MINIMALISMO PENAL E PROTEÇÃO SOCIAL

Inquieta a sociedade a veiculação sistemática de notícias sobre reiterações criminosas de meliantes colocados em liberdade, muitos deles traficantes de drogas, integrantes de organizações criminosas ou autores de crimes violentos, a pretexto de serem presumidamente inocentes, descurando-se, nessa perspectiva, de sua perigosidade, o que se traduz, desde a minha compreensão, inaceitável menosprezo ao interesse público.

Em situações tais, mesmo submetido a críticas, não descuro de manter preso quem demonstra propensão para a prática de crime ou, não sendo contumaz, o pratica com violência contra a pessoa, mas sem perder de vista, por óbvio, a densidade, a relevância do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, uma vez que vivemos num Estado Democrático de Direito, sob os auspícios, portanto, do princípio da legalidade.

Nessa linha de pensar – e de atuar -, mesmo sem antecedentes criminais, mesmo sem comprovada recalcitrância, aos criminosos perigosos só excepcionalmente concedo um favor legis, na compreensão de que não se pode deixar de ponderar sobre as consequências de colocá-los em liberdade, posto que a sociedade precisa de proteção, que às vezes é mimetizada pelos minimalistas, para os quais vale mais o direito individual que o coletivo.

A minha experiência em face das consequências nefastas à sociedade pela concessão de liberdade a  meliantes renitentes e violentos, que propendem a não refluírem em suas ações, sabido que não os inibem as medidas cautelares alternativas, tem me conduzido à manutenção das prisões provisórias que se mostrem imprescindíveis (carcer ante tempus) à preservação da ordem pública, nada obstante a presunção de inocência,  invocada, às vezes equivocadamente, para devolver a liberdade de quem não está a merecê-la.

Todavia, em que pese o quadro de violência que a todos nós apavora, os minimalistas não pensam assim. Nesse sentido, há os que – agora chamados garantistas, como se garantismo se confundisse com impunidade -, mesmo em se tratando de acusados recalcitrantes ou integrantes de perigosas organizações criminosas, preferem a opção pela liberdade, como se a presunção de inocência fosse um passaporte para a criminalidade.

No atual cenário, tenho a nítida compreensão de que a ordem pública exige do magistrado maior rigor no exame dos pleitos que buscam a liberdade de meliantes perigosos, razão bastante para, se for o caso, flexibilizar, em tributo ao cidadão de bem, em respeito à sociedade, o princípio da presunção de inocência, sabido que não existe direito absoluto, mesmo os ditos fundamentais e que eles não existem para proteger quem não tem controle de suas ações criminosas.

Ademais, é preciso ter em mente que os direitos fundamentais devem assegurar a esfera de liberdade individual apenas quando as interferências do poder público forem ilegítimas; e não é ilegítimo manter segregadas pessoas perigosas e resilientes às ações das instâncias persecutórias.

Para os que advogam o minimalismo penal, ou seja, a prisão como extrema ratio, lembro, forte nas lições de Claus Roxin, apenas para ilustrar e subsidiar a reflexão, que o Direito Penal – e consectários – é um mal necessário do qual não podemos nos afastar, em face da criminalidade violenta e reiterada.

É isso.

OS DONOS DA VERDADE

Nada é mais danoso para as relações do que a soberba, a vaidade e arrogância. E, nesse cenário, vem junto a pretensão de ser proprietário da verdade, de conhecer o rumo certo, a direção, sobretudo quando se trata de um líder qualquer, pois, nesse alvitre, leva consigo parcela de seguidores, muitos dos quais, fanatizados, perdem a sensatez/lucidez.

Não sei lidar bem com essas questões. Aliás, tenho enorme dificuldade de conviver com os que se imaginam proprietários da verdade, como se esta fosse, como qualquer objeto de consumo, exposta à venda numa gôndola de supermercado.

Contudo, não é assim qu a banda toca, disso inferindo-se que, por mais relevante que seja a nossa posição, por mais destacada que seja a nossa atuação, por maiores que sejam as nossas convicções, é preciso ter humildade para ouvir e refletir sobre os que pensam diferente.

Não se constrói o mundo com arrogância, tentando impor as nossas vontades, os nossos desejos, e, de quebra, as nossas verdades, seja qual for a posição que ostentemos na sociedade, sobretudo se as nossas posições entram em rota de colisão com a ciência e se exercemos uma posição de liderança, porque esse tipo de comportamento açula a insensatez dos que se recusam a pensar.

Se é verdade que a vida, não é menos verdadeiro que há os que teimam em não aprender e preferem arrotar incoerência e arrogância, levando consigo, quando se trata de uma liderança, os indefesos, ignorantes e fanatizados, cujo horizonte se perdeu em face de sua estupidez, limitadora de sua cognição.

Na ficção, tudo é possível, porém, no mundo dos comuns, ainda não nasceu um dono da verdade, conquanto haja aqueles que se arvoram proprietários dela, nem que, em face disso, precisem, muitas vezes, desqualificar o interlocutor, em vez de refletirem sobre o objeto do conhecimento.

Devido a esse enorme equívoco de percepção, os que se imaginam donos da verdade creem estar sempre certos, imputando, nesse afã, o erro e a percepção equivocados sempre ao interlocutor. Por isso, não raro, são histriônicos, tentam vencer os embates com argumentos irracionais, esmurrando o bom senso e agredindo a sensatez, incapazes que são de parar para ouvir o ponto de vista adverso, daí que, em vez de melhorarem os argumentos, gritam e desqualificam os que pensam diferente (Desmond Tutu).

Convém lembrar, a propósito, o grande Elio Gaspari, para quem “a convicção de estar sempre certo nos impede de reconhecer que somos capazes de errar”, razão pela qual, por pensarem desse modo, vivem em permanente solidão, na suposição, também equivocada, de se bastarem a si mesmos (Vinicius de Morais).

Para ilustrar essas reflexões, convém chamar à colação a reflexão do ministro Luís Roberto Barroso, segundo o qual “quem pensa diferentemente de mim não é meu inimigo”, para, na mesma linha, argumentar que “a verdade não tem dono e que respeitar o outro e conviver com a divergência não significa abrir mão de si próprio”.

Logo, é preciso aceitar o pluralismo e o contraditório. Pena que há os que não aceitam a diversidade como algo natural; em face disso, pensam solitariamente, não aceitam a divergência, que veem como uma afronta. Por isso, ao invés do argumento contrário, focam, muitas vezes, na pessoa de quem o enuncia, numa lamentável reafirmação desse péssimo hábito brasileiro de que o melhor argumento é desqualificar moralmente quem pensa diferente.

É isso.

A CRIAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO

Por prudência e cautela, desde muito cedo senti um certo acanhamento quanto à possibilidade, de nós, juízes, assumirmos o protagonismo no enfrentamento de certas questões sensíveis (criação do direito), em face, sobretudo, da minha formação jurídico-cultural (tradição positivista). Todavia, em pouco tempo, sem as amarras de uma prudência exagerada, compreendi que, no exame de determinadas questões, não se pode descurar da falta de sensibilidade e da omissão do legislador ordinário, não restando ao julgador, nesse cenário, muitas vezes, outra alternativa que não a de assumir um certo poder criador, sobretudo em face da estrutura normativo material da Constituição de 1988, impregnada, como sabemos, de princípios e regras de grande abertura semântica, de forma a permitir ao intérprete um singular espaço de conformação.

Cappelletti ensina: “Nos países de tradição positivista, a doutrina, durante muito tempo, resistiu à ideia de criação do Direito pelo juiz, cuja atividade estava confinada à vontade clara da lei. Todavia, com a complexidade das relações na sociedade moderna e a multiplicidade das demandas judiciais, a própria vontade da lei não mais se mostrava clara. Ao contrário, vaga e ambígua, a lei passa a suscitar variadas interpretações” (Juízes Legisladores? p. 24-25). E nesse ambiente, de regras obscuras e imprecisas, estão postas as condições para a criação judicial do direito, até mesmo para o ativismo judicial.

Nos últimos anos, no Brasil, temos assistido, sobretudo depois da Carta Política de 1988, à expansão do Poder Judiciário, que tem promovido uma verdadeira revolução, em detrimento do formalismo de inspiração liberal, época em que, como sabido, a atividade do juiz era a de declarar, mecanicamente, o direito, valendo-se, tão somente, da lógica dedutiva de interpretação.

No Estado Democrático e Constitucional, o direito já não se aperfeiçoa, não evolui e nem alcança a sua real finalidade se não em face da ação criativa dos membros do Poder Judiciário, que rompeu, definitivamente, com o monopólio legislativo na formulação do Direito, assumindo, de vez, a sua condição de corresponsável pela transformação do Estado, enfrentando sem acanhamento o grande desafio de controlar os outros Poderes, de forma a trazer para o centro do debate político a força axiológica dos textos constitucionais.

A criação judicial do direito, afirmo, à guisa de reforço, inspirado nas lições de Inocêncio Mártires Coelho, “decorre do exercício regular do poder-dever que incumbe os juízes de transformar o direito legislado em direito interpretado/aplicado, caminhando do geral e abstrato da lei ao singular e concreto da prestação jurisdicional, a fim de realizar a justiça em sentido material, que nisto consiste o dar a cada um o que é seu”. (Inocêncio Mártires Coelho, in Ativismo Judicial: o caso brasileiro, palestra proferida no Ministério Público do Estado do Pará).

Consigno, nada obstante, que o magistrado, nessa função de intérprete/aplicador do direito, não pode agir por capricho ou por conta de suas idiossincrasias, sob pena de se igualar aos que, nos demais poderes, agem sem idealismo, mas impulsionados pelos seus interesses pessoais, ou de grupos de lobistas, sem nenhum compromisso com a comunidade.

Para finalizar, uma chamada à consciência judicial: o magistrado deve ter presente, sempre, que certas minorias, certos grupos sociais, religiosos ou econômicos, só encontram nos tribunais, e em nenhum outro lugar, a proteção que estão a merecer (Luís Roberto Barroso). É nesse ambiente que o juiz constitucional assume o seu real, definitivo e mais relevante papel, cumprindo relembrar, nessa linha de intelecção, que a função do magistrado vai muito além da de mero espectador, agente passivo ou figura inanimada e ascética, que se limita a pronunciar as palavras da lei (visão montesquieuniana).

É isso.

OS PERDIGOTOS DOS PRESIDENTES

Não dá para não voltar ao tema. Logo, não deixarei de fazê-lo, enquanto a nau dos insensatos singrar os mares da ignorância, que mata e que infelicita a vida dos que, pensando de modo diverso, navegam pela via, cada vez mais estreita, da solidariedade e da empatia.

Decerto que nem precisaria dizer que vivemos, cá no Brasil como nos Estados Unidos, num ambiente de intensa radicalização política, numa dimensão nunca vista dantes, que tem contribuído para que pessoas, antes conhecidas pela sensatez, pareçam, em determinadas circunstâncias, irracionais, levando-nos à estupefação.

Querelas políticas, descambando para a insensatez e para violência, importa dizer, sempre houve, bastando lembrar, para ilustrar, que, a seis meses da eleição de 1950, o país viveu uma noite de assombro no Largo do São Francisco, no Rio, quando seguidores de Getúlio Vargas e Eduardo Gomes se enfrentaram até que a polícia dissipasse a confusão a cassetete, o mesmo se dando, concomitantemente, no Flamengo, onde brigadistas e getulistas também se enfrentaram (“Samuel Wainer: O homem que estava lá”, de Karla Monteiro, ebooks, Kindle, Companhia das Letras)

Nessa senda, importa anotar, de mais a mais, que é mais do que compreensível que todos nós tenhamos as nossas preferências – políticas, inclusive -, sabido que vivemos das nossas escolhas, e que ninguém deseja mesmo uma população anódina e acrítica -, sem posição, enfim.

Até aqui vai a minha compreensão em face da polarização que testemunhamos no Brasil e nos Estados Unidos, levada ao paroxismo nas pugnas eleitorais. Passando para a página seguinte, no entanto, já deixo de compreender e me coloco, sim, em rigorosa e definitiva linha de dissentimento com os que ultrapassam o umbral da racionalidade e do bom senso.

E, a meu juízo – e aqui passo a ratio dessas reflexões -, se submeter, por fanatismo, por paixão política, por miopia ou insensatez, aos perdigotos de qualquer pessoa, ainda que seja de um presidente da república, com grande possibilidade de contaminação pelo novo coronavírus, como fazem por aqui (Brasil) e por lá (Estados Unidos) os apoiadores de Bolsonaro e Trump, não é só inaceitável, como também estupefaciente pelo que contém de irracional, que só se justifica em face de mentes obliteradas por uma adesão cega que decorre de um fervor excessivo e delirante.

A pergunta que se impõe, em face dos perdigotos dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro: alguém, em sã consciência, tem condições de dizer quantos já foram contaminados, direta e indiretamente, pelos seus jatos de saliva?

Claro que ninguém terá uma resposta cartesiana para essa indagação. Ainda assim, convém fazê-la, apenas à guisa de instigação, em face da incomum predisposição de alguns à contaminação voluntária, por facciosismo que leva à falta de discernimento.

Diante de uma catástrofe, convém reafirmar o óbvio: o que se espera e se exige de quem tenha o mínimo de bom senso é que seja razoável e que cumpra as recomendações dos experts, convindo advertir, para concluir, que, quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você (Friedrich Nietzsche) e que, ademais, a vida é uma tempestade, razão pela qual em um momento você aproveita a luz do sol, no outro, é açoitado pela chuva, importando mesmo, nesse cenário, é o que você faz quando a tempestade chega (Alexandre Dumas), e, pelo que vejo e sinto, diante das intempéries, há muitos que não sabem como se conduzir, ou se conduzem muito mal, dando péssimos exemplos, para, adiante, inevitavelmente, pagarem a conta que decorre das atitudes impensadas que protagonizaram.

É isso.

AOS QUE AMAM ODIAR

O contraditório – ao lado da ampla defesa – é, sem dúvidas, uma das mais relevantes e destacadas conquistas civilizatórias. Logo, dar a chance para que alguém possa se contrapor em face de um argumento ou em face de uma acusação, concretiza um marco civilizatório relevante e necessário de qualquer nação democrática. Nesse sentido, as Constituições democráticas, para garantir a igualdade entre as partes, tão plena quanto possível, preconizam, nos processos administrativo e judicial, o contraditório e a ampla defesa (Constituição Federal do Brasil, artigo 5º. LV)

Mas não só nos procedimentos formais se impõe a observância do contraditório e da ampla defesa. Na vida pessoal, no ambiente familiar, nas nossas relações informais, enfim, é de rigor que se dê ao outro, ainda que seja um desafeto, a possibilidade de se contrapor em face de uma acusação, e de fazê-lo à luz do exercício pleno de defesa, que é exatamente o que não acontece nas redes sociais: uma vez acusado, a condenação, sem defesa e sem contraditório, ocorre inapelavelmente.

Disso resulta que, em vez do contraditório e da ampla defesa ( Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório que brota o exercício da defesa. Pellegrini Grinover, Ada; Scarance Fernandes, Antonio; Gomes Filho, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, 2. ed. São Paulo, Malheiros, 1992, p.63), tem-se reservado a muitos apenas o sentimento mesquinho da vingança, da imputação irresponsável, do escárnio e da sordidez. Daí que as redes sociais, na sua face mais obscura e perversa, se transformaram em verdadeiras redes de inquisição, ante a precipitada conclusão de que o homem nasce culpado e corrompido pelo mundo (“el animal humano nace culpable; estando corrompido el mundo, basta excavar en un punto culaquiera para que aflore el mal”).

É dever de todos o repúdio à imolação das pessoas em face da ação pérfida e predadora dos haters que habitam as redes sociais, que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam, como se fosse pecado discordar, se contrapor, assumir linha de compreensão diversa, sob a equivocada compreensão de ser possível a construção de uma sociedade plural sem o contraditório.

Falo isso para redizer que o contraditório, tão relevante na construção de uma sociedade plural, não pode e nem deve ser confundido como algo descartável e deferido como um favor. Ao contrário disso, deve ser a todos oportunizado como um exercício da cidadania, quer num procedimento formal, quer nas relações informais, na certeza de que o homem deve ser educado racionalmente para a compreensão, para a tolerância, para a capacidade de entender o diferente (Luís Roberto Barroso).

Importa redizer, para concluir, que num mundo povoado de haters, permeado de notícias falsas, onde se dissemina o ódio gratuitamente, mais do que nunca é preciso ouvir o outro lado, oportunizar o contraditório e a ampla defesa, permitir, enfim, que todo e qualquer cidadão, antes de uma maledicência ser veiculada, arrostando a sua honra, se manifeste, exponha a sua posição e a sua defesa, para que sejam evitados os linchamentos morais tão ao gosto dos odiadores que habitam o hoje descontrolado mundo da internet.

Para usar a expressão do escritor britânico Samuel Butler, é preciso ouvir a versão do diabo. Digo, para completar: mesmo que ele tenha rabo, chifre e tridente ameaçador, é preciso reconhecer a todo cidadão o direito ao contraditório e à ampla defesa, razão pela qual, forte nessas reflexões, cá do meu canto, ressabiado, checo tudo; tanto no trabalho, quanto na vida pessoal, pois não me aventuro a, de forma irresponsável, acreditar na primeira informação, para, em seguida, replicá-la.

É isso.

blog: joseluizalmeida.com

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

NÃO É POUCA COISA

CONVENHAMOS, NÃO É POUCA COISA

Nunca busquei o poder a qualquer custo. Nesse sentido, sempre deixei que as coisas fluíssem. Não me submeto, assim, a qualquer condição para ascender. Contudo, não penso e nem ajo nesse sentido para parecer diferente, já que o normal mesmo é, estando no poder, buscar ascensão, alcançando cargos de direção, para engrandecer o curriculum, ser destacado numa galeria de fotografias ou para receber homenagens, o que não é bem a minha praia; ademais, porque sou carente de dois predicados básicos para qualquer pleito eletivo: simpatia e carisma.

Essa minha posição confronta a teoria segundo a qual todas as nossas motivações e energias não passam de aspirações pelo poder; até mesmo o sexo, o que, segundo essa teoria, seria uma das categorias de poder, “seja porque queremos possuir o corpo de outra pessoa – e, portanto, possuímos a pessoa completamente -, seja porque achamos que, ao possuí-la, impedimos outros de fazê-lo” (Leszek Kolakowki, in Pequenas Palestras sobre Grandes Temas, editora Unesp, p. 12).

Nessa linha de compreensão, Hobbes entendia que o movimento primário de todo ser humano é em direção ao poder. É dele a conclusão: “[…] evidencio uma inclinação geral de toda a humanidade, um perpétuo e incansável desejo de poder após poder, que só cessa com a morte[…]” (apud Martin Cohen, Casos Filosóficos, 2012, p.135).

É compreensível, pois, é à luz dessas menções teóricas – confirmadas na prática -, que muitas energias são despendidas pelo homem na busca pelo poder. Daí que não são poucos os que, obstinados, perseguem o poder de toda forma, despendendo até as forças que não têm. Todavia, a busca do poder não deve levar os postulantes a uma luta fratricida e sem limites, impondo aos contendores, bem ao reverso, o necessário e inefável respeito à sua própria dignidade.

O homem público se credencia para o exercício do poder em face da sua história; daí por que a sua conduta deve, como imperativo moral, ser ilibada, escorreita, imaculada, ainda que a ascensão, muitas vezes, resulte frustrada. Assim pensando, compreendo que não se deve transigir com o erro e com as concessões covardes e pouco republicanas em face do poder.

Faço essas reflexões apenas para deixar consignada a minha especial admiração por Sérgio Moro – não só em face de ter liderado a maior e mais exitosa operação de combate à corrupção que se tem notícias na história do Brasil, como também por não ter se submetido aos caprichos do supremo mandatário da nação para alcançar uma indicação ao Supremo Tribunal Federal, sabido que não são poucos os que, por ela, trocariam a própria dignidade. Digo isso porque ele bem que poderia ter aquiescido com todas as vontades de Sua Excelência para, assim, ficar “de boa” e pavimentar seu caminho em direção à suprema indicação, como vem fazendo André Mendonça, “em ações tão espetaculares quanto ridículas” (Elio Gaspari). Sérgio Moro, ao contrário, com a honradez e dignidade poucas vezes vistas, firmou posição definitiva em face de suas convicções e, com elas inabaladas, abriu mão de sua indicação, no afã de fazer a coisa certa.

Nada obstante a admiração que nutro por Sérgio Moro, como de resto nutrem por ele todas as pessoas de bem cansadas dos desvios de conduta dos nossos homens públicos, anoto que sempre vi, com reservas (cum grano salis, portanto), determinadas posições do ex-juiz, que, como todos nós, errou aqui e acolá, malgrado, reconheça-se, com absoluta preponderância dos acertos, razão pela qual eu não o absolvo de seus pecados e nem o canonizo pelos acertos, impondo-me o dever, todavia, de destacar que, num mundo em que há pessoas capazes de qualquer expediente pelo poder, ele, no particular, como em tantas outras ações, deu um exemplo de rara dignidade ao Brasil: primeiro, ao deixar o Poder Judiciário para servir ao país e, depois, ao abrir mão da indicação ao STF, em defesa de suas convicções pessoais, o que, convenhamos, não é pouca coisa.

É isso.

REDES DE INTRIGAS

Nessas reflexões, volto a um tema candente, sobre o qual já refleti outrora, depois de ter assistido – estupefato, mas sem surpresa – ao documentário O Dilema nas Redes, disponibilizado no serviço de streaming. E o faço levado pelo ambiente de radicalismo que se instalou no Brasil, com campo fértil de intrigas nas redes sociais, de onde despontam, em linhas opostas e inconciliáveis, os radicais de todos os matizes, incapazes de enxergar as virtudes dos que eles elegeram como adversários/inimigos, muitos dos quais destroçados, em sua dignidade e reputação, pela propagação de inverdades.

Antes, antevendo eventual incompreensão em face da minha condição de magistrado, a exigir de mim muito mais cautela e recato na emissão do pensamento, devo dizer que é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa ordem de ideias, que não tenha compreensão do mundo, nem visão da realidade (Eugênio Raúl Zaffaroni, jurista portenho).

À guisa de registro, importa anotar, agora, que desde sempre, ainda nos bancos da Faculdade de Direito, localizada na Rua do Sol, década de 70, exponho, sem receio, a minha visão sobre os mais variados temas, sem nunca ter me permitido o direito à indiferença, por me recusar a ser um juiz asséptico e acrítico.

A verdade é que, compreendido aqui e incompreendido acolá, eu me mostro por inteiro, forte nas minhas inabaláveis convicções, razão pela qual tenho necessidade de expor o meu pensamento, como o faço agora, para dizer que, nos dias presentes, estamos carentes de um juízo de ponderação, de tolerância e de equilíbrio, sobretudo nas redes sociais, que se transformaram, sem olvidar do que elas têm de bom, em verdadeiras redes de intrigas e de propagação do ódio.

Confesso que, nos dias atuais, com tanta perfídia permeando as relações, da qual decorrem as malquerenças que encontram campo fértil nas redes sociais, me incomoda não escrever com mais liberdade, não deixar o pensamento fluir, não dar vazão aos meus sentimentos, disso resultando a compreensão de que os mais equilibrados têm o dever de repudiar a ação malévola e predadora dos odiadores que habitam as redes sociais, “que são uma subespécie de gente que ama odiar, adora achincalhar, se esmera no apedrejamento moral dos que ousam pensar de modo diferente do que pensam”(cf. Aos que Amam Odiar, in http//joseluizalmeida.com)

Nesse ambiente deletério, e por uma imperativa necessidade de autopreservação em face de ataques iminentes que podem vir de um lado ou de outro do espectro político mais fanatizado, eu me recuso, até, a opinar sobre temas de interesse público, para não dar vazão à paranoia que tomou conta do país, com a malfazeja divisão entre “os de lá” e “os de cá”, que leva os mais radicais a concluírem, sem base factual, que “os de cá”, ou seja, os que se alinham ao seu pensamento, estão sempre certos, e o que dele divergem – “os de lá”, portanto – assim o fazem porque são seres humanos de pouca ou nenhuma virtude; rebotalhos, enfim.

E assim, num ambiente no qual despontam os inconsequentes, tenho percebido que não são poucos os que, assim como eu, optam pela prudência, para, como anotado acima, não estimularem reações heterodoxas, muitas delas manipuladas, dolosa, maldosa e deliberadamente pelos que consomem os serviços das redes sociais.

Na defesa das minhas convicções, sou intenso, sim, mas com limites, máxime nos dias atuais, pelas razões acima expostas. Daí por que, nas minhas reflexões, imponho a mim mesmo um juízo de ponderação que, ao ensejo, concito o leitor a praticá-lo nas redes sociais, para distensionar o ambiente político, pois os discursos de ódio e as fake news são, sim, uma “ameaça à democracia” ( Felipe Campelo, cientista político, da Universidade Federal de Pernambuco), bastando, para essa compreensão, voltar os olhos às manifestações recentes com ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal.

É isso.

DITADORES TAMBÉM CHORAM

Há cronistas que juram de pés juntos que a inspiração para uma crônica é uma “luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente, que acende a mente e o coração (João Nogueira). Confesso que, de minha parte, não recebo as minhas crônicas com a mesma rapidez. Tenho até muitas dificuldades para escrevê-las. É que elas precisam de um fato concreto e relevante para se manifestarem, daí que estou sempre atento aos acontecimentos para que, a partir deles, flua a minha inspiração.

A política nacional, por exemplo, pela ação dos nossos representantes, é, para mim, uma fonte inesgotável de inspiração. Nesse sentido, eu bem que poderia, à falta de outro tema, refletir, aqui e agora, por exemplo, sobre a propalada “nova política”, em face do protagonismo do famigerado “Centrão”, onde habitam os mais fisiológicos homens públicos da nossa pátria. Não devo fazê-lo, no entanto, em face da minha condição de magistrado, na compreensão de que há limites para exposição do meu pensamento.

Aprendi, desde sempre, que não convém a um magistrado expor o seu pensamento sobre qualquer tema; máxime temas sensíveis como os políticos. É necessário prestar vassalagem ao bom senso e à ética, os quais devem ser a bússola a orientar as manifestações públicas de um julgador. Nesse sentido, não convém uma exposição demasiada sobre questões políticas, ainda que eu tenha em linha de conta que o juiz não deva ser um eunuco político.

À luz dos fatos e noutro giro, eu bem que poderia, se a mim me fosse permitido, comentar, com a devida profundidade, a decisão de soltura de André do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello, via liminar, bem assim a contraordem emanada do presidente do Supremo Tribunal Federal. Todavia, da mesma forma, não convém fazê-lo. É preciso, também nesse caso e do mesmo modo, tributar homenagem irrestrita ao Código de Ética.

O certo é que outras tantas condutas dos nossos homens públicos poderiam, sim, levar-me à elaboração de um artigo. Afinal, eles não cansam de surpreender com as suas ações, algumas delas pouco ou nada republicanas; outras, em face da sua relevância, desafiando, tão somente, uma detida reflexão.

Com essas cautelas, vou me deter, portanto, na notícia que mais me chamou a atenção nos últimos tempos, pelo que ela tem de inusitada: o choro do ditador norte-coreano Kim Jong-in, no fim de semana passado, durante o desfile militar em comemoração ao 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, seguido de um pedido de desculpas ao povo coreano, admitindo, num rasgo de humildade, ter fracassado na condução do país em tempos de pandemia e tufões.

Confesso que nem nos meus delírios imaginei testemunhar o choro de um ditador e, no mesmo passo, uma manifestação de humildade desse mesmo ditador. Um ditador vertendo lágrimas perante seus súditos é algo que eu supunha não ser possível, ciente de que são, de rigor, pessoas insensíveis, quase sempre más, que não hesitam em mandar matar, em trucidar um adversário ou um inimigo político para se perpeturem no poder, como registram os fatos históricos.

Dito isso e ao ensejo, importa consignar, para não perder a oportunidade – e aqui faço o registro em minha defesa também -, que pessoas com a feição casmurra também choram. Daí porque não me surpreendi, como o fiz em face do ditador, quando vi o ministro Gilmar Mendes com a voz embargada na despedida de Celso de Mello, da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Os fatos aos quais fiz menção acima deixam uma lição comezinha: o homem, por mais forte que pareça, por mais frio que seja, por mais poder que tenha, ainda que seja uma pessoa destemida, violenta e aparentemente insensível, também chora, seja ele um ditador, um ministro do Supremo Tribunal Federal ou um simples mortal, como o signatário destas reflexões.

É isso.