PREFEITO TEM PAI?

200px-gracilianoramosDepois das eleições municipais todos buscam explicação para o que pretendeu dizer o eleitor com o seu voto. As análises são as mais diversas, muitas das quais sem nenhuma base científica.

Eu prefiro, de meu lado, uma reflexão, digamos, mais literária, por isso aproveito o ensejo para uma mensagem que vem de Graciliano Ramos e que deveria servir de exemplo aos nossos alcaides.

Pois bem.

Graciliano Ramos,. prefeito de Palmeiras dos Índios, mandou recolher os animais que ficavam soltos nas ruas. O funcionário encarregado de cumprir a determinação disse não tê-la cumprido integralmente porque deixará de recolher os cachorros do pai de Graciliano, que, na oportunidade, reprovando-o pela atitude, disse-lhe, curto, grosso e objetivo:

-Prefeito não tem pai, meu filho.

 

EGOS DESCONTROLADOS

 

7243789636_50a2d6cd91Vou iniciar essas reflexões, lembrando de uma lição que extraí do romance Casei com um comunista, de Philip Roth: “Temos de tirar o chapéu para a vida, em homenagem às técnicas de que ela dispõe para despojar um homem de toda a sua relevância e esvaziá-lo completamente do seu orgulho” (personagem Murray Ringold, professor de inglês, irmão de Ira Ringold, destruído em face de suas convicções, no pós-guerra, quando a febre do anticomunismo contaminava a política americana).

Vou relembrar, também, uma expressão que minha mãe gostava muito, sempre que nos flagrava num desvio de conduta: “Nada melhor que um dia atrás do outro”, ou então, “a vida é quem ensina a viver”, nos advertindo sobre o que mundo reservava aos que agem impensadamente ou que se deixam levar pelo orgulho e/ou pela vaidade.

Feitas essas observações, à guisa de ilustração, para que nos lembremos sempre de que nenhum orgulho resiste às vicissitudes da vida, devo dizer que, como todos sabem, conviver com os contrários, com quem pensa e age diferente de nós, é um aprendizado que requer paciência e exige de todos nós uma certa dose de perseverança. Todavia, todos nós sabemos que não é fácil contemporizar com posições antípodas, que tendem a ser mais frequentes, quanto mais plural for a sociedade.

No mundo plural em que vivemos, portanto, é preciso saber ouvir, refletir, com respeito e sem prepotência, sobre o que dizem aqueles que pensam diferente de nós. Não é humilde, mas uma lamentável e abominável arrogância, só dar ouvidos à sua própria voz, ofertando ao interlocutor “ouvidos de mercador”.

Qualquer pessoa minimamente atenta já deve ter percebido que habitamos num mundo onde pontificam, para o desconforto das relações, os que não sabem ouvir, os que desprezam os argumentos do interlocutor, como se fossem senhores absolutos da razão, a reclamar, urgentemente, uma revisão de conceitos, pois, muito provavelmente, quando se derem conta de que a verdade não tem dono e que talvez tenham se apropriado de uma mentira, ao fazerem tabula rasa das verdades que tentaram neles introjetar, sentir-se-ão como aquele sujeito que, apesar do poder que tinha, não podia mudar a cor da luz do semáforo, se submetendo, nesse cenário, às mesmas restrições impostas ao mais humilde semelhante, como de resto acontece em várias passagens da vida.

Não é democrático, nem razoável, definitivamente, o não saber ouvir, o não tolerar a adversidade. O pensamento único e a verdade absoluta não habitam o mundo da relatividade, que não tolera os que só olham o mundo de acordo com as cores da sua lente, conforme as suas idiossincrasias, com os valores que incorporou e a partir dos quais forjou a sua personalidade.

Viver, conviver, compartilhar as inquietações, as angústias com os que pensam de modo diferente, com os que têm visão de mundo oposta à nossa, é um exercício de humildade que todos nós deveríamos cultivar.

É um erro grave de convivência não aceitar a divergência, a tentativa de impor um ponto de vista. Não é, definitivamente, construtivo nem faz bem para a relação quando uma das partes pensa ser dona da verdade, sabido que a verdade não tem dono. Entrementes, todos os dias, ainda nos deparamos com essas pessoas, como se existissem verdades expostas para a venda numa gôndola de supermercado.

Na construção de uma tese ou na sua antítese, é bom para as relações e engrandece as amizades a compreensão de que discordar faz parte da vida e que é a partir da aceitação das divergências de ponto de vista que podemos, definitivamente, construir uma sociedade fraterna e plural.

Tenho uma especial admiração pelo Doutor Dráuzio Varela, o que me leva a acreditar facilmente em tudo o que ele diz. As posições dele, as recomendações que ele faz, tudo que ele diz eu assimilo como se fossem conselhos de um amigo fraterno.

A minha admiração pelo Dr. Dráuzio Varela se solidificou quando, em seu livro Carcereiros, deparei-me com a passagem em que ele lamentava ter perdido contato com o mundo marginal.

Diz ele, a propósito, que a falta de contato com os presídios deixava a sua vida mais pobre, pois, de tão envolvido com esse universo,não suportava ter que passar agora o resto da vida convivendo exclusivamente com pessoas da mesma classe social e valores semelhantes aos dele, sem a oportunidade de se deparar com o contraditório, com o avesso da vida que levava, sem poder conviver com a face da mais indigna desigualdade social, sem poder ouvir histórias que não passariam pela cabeça do ficcionista mais criativo, sem conhecer a ralé desprezível que a sociedade finge que não existe, a escória humana que compõe a legião de perdedores que um dia imaginou realizar seus anseios pela via do crime, e acabou enjaulada num presídio.

Essa, sim, é uma lição de vida para os que só querem ouvir a sua própria voz e abominam, no mesmo passo, os argumentos contrários. Esses, tenho dito, têm o ego descontrolado.

NÃO QUERO PERDER A DIREÇÃO

justiça por marília chartuneDa obra de Lewis Carol, a imortal e atemporal Alice no País das Maravilhas, há dois personagens que gosto de destacar. Um deles, o coelho, que assim como nós, ou, pelo menos, como eu, vive correndo, olhando sempre para o relógio, assumindo estar sempre atrasado. Eu também sou assim. Não transijo bem com atrasos, não gosto de impontualidade. Acho uma falta de respeito não cumprir horário.

O outro personagem é um gatinho esperto. Pelo fato de eu amar gatos, não tive dificuldades para me apaixonar pelo gatinho da obra, que protagoniza uma passagem interessante. Ele vive no alto de uma árvore. Há momentos em que desaparece; outros em que se mostra por inteiro. Há momentos, no entanto, que exibe apenas a sua vistosa calda.

Há uma cena em que Alice, desorientada, vê o gato na árvore e pergunta aonde vai dar a estrada pela qual estava passando. O gato formula outra indagação, antes da resposta:

-Para onde você quer ir?

Ela responde:

-Não sei; estou perdida.

O gato, esperto, não titubeia:

-Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve.

A lição que se extrai dessa passagem da obra de Lewis Carol – pelo menos essa é a interpretação conveniente que me permito fazer desse fragmento para ilustrar essa crônica – é que não são poucos os que, nos momentos de dificuldades pelos quais passam, terminam perdendo o rumo, o prumo, a direção, e seguindo por caminhos que antes não imaginavam passar, o que, muitas vezes, em face das circunstâncias, é até perdoável e compreensível.

Ademais, de rigor, ninguém pode dizer que diante de uma dificuldade da vida não seria capaz de se perder, de seguir sem direção, às escuras, por um caminho que não idealizou, mas que é uma consequência inevitável em face das escolhas que fez.

A verdade é que ninguém pode afirmar que, por essa ou aquela razão, jamais mudará de direção, o que não é de causar nenhuma inquietação, no caso de saber aonde quer ir, ou se houver razões que autorizem a busca de uma via alternativa.

Conforme já disse acima, a mudança de rumo está a depender das circunstâncias. Sendo assim, feliz daqueles cujas vicissitudes da vida não os tenham compelido a mudar de rumo, levando-os às cegas a lugar nenhum.

Decerto que alguns mudam de direção porque anteveem um caminho menos íngreme, que possa levá-los às conquistas que almejam, às ambições que o atormentam, à realização dos seus sonhos. Essa é a mudança de direção que tenho com benfazeja, suscetível de ocorrer com todos nós, indistintamente.

Contudo, há, também, os que mudam de rumo, não em face de uma intercorrência, de uma intempérie ou por motivos de força maior, mas porque optam, voluntariamente, pelo caminho mais rentável do ponto de vista material, o caminho que os levam à obtenção de vantagens indevidas, sem se importarem com as consequências em face das escolhas que fizeram. E, quando se dão conta, estão sem rumo, sem direção, sem saber para onde ir, sem opção, perdidos e, talvez, arrependidos pelas escolhas equivocadas que fizeram.

E são muitos os que fazem escolhas erradas, levados por impulso, por vaidade ou ganância, para, depois, lamentarem pelas escolhas que fizeram. Mas aí, com muita probabilidade, pode ser muito tarde, como ocorreu, por exemplo, com os que optaram por assaltar a Petrobras, muitos dos quais só depois de presos, sem poderem optar por outra direção, lembraram, tardiamente, que tinham famílias e que elas precisavam ser preservadas.

Esses são os inescrupulosos, os oportunistas para os quais o que vale mesmo é levar vantagem.  Para eles, mudar de rumo, seguir na direção equivocada, sem pensar nas consequências das escolhas que fizeram, pouco importa, desde que, nessa senda, alcancem os seus objetivos.

Muitos desses, todos haverão de concordar, só depois de encalacrados, desmoralizados e expostos à execração pública se arrependem do que fizeram, pois, afinal, expuseram a si e a sua família à exposição pública que podia ter sido evitada.

Para esses, a ganância é tamanha, que eles chegam a se perder pelo caminho, perdem a noção do sentido da ética e da honradez, pela busca frenética e tenaz do ganho fácil; perdem a dimensão das coisas e, dessa forma, pavimentam o caminho que os levará ao cadafalso.

Por esperteza e ambição, eles se perdem nos labirintos do poder, são engolidos pelo sistema, e quando, finalmente, percebem os erros das escolhas, aí já é tarde, restando, nessa hora, apenas apelar para que as ignomínias praticadas não os façam perder o caminho da volta, pois, além deles, são as famílias que terminam por pagar o preço das escolhas erradas, embora que, muitas vezes, elas próprias compactuem com os desvios de conduta, por comodidade ou vaidade, por prazer ou mesmo por ganância.

O Brasil é, culturalmente, um país que favorece esse tipo de mudança de direção, sendo que só recentemente uma determinada casta se deu conta de que, ao se perder pelo caminho, terminou se encontrando na carceragem da Policia Federal.

A vida pública, é consabido, proporciona a muitos uma mudança de direção, sobretudo aos que, estando nela, agem como meros oportunistas, os quais, no primeiro impulso, à primeira facilidade, trilham o caminho da perversão, da licenciosidade, da corrupção, da exação ou tráfico de influência.

Espero nunca ter que mudar de direção. Mas se mudar, por alguma razão maior que as minhas forças, prefiro não saber aonde ir, como personagem de Alice, pois, pior do que perder a direção, é, de forma consciente, percorrer o caminho que possa levar à perversão ou degradação moral.

UM CARA LEGAL

 

justiça_0

Por ocasião do lançamento do filme Dois Caras Legais, Roussel Crowe, em entrevista promocional, disse algo que me levou a essas reflexões. Disse o astro oscarizado (Uma Mente Brilhante) que suspeita do cara legal que, no caso, é aquele que abraça todo mundo, que quer ser simpático com todos, e que está sempre disponível para concordar, ainda que, para isso, tenha que contrariar as suas convicções, se é que ele tem alguma a ser contrariada.

Diante dessa afirmação, fui instado a, mais uma vez, pensar em mim mesmo, na minha maneira de ser, uma vez que, tendo convicções fortes, costumo defendê-las com muita veemência, muitas vezes em detrimento dos meus relacionamentos, pois, afinal, na defesa das minhas convicções, não tergiverso, ainda que possa ser incompreendido.

É verdade que vivemos num mundo no qual parece ser pecado assumir posições, pois o que se vê são pessoas em permanente titubeio, agindo de forma pendular, sempre de acordo com as conveniências e nunca em face das suas convicções, assim como é verdade que, para viver e conviver bem, é preciso usar de subterfúgios, para agradar, sobretudo, os que querem ser gostados. Eu também quero. Quem não quer? Ainda assim, não abro mão das minhas convicções, pois não quero ser gostado fazendo escambo das coisas que penso.

Observo que num ambiente corporativo é ainda mais difícil assumir posições, pois é quase um pecado discordar. Nesse mundo, que às vezes abomino, é preciso ser cordato, seguir a correnteza, ser simpático, agradável, abraçar, beijar, elogiar, fingir ser um cara legal, pois é assim que as parcerias são construídas, e o poder é exercido. Além disso, é assim que se consolida a cumplicidade corporativa. Mas eu não sou nem consigo ser assim.

Na perspectiva do exercício do poder, vê-se que não sou, definitivamente, um cara legal, uma vez que tenho minhas reservas a esse tipo de comportamento, pois, afinal, quem pensa e age assim, sempre disposto a aquiescer, a ser sempre simpático, não pode ser, definitivamente, confiável, já que é do tipo “Maria vai com as outras”, o qual não assume posição, com receio de contrariar; ou, ao reverso, só assume posições quando estas lhes convêm.

Logo, não dá para acreditar no que dizem as pessoas que querem sempre ser simpáticas, que estão sempre dispostas ao elogio gratuito, pois parecem estar levando a vida na valsa, no embalo, ao sabor das conveniências, fruto de sua tibieza, de sua personalidade vacilante e oportunista.

A verdade é que tenho restrição a quem quer parecer bonzinho para todo mundo, do tipo que não diz não, do que só discorda se for conveniente fazê-lo, se for para agradar o interlocutor, para comprovar, definitivamente, a sua condição de subserviente. Por tudo isso é que, tal qual o grande ator, são mais do que justificadas as suspeitas que todos nós temos do cara legal, no sentido aqui refletido, claro.

Eu, de minha parte, prefiro o cara verdadeiro, franco, direto, objetivo, que age sem enleio, sem titubeio, sem indecisão, sem que isso signifique ser colérico, sem que, por ser assim, seja descortês ou deselegante, pois podemos, sim, ser afáveis sem ser subservientes.  Não precisa, pois, ser mal-educado, zangadiço ou conflituoso para ser verdadeiro e crível. Basta não ser oportunista, titubeante, disfarçado, dissimulado, falso manso, falso cortês, moderado de aparência ou sereno por conveniência.

Todos podem, sim, se mostrar convictos, ter firmeza de posições, ter gênio e caráter fortes, sem ser mal-educados, convivendo bem e civilizadamente, mesmo com aqueles com os quais não concorda.

A verdade é que, no mundo em que vivemos, há uma multiplicidade enorme de caráter, alguns do quais são simplesmente abomináveis, mas toleramos, somos compelidos a suportar, pelo bem da convivência.

Decerto que o bonzinho, o afável, o cordato, o amigo de todos, o cara legal, enfim, nem sempre é, necessariamente, um mau caráter. Contudo, embora não o seja, tem algo abominávell que lhe distorce a personalidade, que é fato de querer agradar a todo mundo, motivo pelo qual ele não assume posições, parecendo, nesse cenário, não ser confiável, porque costuma dizer o que o interlocutor quer ouvir e não a verdade que deve ser dita.

Quanto a mim, não sou do afago fácil, da tapinha nos ombros, do elogio gratuito, do sorriso fácil e oportunista, mas ainda prefiro ser como sou, embora algumas pessoas vejam como defeito essa minha maneira de ser.

Portanto, aquele que está sempre disposto a concordar, que não perde a oportunidade para se fazer simpático, que quer estar de bem com todo mundo, parece, aos meus olhos e de muitos, que está sempre dissimulando, usando a arma da simpatia aparente para esconder algo, para aparecer bem na fita, como se fosse amigo de todo mundo; e, por mais que queiramos, isso nunca será possível.

“SÓ ME ARREPENDO DAQUILO QUE NÃO FIZ”

balanca2Um dia desses, tive oportunidade de ouvir numa emissora de rádio, uma entrevista com uma destacada pessoa do show business. Em determinado momento, o entrevistador pediu ao entrevistado que declinasse algo que tivesse feito e em razão do que teria se arrependido. Ele, sem titubeio, sem enleio ou meias palavras, respondeu que: “de tudo que viveu, só guardava arrependimento pelo que não fez”.

Essa afirmação, pela sua relevância, me levou a essas reflexões, conquanto já a tivesse ouvido em outras oportunidades, pois não acredito, sinceramente, que alguém tenha passado pela vida e não tenha se arrependido de nenhum ato praticado.

A estupefação foi maior, porque logo me imaginei sendo entrevistado e instado a responder a mesma pergunta. Eu não perderia a oportunidade de enumerar os arrependimentos que permeiam a minha vida, um dos quais, seguramente, foi ter levado a vida muito a sério desde a mais tenra idade, esquecendo-me, muitas vezes, de ser criança quando era apenas uma criança, antecipando, quiçá injustificadamente, as preocupações que deveriam ser próprias dos adultos.

O certo é que, instado a refletir em face da entrevista, e ainda que não tivesse que responder a nenhuma indagação, fiz, de súbito, uma retrospectiva, brevíssima, da minha vida, e conclui, sem dificuldades, que havia cometido muitos erros, como o que antecipei acima, em razão dos quais me arrependo até os dias atuais.

Penso, sinceramente, que só uma pessoa muito arrogante, que se imagina autossuficiente, ou insensível, ou do tipo que prefere o autoengano, pode afirmar, por vaidade ou por precipitação, que tenha passado pela vida sem praticar qualquer ato em razão do qual não tenha se arrependido.

Já tive a oportunidade de refletir, aqui mesmo nesse espaço, sobre falsos apotegmas que, para mim, traduzem, muitas vezes, apenas um perigoso excesso de autossuficiência – quando não arrogância -,como ocorre, por exemplo, com quem diz que “se pudesse voltar no tempo, faria exatamente tudo do mesmo jeito”, ou com quem afirma, peremptoriamente, como fez o entrevistado, que declarou só ter se arrependido na vida daquilo que não fez, como se tivesse plena convicção de que, se fizesse o que não fez, o faria acertadamente, infalivelmente.

Afirmações arrogantes como as aqui mencionadas se contrapõem, afrontam, hostilizam, a mais não poder, a lógica da vida. Afirmações como essas, digo mais, são uma agressão ao bom senso, à nossa condição de seres humanos.

Melhor mesmo, tenho consignado nos meus escritos, é ser humilde, é admitir que erramos, que somos falíveis, é constatar que não se muda de vida, de conduta ou de comportamento com arrogância, pois prepotência e arrogância são péssimas conselheiras.

Não é possível viver sem atropelos, sem errar, sem cair aqui e levantar acolá. É normal seguir por uma via equivocadamente escolhida e ter que mudar de direção. Daí a conclusão de que os que dizem que  só se arrependem do que não fizeram são do tipo que, mesmo enxergando os erros, ou sabendo que não fizeram a escolha certa, e que podem, por isso, ter prejudicado alguém pelo erro ou por uma má conduta,  ainda assim, por lhes faltar humildade, preferem dourar a pílula; são do tipo que deprecia a inteligência alheia, para quem os erros estão sempre nos outros, para, nesse passo, proclamarem a sua infalibilidade.

Até aonde a minha vista alcança, nenhum ser humano, desses iguais a nós, passou pela terra sem cometer erros, conquanto possa, até, em razão deles, não ter se arrependido, por pura arrogância. Admitir o contrário é crer no ser humano infalível, tipo semideus, desses que vêm à terra por descuido.

Eu, diferente de muitos, já me arrependi incontáveis vezes do que fiz e do que deixei de fazer. Posso citar alguns exemplos. Arrependo-me, até hoje de não ter seguido o magistério, concomitantemente com a magistratura, anotando, todavia, que não foi por falta de oportunidade que deixei de viver essa fantástica experiência, mas por falta de segurança e também por eu me julgar incompetente e imaturo.

Arrependo-me, ademais, de ter me dedicado exclusiva e diuturnamente ao trabalho, razão pela qual deixei de fazer outros cursos para complementar a minha formação humanista.  É que, ingressando na magistratura, perdi o horizonte, pois só o fato de ser juiz já me bastava, e estudar nos melhores manuais me parecia o suficiente. Nessa faina, fixei residência nas minhas comarcas e me dediquei de corpo e alma, tempo integral, ao honroso mister, estreitando o meu campo de visão.

Nos dias presentes, passados tantos anos, e com a minha carreira consolidada, nada mais me importa se não procurar fazer tão bem feito quanto possível o que me propus a fazer, na certeza de que, por não ser infalível, continuarei a errar, embora lutando sempre para minimizar os meus erros.

O tempo passou e ficou para mim apenas o arrependimento pelo que não fui capaz de realizar e pelo que fiz equivocamente, a reafirmar que eu, diferente de muitos, me arrependo de muitas coisas que fiz e muito mais ainda do que deixei de fazer por falta de experiência, covardia, insegurança, conveniência, preguiça ou acomodação.

 

O MAGISTRADO FRENTE AOS DILEMAS MORAIS E LEGAIS

20No mundo da relatividade, todos nós enfrentaremos, mais cedo ou mais tarde, inauditos dilemas morais, sem saber, muitas vezes, que posição assumir. Pensemos, por exemplo, no dilema moral de alguém que tivesse a tortura como única alternativa para impedir que um maluco, na direção de um caminhão, passasse por cima de uma multidão, como aconteceu recentemente em Nice, na França.
Decerto que, por princípio, todos nós somos contra a tortura. Todavia, convém ponderar, diante da iminência de um fato de tamanha gravidade, qual de nós, diante do dilema moral acima referido, deixaria de coonestar com a tortura de um homem perigoso, para evitar um mal maior?
Estas reflexões destinam-se aos que pensam que podem, em todas as situações, optar pelo que a lei e a ética recomendam, sem se darem conta de que, entre o discurso politicamente correto e a vida real, há, muitas vezes, um fosso tão grande, um verdadeiro abismo moral, a nos compelir a agir de modo diverso do que pregamos e do que supomos civilizado.
Em vários julgamentos dos quais faço parte, quer como relator, quer como vogal, tenho dito que o dilema moral enfrentado por qualquer um que não tenha o poder de decisão não é, de rigor, um dilema insuperável, pois, basta assumir uma posição, e dela não advirão maiores consequências.
Problema grave, conforme tenho reafirmado, é quando o dilema moral se apresenta casado com um dilema legal, que deve ser enfrentado por quem tenha a obrigação de decidir, por quem tenha, enfim, o poder/dever de julgar. Aí a coisa se complica, pois, diante de um dilema moral e, além do mais legal, não se pode, como costuma brincar Luís Roberto Barroso, declarar a demanda empatada e condenar o secretário judicial às custas processuais.
Pense, a propósito, no dilema legal/moral que vou narrar a seguir, um dos muitos que os juízes de todo Brasil têm que enfrentar no desempenho de suas funções, para que se tenha pelo menos uma parcial ideia do que seja a vida de um julgador.
Manter relações sexuais ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos é crime, mais precisamente estupro de vulnerável, conforme a dicção do artigo 217-A, do Código Penal, com preconização de pena que vai de 8(oito) a 15(quinze) anos de reclusão.
Pela letra fria da lei, pode-se concluir, sem esforço intelectivo, que diante de um ato sexual, ou qualquer outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, praticado contra uma menor de 14(quatorze) anos, está-se diante de um crime de estupro de vulnerável, cujo autor deve ser punido com as penas preconizadas no tipo penal em comento, e estamos conversados. Afinal, em se tratando de menor de 14 anos, a vulnerabilidade, por questão de política criminal, é absoluta, segundo a maioria dos Tribunais brasileiros. É dizer, objetivamente: o agente que mantiver relação sexual com menor de 14 anos ou que com ela pratique outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, pratica, ex vi legis, crime de estupro de vulnerável, sejam quais forem as circunstâncias do crime, conquanto muitos reconheçam, como eu, que, interpretando assim a lei, ou seja, com a consideração de ser sempre absoluta a vulnerabilidade, muitas injustiças são cometidas.
Vou tentar explicar por que entendo que a consideração de vulnerabilidade absoluta pode nos conduzir à pratica de injustiças, a partir de uma hipótese que não é incomum no dia a dia de qualquer comunidade, de qualquer magistrado, enfim.
Pois bem. Um cidadão, maior de 18 anos, vive com uma menor de 14 anos, sob o mesmo teto, como se marido e mulher fossem, na companhia de um filho havido dessa união, fato do conhecimento e aquiescência dos próprios pais da menor e dos cidadãos da comunidade em que vivem. Esse mesmo cidadão, um criminoso pela letra fria da lei é, paradoxalmente, um homem de bem, trabalhador, honesto, de conduta ilibada, que vive para o filho menor e para a companheira.
Contudo, com todos esses predicados e nessas condições, ele pode, como antecipei acima, em face da letra fria da lei (artigo 217-A, do CP) e em vista do entendimento que prevalece em nossos Tribunais, ser processado e condenado em face do crime de estupro de vulnerável, por manter relações sexuais com uma menor que, no caso, é sua companheira, mãe do seu filho. É dizer: pela letra fria da lei, o Estado, pelos seus tentáculos, pode aqui interferir não para preservar a família, mas para desagregá-la, a pretexto de punir alguém por crime de estupro, sem que o bem jurídico, de rigor, tenha sido lesionado.
Diante desse fato, importa indagar: se o principal objetivo do preceito legal em comento é proteger a liberdade sexual da pessoa vulnerável, haveria sentido em uma decisão judicial condenatória, a pretexto de proteger a liberdade sexual da ofendida, tratando-se de mulher que já vive maritalmente com o autor do fato, com experiência sexual inquestionável, e, ademais, com um filho havido desse relacionamento?
Essas reflexões decorrem da minha inquietação em face de decisões de alguns sodalícios, no sentido de presumir absoluta a violência, como antecipei acima, nos casos da prática de ato sexual ou de qualquer outro ato libidinoso, com menor de 14 anos, levando em conta, por excesso de rigor formal, o patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade, com esteio numa ficção jurídica que nem sempre encontra amparo no mundo real, a colocar muitos magistrados diante de um grave e inquietante dilema moral e legal, que só pode ser superado pelo bom senso, sem apego rigoroso ao texto da lei, que nem sempre é capaz de conduzi-los à decisão mais justa.
Não consigo assimilar, sem certa inquietação, que o critério biológico adotado pelo legislador é o quanto basta para se aferir a capacidade de discernimento para ato sexual, sem levar em conta, dentre outros aspectos, o consentimento da ofendida, por exemplo, ou o fato de já viver maritalmente com o pretenso criminoso, como exemplificado acima.
Esse é um dos muitos dilemas morais e legais que me têm afligido como, de resto, devem afligir muitos magistrados que, assim como eu, não deixam de se inquietar quando, para fazer justiça, são compelidos a relativizar os rigores da lei, como, afinal, deve ser feito na hipótese sob retina, pois, para mim, casos de igual matiz autorizam a absolvição do acusado por atipicidade da conduta, uma vez provada, quantum satis, a capacidade de consentir, em face mesmo de uma situação jurídica já consolidada, desconsiderada a idade biológica da vítima.

Obediência ao rito

stf2-300x214Samuel Wainer, em Minha Razão de Viver, festejado livro de memórias, narra uma experiência fantástica que viveu, como jornalista, numa das suas andanças pela Europa, de 1945 a 1947. O saudoso jornalista narra que, no julgamento dos chefes do governo Vichy, uma espécie de sucursal francesa do regime nazista, os grandes réus eram o marechal Philippe Pétain e o ex-primeiro ministro Pierre Laval.
Pierre Laval, inconformado com a acusação, passou a lutar tenazmente pela sua absolvição, tarefa que se mostrou impossível, uma vez que o júri foi formado por parentes das vitimas do governo Vichy. Contudo, ainda assim, Laval resolveu lutar pela sua sobrevivência, o que resultou embalde: foi condenado à morte; inconformado, tentou suicidar-se.
Ocorre, entrementes que, na França, a condenação à morte era um ritual que precisava ser cumprido estritamente. E como Laval ingeriu veneno na véspera da data marcada para o seu fuzilamento, os médicos franceses tentaram de todas as formas reanimá-lo, tendo conseguido fazer com que ele não morresse antes da hora da execução, razão pela qual foi levado moribundo ao local onde seria fuzilado. Depois dos tiros, para alivio geral, conclui-se que o ritual tinha sido obedecido, rigorosamente.
A observância rigorosa – a ferro e fogo, diria – do ritual, no caso acima narrado, remete essas reflexões ao que acontece, respeitadas as particularidades, no mundo do direito, em face de algumas postulações radicais de nulidade, por inobservância de uma formalidade menor.
Devo dizer, inobstante, que diferente do que ocorreu no famigerado episódio envolvendo o primeiro-ministro Frances, no mundo do direito não é qualquer inobservância de formalidade que autoriza a anulação de um processo.
É cediço que o processo é formal, e, como todos sabem, há um rito a ser seguido, um caminho a ser trilhado. Como ensinam Eugenio Pacelli e Douglas Fischer, o processo é uma atividade ordenada, no sentido de chegar ao final, que é a decisão judicial. É um caminhar para frente, não para os lados, nem para trás, concluem.
O processo, é sabido, não admite, em princípio, atos praticados fora do rito estabelecido. A observância do rito, portanto, é de rigor. Mas não diria, como antecipei acima, que ele deva ser observado a ferro e fogo, razão pela qual não é qualquer desobediência a uma formalidade que leva um feito à anulação. Há, sim, um rito cuja obediência se impõe a todos quantos nele trabalhem. Todavia, convém repetir, a obediência ao rito não deve ser levada às últimas consequências. É que, nesse caso prepondera, também, a relatividade, como tudo na vida.
É verdade comezinha, mas convém reafirmar para dar sentido a essas reflexões, que nem toda desobediência ao rito impõe a anulação de um processo. Há que se observar, no caso das nulidades, a regra do pas de nullité sans grief, como, aliás, bem explicitado no HC n°104.648, STF, 2ª Turma, Rel Min. Teori Zavascki, julgado em 12.11.2013, publicado no DJ em 25.11.2013, segundo o qual “para o reconhecimento de nulidade dos atos processuais, relativa ou absoluta, exige-se a demonstração do efetivo prejuízo causado à parte”.
Na mesma senda tem decidido o STJ, segundo o qual “alegações genéricas de nulidade, desprovidas de demonstração do concreto prejuízo, não podem dar ensejo à invalidação da ação penal”, sendo imprescindível a prova do prejuízo, uma vez que o artigo 563 do Código de Processo Penal positivou o dogma fundamental da disciplina das nulidades – pas de nullité sans grief (Habeas corpus nº 229.007-RN, STJ, 5ª Turma, Rel Min. Laurita Vaz, julgado em 15.08.8.2013, publicado no DJ 26.08.2013).
A prova do prejuízo é, portanto, fundamental. Não basta alegar a existência da nulidade. É preciso ir além, como sói ocorrer. Em outras palavras: se, mesmo sem observância ao rito, o processo alcançou o seu desiderato, se não houve prejuízo ao contraditório e à ampla defesa, não há que se falar em nulidade.
Anoto que provar o prejuízo, diferente do que pensam alguns, não é apenas alegar a sua existência, e que prová-lo, ademais, não é algo inalcançável, não é algo inviável, improvável, como argumentam alguns profissionais do Direito.
Há, sim, muitas possibilidades de se consignar em ata eventual prejuízo, como pode ocorrer, por exemplo, quando o advogado faz anotar na assentada que está impossibilitado de questionar uma testemunha, ou mesmo de contraditá-la, em face de o réu não estar presente para lhe auxiliar com tal e qual informação, na hipótese, preso, não ser apresentado ou deixar de se fazer presente em face de não ter sido intimado para o ato.
Malgrado exposto, no dia a dia, o que se tem testemunhado é a pretensão de nulidade, em face da inobservância do rito, como se o prejuízo fosse uma decorrência lógica, o que não é verdade.
Logo, não se pode, por conta de uma simples alegação de nulidade, em face da inobservância de determinada formalidade, pura e simplesmente anular o processo, pois que não se pode perder de vista as conseqüências de uma decisão desse jaez, que pode, inclusive (e não é incomum), levar à prescrição.
Por isso, tenho dito, sem radicalizar, que as formalidades devem ser observadas, sim, mas não podem ser levadas às últimas consequências, como se deu no famigerado julgamento a que fiz referência acima, à guisa de ilustração.

OS DONOS DA VERDADE

themisNada é mais danoso para as relações que a soberba, a vaidade, a pretensão de ser dono da verdade, de saber o rumo certo, a direção, o caminho a ser seguido. Pessoas que pensam e agem assim, vivem sem se dar conta, na maior solidão, isoladas do mundo, encapsuladas, pois são do tipo que, julgando que se bastam, têm uma visão equivocada do mundo. Vivem como aquela mosca de uma fábula muito conhecida, a qual, estando pousada em cima de um cavalo que puxava uma carroça muito pesada, se ofereceu para sair de cima dele para aliviar-lhe o peso, numa visão equivocada da sua real importância.
A mosca da fábula não é muito diferente daqueles cuja soberba lhe oblitera a alma e a conduta, que mesmo tendo pouco ou nenhuma importância, pensam estar podendo, imaginam ser muito mais do que efetivamente são. Daí a inexorabilidade do seu isolamento.
Não sei lidar bem com essas pessoas, uma vez que tenho uma enorme dificuldade de conviver com os que se imaginam proprietários da verdade, como se esta pudesse, como qualquer objeto de consumo, ser comprada no comércio. Esses tipos esquisitos não se dão conta de que não existe verdade prêt-a-porter. Não percebem, enfim, por vaidade ou visão equivocada, que habitam o mundo da relatividade.
No mundo dos mortais ainda não nasceu ninguém que possa se intitular dono da verdade, conquanto haja entre esses mesmos mortais os que se arvoram proprietários dela, a ponto de, em defesa do seu ponto de vista, tentar desqualificar o autor do enunciado, ao invés de se deter no próprio objeto do conhecimento.
Os que se imaginam donos da verdade, creem, no mesmo passo, em face desse enorme equívoco de percepção, que estão sempre certos. Para eles, o erro, o equívoco ou a percepção equivocada estão sempre com o interlocutor. Por isso, são histriônicos, tentam ganhar no grito, dando murros na mesa, sem parar para ouvir o ponto de vista adverso; gritam, ao invés de melhorar o argumento (Desmond Tutu).
Nessa senda, convém lembrar Elio Gaspari, para quem “a convicção de estar sempre certo nos impede de reconhecer que somos capazes de errar”, razão por que vivem em permanente solidão, na suposição, também equivocada, de se bastarem a si mesmos (Vinicius de Morais).
É oportuno chamar à colação, a propósito, lapidar reflexão do ministro Luis Barroso, segundo o qual “quem pensa diferentemente de mim não é meu inimigo”, para, na mesma linha, argumentar que “a verdade não tem dono e que respeitar o outro e conviver com a divergência não significa abrir mão de si próprio”.
É preciso aceitar o pluralismo e a diversidade. Pena que há os que não aceitam a diversidade como algo natural, pensam solitariamente e não aceitam a divergência, porque a veem como uma afronta. Por isso, ao invés do argumento contrário, focam a sua reação na pessoa de quem o enuncia, numa lamentável reafirmação desse péssimo hábito brasileiro de que a melhor atitude é desqualificar moralmente quem está do lado oposto.
Nas confrarias, a falsa percepção da realidade, a impressão de ter se apoderado da verdade é ainda muito mais grave. Por isso, a advertência de Carnelutti, que não pode ser esquecida pelos que têm a difícil missão de julgar o semelhante: “Infelizmente, os juízes erram tanto mais facilmente quanto mais seguros estão de não errar”.