porque é, principalmente, no ambiente familiar, instância primária de socialização, que a criança aprende desde muito cedo as lições que vai levar para a vida, já que o Direito Penal é residual e, por isso, só deve ser chamado a agir quando as demais instâncias de controle falham.
O processo de socialização no ambiente familiar é tão relevante e intenso, que uma criança bem formada é capaz até, de absorver, de se expressar corporalmente a partir do comportamento dos seus pais, disso inferindo-se a relevância, para sua formação, de viver num ambiente familiar digno e reto.
Sem perder de vista a importância da escola e das igrejas, é no ambiente familiar, portanto, que se forma o ser humano, num processo contínuo e permanente de socialização, em vista dos exemplos dados pelos adultos, com a transmissão de formas de comportamentos julgadas corretas pela sociedade.
Ademais, é com esse processo primário de socialização que a criança aprende as boas práticas, ou seja, o que é certo e o que é errado, tendendo, com efeito, a ser um cidadão de bem, se for orientada nesse sentido, o que torna ainda mais relevante a atuação da família no combate preventivo às práticas transgressivas
Se, noutra perspectiva, as lições ministradas aos filhos forem em sentido oposto, o processo de socialização tende a levá-los às condutas desviantes, a exigir, agora do Estado, por suas instâncias de controle, a necessária reação, com a inflição de penas, das quais, sabe-se, não resulta a esperada recuperação, por razões de todos conhecidas.
Se cada um de nós, no ambiente familiar, ministrarmos doses diárias de retidão aos nossos filhos, em pouco tempo, pouco tempo mesmo, teremos formado uma geração de homens de bem, a tornar obsoleta, démodé e desnecessária a ação dos órgãos de persecução.
A propósito do exposto, encerro essas reflexões com uma frase lapidar e definitiva que li numa entrevista ao jornal O Globo, do fantástico cantor e compositor pernambucano Lenine, a propósito dos seus filhos: “Os admiro por serem competentes e éticos, isso me enche de orgulho. Vejo as pessoas perguntando que mundo querem deixar para o filho, mas não sobre o filho que querem deixar para esse mundo. Precisamos criar seres humanos melhores.”
Alguém duvida?

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

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“[…]Logo, é fundamental, para tipificação do ilícito, que haja dolo e que a vítima empreste o seu dissenso.
Se assim não for, ou seja, se a parte ofendida não emprestar o seu dissenso e se o autor do fato não o fizer conscientemente, com a finalidade, portanto, de satisfazer a sua lascívia ou de outrem, crime de importunação sexual não haverá, pois o consentimento da ofendida ou inexistência de dolo afastam a própria adequação típica do ato praticado.
É preciso, pois, compreender, e faço questão de reiterar, em face dos tempos de intolerância que estamos vivendo, que, havendo consentimento e sem que o autor do fato tenha agido com a intenção de importunar sexualmente a vítima, não se há de falar em contrariedade ou ofensa à liberdade sexual da pessoa[…]”

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Por já ter vivido muito, posso dizer que já vi de tudo um pouco. Portanto, é natural que eu não me surpreenda mais com certas notícias, com certas atitudes, pois, afinal, tenho dito, do homem pode-se esperar qualquer coisa.
Conhecendo, com alguma profundidade, a alma humana, fruto da minha experiência como filho, pai, irmão, avô, advogado, promotor de justiça e magistrado, eu sempre afirmei que, de todos os animais que há sobre a terra, o menos confiável, o mais surpreendente, o mais traiçoeiro, o mais dissimulado é o homem, que por isso mesmo é, para mim, o mais perigoso.
Pois bem, quando eu supunha que nada mais seria capaz de me surpreender em face das ações do homem, eis que a imprensa, no ano passado, noticiou que um determinado indivíduo ejaculou no pescoço de uma passageira de transporte coletivo, de cuja atitude resultou enorme alarido. E eu, que pensava não mais me surpreender com o homem, mais uma vez fui surpreendido por ele.
Como profissional do direito, cuidei de examinar onde se enquadrava, no Direito Penal, a ação libidinosa do referido indivíduo, nitidamente voltada à satisfação da lascívia própria.
Contudo, não encontrei no ordenamento jurídico um enquadramento típico para essa ação degradante e aviltosa; grave atentado à dignidade sexual da vítima, vilipendiada e humilhada por uma conduta repugnante.
Depois desse episódio, ficamos todos sabendo que esse tipo de importunação sexual não era um caso isolado, e que várias mulheres, nos transportes coletivos, já teriam experimentado desconforto dessa natureza, quase sempre caladas, temerosas da reação do seu algoz ou até mesmo para não serem submetidas a constrangimento público.
As vítimas desses abusos, de regra mulheres – mas pode também ser o homem -, como sói ocorrer, ficam impotentes diante do inusitado porque não sabem como se defender, visto que, muitas vezes, por uma ou outra razão, ainda são acusadas de serem responsáveis pela importunação, como se fosse possível justificar esse tipo de conduta condenando a vítima e não o ofensor.
Diante das noticiais em torno do tema, busquei, embalde, no sistema jurídico nacional, como disse acima, o enquadramento típico para esse tipo de ação, sem, no entanto, encontrá-lo com a necessária precisão e com a preconização de pena proporcional ao gravame.
Essa busca inquietante por uma adequação típica finalmente acabou com a promulgação da Lei 13.718/2018, que altera o Código Penal, para inserir o artigo 215-A, que tipifica o crime de importunação sexual, redigido nos seguintes termos:
“Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
A pena cominada para o ato é de reclusão de 1 (um) a 5(cinco) anos, se não constituir crime mais grave.
A providência do legislador ordinário preenche, assim, uma grave lacuna em nosso sistema penal, entregando aos órgãos de controle uma legislação que, se não for capaz de coibir a prática deletéria da importunação sexual, decerto possibilitará que, doravante, o executor de tão degradante afronta à dignidade sexual da mulher seja punido exemplarmente, desde que as vítimas se predisponham a denunciá-los.
Todavia, é preciso alguma cautela ante uma ação que só aparentemente se constitui crime de importunação sexual.
Vou explicar.
O crime em comento tipifica como conduta delituosa qualquer ato de libidinagem e não apenas o já clássico caso da ejaculação.
Nesse sentido, é também considerado crime de importunação sexual o chamado “encoxamento”, que é uma das práticas mais corriqueiras nos transportes coletivos, ou mesmo quando alguém, sem que a vítima perceba, apalpe as suas regiões pudendas (nádegas, seios, pernas, genitália etc).
Mas, atenção!
Não é qualquer contato físico que pode tipificar o crime de importunação sexual, pois que é preciso que o autor do fato o faça dolosamente, de forma consciente, isto é, com a vontade deliberada de satisfazer à sua lascívia ou de outrem.
Noutro giro, é necessário, ademais, para tipificação do crime em comento, que a vítima não empreste a sua aquiescência, o seu consentimento.
Logo, é fundamental, para tipificação do ilícito, que haja dolo e que avítima empreste o seu dissenso.
Se assim não for, ou seja, se a parte ofendida não emprestar o seu dissenso e se o autor do fato não o fizer conscientemente, com a finalidade, portanto, de satisfazer a sua lascívia ou de outrem, crime de importunação sexual não haverá, pois o consentimento da ofendida ou inexistência de dolo afastam a própria adequação típica do ato praticado.
É preciso, pois, compreender, e faço questão de reiterar, em face dos tempos de intolerância que estamos vivendo, que, havendo consentimento e sem que o autor do fato tenha agido com a intenção de importunar sexualmente a vítima, não se há de falar em contrariedade ou ofensa à liberdade sexual da pessoa.
O só fato, com efeito, de uma pessoa estar próxima da outra, como ocorre com frequência nos coletivos, não configura, por si só, o crime de importunação sexual, se faltar ao pretenso criminoso, como efetivamente ocorre na absoluta maioria das vezes, a vontade consciente de importunar sexualmente a vítima.
Ressalte-se, pois, que não é qualquer evento, qualquer situação, qualquer contato físico num determinado ambiente, especialmente nos coletivos, que tipifica o crime de importunação sexual.
Faço a advertência para que as pessoas não saiam por aí denunciando o crime de importunação sexual em face de situações que somente na aparência se configuram crimes, sob pena de, também por isso, se contribuir para transformar a vida em sociedade cada dia mais insuportável.
É isso.

A PERIGOSA SENSAÇÃO DE QUE VALE A PENA TRANSGREDIR

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“[…]É de se compreender, com efeito, que sempre que as instâncias de controle atuam efetivamente, elas não só alcançam os transgressores, como desestimulam os que têm propensão para o ilícito, ante o receio de que possam ser alcançados por elas, o que não ocorre, infelizmente, no Brasil, já que somente uma parcela diminuta, quase insignificante dos transgressores, recebe a devida resposta penal; e quando a recebe, os criminosos sabem que o tempo de prisão é muito pequeno e que, logo, logo, estarão na rua para, mais uma vez, transgredirem a ordem, com grande probabilidade de não serem alcançados novamente pelas instâncias persecutórias[…]”

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Dou início a essas reflexões anotando que elas têm como ponto de partida a minha conclusão de que a lei penal se constitui um imperativo categórico (Kant), que deve ser aplicada como um fim em si mesmo, em face da necessidade de se castigar quem cometeu um delito, na perspectiva de sua utilidade, como medida de defesa social.
Nesse sentido, para cada delito deve(ria) corresponder, efetiva e eficazmente, à imposição de uma pena, como uma resposta ao sentimento de justiça, como uma retribuição mora, que, em face de sua exemplaridade, atuaria sobre o espírito sensível da população, afastando dela a atraente sensação de que é vantajosa a prática delituosa ( Miguel Reale Júnior), como se deu, por exemplo, como a política de Tolerância Zero, sobre a qual me deterei a seguir.
Pois bem. Antes da implantação da política de Tolerância Zero, nos EUA, baseada na Teoria das Janelas Quebradas, Nova York convivia com uma epidemia de crimes. Nesse ambiente, para ficar apenas num dos exemplos mais expressivos, a cidade arcava com prejuízos, só com passagens de metrô, anualmente, da ordem US$ 80,000, 000.00.
Com esteio na Broken Windows Theory, o prefeito de Nova York passou a combater essa situação, colocando policiais à paisana junto às catracas do metrô. Assim é que, quando um grupo pulava as catracas sem pagar, todos recebiam imediatamente voz de prisão. Em seguida, eram conduzidos à delegacia, identificados, revistados, fichados, intimados para depor e então liberados.
O simples fato de pular uma catraca de acesso ao metrô, para eximir-se do pagamento da passagem, não era motivo suficiente para manter alguém detido. Desobedecer a uma intimação para depor, entretanto, autorizava a prisão. Assim sendo, aquele que descumprisse a intimação para prestar depoimento, que precedia a soltura, em uma segunda detenção, agora sim, poderia ser preso e assim permanecer.
A população que pagava regularmente a sua passagem, começou a aplaudir cada vez que aconteciam essas conduções em massa. Daí, foi-se disseminando a compreensão de que valia a pena agir dentro da lei, valia a pena agir corretamente, pois, afinal, a Polícia estava agindo de acordo com a lei e garantindo o seu cumprimento.
Com essa simples medida e com a percepção das pessoas de que valia a pena agir de acordo com a lei – o que não ocorria antes, num ambiente de verdadeira anarquia -, o número de pessoas que pulavam as catracas diminuiu drasticamente, sob os aplausos das pessoas de bem.
Digno de registro é que uma parcela significativa dos que pulavam as catracas portava armas ou drogas, ou estava sendo procurada por crimes anteriores. É dizer, as pessoas que optavam pelo expediente de pular as catracas para não pagar as passagens, já tinham um histórico de transgressão; contudo, não pagar as passagens, para elas, acostumadas a outros desvios de conduta, era apenas mais um desvio, que, decerto, não sendo combatido com tenacidade, servia de estímulo às pessoas com propensão à transgressão.
O certo é que, com o combate efetivo e eficaz de uma pequena transgressão – pular as catracas do metrô para não pagar – as autoridades responsáveis pela política de Tolerância Zero fizeram com que criminosos refluíssem da prática de outras transgressões mais graves, como porte ilegal de armas de fogo e de drogas, assaltos e homicídios, tudo isso em face da percepção de que os órgãos de controle estavam agindo e, principalmente, em face da percepção de outras pessoas potencialmente perigosas de que não valia a pena transgredir.
Com o Tolerância Zero, compreendeu-se que o melhor mesmo é andar de acordo com a lei, a evidenciar que, com a ação efetiva e eficaz das instâncias de controle, desestimula-se a criminalidade, porque as pessoas acabam por se convencer de que o ideal mesmo é andar na linha, é fazer o correto, é não transgredir, não vilipendiar a ordem.
É de se compreender, com efeito, que sempre que as instâncias de controle atuam efetivamente, elas não só alcançam os transgressores, como desestimulam os que têm propensão para o ilícito, ante o receio de que possam ser alcançados por elas, o que não ocorre, infelizmente, no Brasil, já que somente uma parcela diminuta, quase insignificante dos transgressores, recebe a devida resposta penal; e quando a recebe, os criminosos sabem que o tempo de prisão é muito pequeno e que, logo, logo, estarão na rua para, mais uma vez, transgredirem a ordem, com grande probabilidade de não serem alcançados novamente pelas instâncias persecutórias.
De mais a mais, é de se reconhecer que o Brasil sofre de um mal crônico, que estimula a grande delinquência, que condiz com a seletividade do sistema, que só pune mesmo os miseráveis, deixando impune a quase totalidade dos criminosos de colarinho branco, para os quais prisão é apenas uma quimera, uma hipótese excepcional, que de tão excepcional só mesmo o azar os faria ser alcançados. Daí que, tenho dito, a persistir, como ocorre no Brasil, salvo uma ou outra exceção, o combate seletivo e discriminatório da criminalidade não mudará o rumo da nossa história, pois, nesse cenário, não há como se criar a necessária e profilática cultura de que fazer o correto é o melhor caminho.
A continuar as coisas como sempre foram, haverá sempre os que tendem a seguir transgredindo, estimulados pela impunidade, cientes, enfim, de que as instâncias de controle não os alcançarão, porque, afinal, essa é a regra, constatação que se pode inferir em face, por exemplo, das incontáveis fraudes aos processos licitatórios, das quais decorrem significativo desvio de dinheiro público, sem que os fraudadores sejam punidos exemplarmente.
E não o são porque a interpretação que se dá ao comando legal é sempre em benefício dos transgressores e em detrimento do interesse público, pois sempre haverá quem argumente que não houve prejuízo ao erário, em face da aprovação das contas do gestor, ou que, noutro viés, não restou provado o dolo específico, como se uma aprovação de contas tivesse o condão de provar a inexistência de mau uso dos recursos públicos, ou como se, no caso do dolo, algum transgressor viesse a juízo, num rasco de sinceridade, admitir que fraudou uma licitação com o fim específico de desviar dinheiro público.
É de sabença que todo e qualquer transgressor – e falo aqui dos que têm capacidade cognitiva – avalia os riscos e o sucesso de uma empreitada criminosa. Sopesado os prós e os contras, ele se decide pelo crime ou aborta a empreitada.
No Brasil, no entanto, a quase certeza da impunidade, a proverbial tolerância das instâncias de controle, a probabilidade de, ao fim e ao cabo, receber o criminoso uma pena diminuta, e a certeza, finalmente, de que em breve tempo estará em liberdade para novamente delinquir, funcionam, definitivamente, como um estimulo à prática de ilícito e fazem de nós uma nação marcadamente frouxa quando o assunto é combate à criminalidade, a incutir nas pessoas – dentre elas uma enormidade de gestores públicos – a sensação de que transgredir vale a pena.
É isso.