“VAI DAR ERRADO”

Muitos de nós testemunhamos quando o ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento que restringiu o alcance do foro privilegiado, teceu críticas severas contra os juízes de primeiro grau, os quais, como sabido, em face do julgamento em comento, devem assumir os processos deflagrados contra políticos agora sem prerrogativa de foro, nas hipóteses contempladas na decisão.

Em determinado momento de sua fala, o ministro disse, dentre outras coisas, que o sistema de Justiça Criminal, nos diversos estados da Federação, é disfuncional e não está preparado para julgar os detentores de foro.

Mais adiante, de forma, para mim, pouco respeitosa, disse que, com “essa gente”, se referindo ao juízes e membros do Ministério Público, a situação vai ser pior que no Supremo, para, adiante, prognosticar: “Vai dar errado”.

Abstendo-me de julgar o ministro em face da maneira deselegante como se dirigiu a nós outros, acho que, em face de sua afirmação, é preciso uma seríssima reflexão, pelo que ela contém de verdadeiro.

É necessário, sim, sem falsos pruridos, sem fazer beicinho e sem fingir indignação, admitir que a afirmação do ministro, conquanto pouco respeitosa, traduz, sim, uma realidade que precisa ser encarada, se pretendemos mudar a realidade.

A verdade é que, com a restrição do foro privilegiado, jogou-se sobre os ombros dos juízes, promotores e polícia judiciária dos estados uma enorme responsabilidade que, confesso, não sei se estamos preparados para enfrentar, como advertiu o ministro, em face, dentre outras razões, das nossas reconhecidas limitações estruturais.

Não bastasse o reconhecimento das nossas limitações estruturais, é bem de se ver, com mais preocupação que, historicamente, não temos dado aos feitos criminais, pelo menos na Justiça Estadual, o mesmo tratamento que tem sido dado aos feitos cíveis, a contribuir decisivamente para impunidade.

Não fosse suficiente esse histórico “desprezo” para com os feitos criminais, é forçoso admitir, de mais a mais, que, também historicamente, as instâncias de controle dos Estados – aqui considerados Poder Judiciário, Ministério Público e Polícias – não têm sido rigorosas, como deveriam, com os criminosos do colarinho branco, os quais, como regra, pelos mais diversos motivos, têm passado à ilharga das instâncias de controle.

Por essas e outras razões, existe no ar, exalando péssimo odor, uma forte probabilidade de a população se decepcionar com a expectativa de que, aqui embaixo, longe do foro por prerrogativa de função, os processos andarão e que, como num passe de mágica, a turma do andar de cima será penalizada exemplarmente. Contudo, não será assim, posso garantir, se persistirem – e a tendência é a manutenção do status quo – as coisas como sempre foram.

Posso afirmar, com pouca probabilidade de estar errado, que tudo ficará como antes: aqui, assim como no Supremo, as demandas em desfavor dos que se acostumaram a passar à ilharga das ações dos órgãos de controle continuarão sem uma resposta efetiva, imunes, portanto, às nossas ações, salvo uma ou outra punição, aqui e acolá, pontualmente, para confirmar a regra.
Torço, sincera, mas desesperançadamente, para que o ministro não tenha a oportunidade de, daqui a alguns anos, dizer que tinha razão quando afirmou que não ia dar certo, e que não se podia mesmo contar com “essa gente”.

Eu espero, sim, com sofreguidão, mas ao mesmo tempo tomado da necessária prudência, que, sobretudo os juízes e promotores estaduais, deem uma resposta positiva à sociedade, devido à expectativa que se criou em torno da questão, conquanto desconfie dessa possibilidade, uma vez que, mesmo os processos criminais contra os desvalidos, não têm merecido de nós a necessária atenção, muitos deles sendo levados à prescrição.

Importa anotar que, quando falo em resposta positiva à sociedade, como o fiz acima, não me refiro, necessariamente, ao desfecho condenatório. Refiro-me, sim, à solução do conflito, seja para condenar, seja para absolver, pois, afinal, a justiça não é eficaz apenas quando pune, mas também quando é capaz de, a tempo e hora, decidir as questões submetidas a julgamento, sem tardança e sem delongas, pronta e eficazmente.

À luz do que expus acima, a minha esperança agora é que, numa guinada exemplar, as instâncias de controle dos Estados, comandadas por “essa gente”, apliquem um duplo twist carpado na indolência, um upper de esquerda no queixo da indisposição, um cruzado à altura do fígado da acomodação e um salto mortal na indiferença, dando, com essa necessária mudança de conduta, uma resposta exemplar à sociedade, em face das expectativas criadas em torno da nossa ação, pois só assim reverteremos o quadro de impunidade que ainda é uma regra entre nós, em se tratando de criminosos do colarinho branco.

É isso.

A PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

“[…]Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade[…]”

 

Volto ao tema porque ainda persiste, infelizmente, como um pesadelo para quem almeja uma sociedade mais justa e menos seletiva, a possibilidade de ser revista pela nossa Corte Suprema a prisão em segunda instância, medida que, desde o meu olhar, chegou em boa hora, pois, com ela, finalmente, estamos testemunhando reais perspectivas de as instâncias de controle alcançarem, como nunca o fizeram realmente, os que sempre se valeram das deficiências e da falta de efetividade do sistema, para se safarem da persecução penal, conquanto tivessem praticado crimes de especial gravidade, de consequências imensuráveis/deletérias para o conjunto da sociedade.

Muitos, incontáveis são os artigos escritos sobre a seletividade do sistema penal. Eu mesmo, neste mesmo espaço, e no meu blog – www.joseluizalmeida.com –, já tive a oportunidade de, reiteradas vezes, denunciar essa deformação/seletividade do nosso sistema, que, como lembrou Luís Roberto Barroso, no julgamento do HC 152/752, só prende menino pobre com 100 gramas de maconha, fechando os olhos para o agente público ou privado que desvia 100 milhões de reais.

Retomo o tema acerca da prisão em segunda instância apenas para reafirmar o óbvio que uns poucos preferem não admitir, por conveniência e/ou por interesse, ou seja, que aguardar o cumprimento de pena para só depois de esgotadas todas as vias recursais, é, tão somente, reafirmar o que o mais ingênuo dos mortais já sabe: que o sistema penal brasileiro, disfuncional como é, voltará a ter as suas ações destinadas, como sempre foi – por isso o registro que fiz no parágrafo anterior -, apenas para a sua clientela preferencial, para a qual, de forma evidente, não são assegurados, objetivamente, os mesmos instrumentos recursais que favorecem a uma minoria que, de tão privilegiada pelo modelo, se considera e se assume imune às ações das instâncias de controle.

Nessa perspectiva, ou seja, da iminente volta ao modelo anterior que tanto mal fez ao Brasil, ao consagrá-lo como país da impunidade, consolidar-se-á uma outra obviedade, qual seja, a existência, por essas bandas, de duas classes distintas de criminosos, numa clara e frontal ofensa ao princípio da igualdade: i-a classe dos que sucumbem/sucumbirão diante do sistema, que sempre existiu para punir pobres, e ii -a classe dos que sempre se safaram/safarão, como regra, em face da ação persecutória estatal, tendo a socorrê-los o nosso horroroso/danoso/disfuncional modelo recursal, que tem se prestado a levar os feitos à prescrição, favorecendo, como regra, aos criminosos do andar de cima.

É dizer: voltando-se ao modelo anterior, ou seja, a possibilidade da execução da pena somente depois de esgotadas todas as vias recursais, em face de uma interpretação constitucional que não condiz com a realidade brasileira, o sistema penal, definitivamente, não alcançará os grandes criminosos, aqueles que podem contratar as grandes bancas de advocacia, sabido que, em relação à quase totalidade da clientela do Direito Penal, nada muda, pois a ela (clientela) será sempre destinada – como sem o foi, reitere-se – a prisão em face de uma decisão de segunda instância, que é o que efetivamente ocorre na prática.

A verdade é que essa discussão acerca da prisão depois da segunda instância só ganhou destaque nos dias atuais em face da mudança de paradigma que se deu com a Lava Jato. Continuasse o sistema penal – como ainda se dá na absoluta maioria de casos que chegam ao Poder Judiciário, fruto da nossa proverbial leniência com os criminosos de colarinho branco – agindo seletivamente, como tem feito historicamente, não haveria insurgência alguma em face da prisão em segunda instância, que, de rigor, é o que sempre ocorre em face dos miseráveis, para os quais são negados, na prática, por motivos de todos conhecidos, os mesmos instrumentos recursais que são utilizados, à exaustão, pelos que podem pagar grandes bancas de advocacia.

A verdade é que, se as instâncias de controle não tivessem, num determinado momento da nossa história, abandonado um pouco a seletividade do Direito Penal, que, efetiva e prioritariamente, pune apenas os miseráveis, ninguém estaria se insurgindo contra a prisão em segunda instância, que, repito, sempre foi a regra, ainda que não escrita, para a quase totalidade dos condenados, egressos, como regra, das classes menos favorecidas.

É bem de ver-se, pois, que essa luta renhida que se trava em face da prisão em segunda instância não decorre do apego empedernido ao texto constitucional, ao princípio da presunção de inocência, pois, o que se pretende mesmo, é livrar da cadeia uma elite criminosa, que historicamente passou à ilharga da persecução criminal.

Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade.

A verdade é que o modelo que estava aí – prisão somente depois de esgotados todos os recursos – não serve à sociedade. Ao contrário, esse modelo era um incentivo à prática de crimes de corrupção, pois a certeza de não ser alcançado pelos órgãos persecutórios é um estímulo à criminalidade, estímulo que se revitalizará tão logo se retome o modelo anterior, de triste memória, mas que ainda se coloca sobre a sociedade como uma espada prestes a lhe decepar a esperança.

Como bem anotou Luís Roberto Barroso, em seu magistral voto no HC acima mencionado, a Nova Ordem que se criou com a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal criou condições para que fossem alcançadas pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. A volta da Velha Ordem, como bem lembrou o douto ministro, só beneficiaria duas categorias de malfeitores: i)a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente.

É isso.

BANDIDOS SÃO OS OUTROS

 

“[….]Nesse panorama, é de rigor a constatação de que, em todos as circunstâncias, em todos os eventos, em todas as oportunidades, os equívocos são sempre dos outros, ou seja, dos que estão do outro lado, dos que assumem posições que não se prestam aos interesses dos que estão do lado oposto ou que possam afetar, de qualquer modo, os interesses dos seus amigos, – pois, afinal, para os que se julgam mocinhos, para os que estão em lado oposto, aqueles que não pensam, não agem e não decidem como eles gostariam, devem mesmo ser espezinhados. E as redes sociais, nesse sentido, são o melhor palco, são o ambiente ideal, são o local mais propício, ambiente no qual se pode assacar, com grandes possibilidades de não ser alcançado pelos órgãos de controle social, as críticas mais acerbas, as acusações mais descabidas, daquelas que beiram à incivilidade e à ignomínia, muitas vezes atingindo a honra e o decoro daquele que se elegeu como bandido[…]”.

Dê uma olhada nas mensagens e comentários postados no Facebook, leia as curtas mensagens no Twitter, atente para o teor das cartas enviadas para as redações dos jornais e revistas, observe a participação de ouvintes em rádios AM/FM, ouça os discursos políticos, atente para o que dizem as mais destacadas lideranças nacionais/locais, converse nas filas de banco, dialogue numa mesa de um restaurante ou de um bar, convide os amigos para assistirem a uma partida de futebol, se reúna em volta de uma mesa para uma rodada de vinhos ou para degustar um bom churrasco e constatará, inapelavelmente, pelos discursos/comentários que ouvirá/lerá, pelas posições assumidas, enfim, que vivemos no país dos mocinhos, os quais são sempre os do lado de cá, enquanto os bandidos são os outros, os do lado de lá.

Com a devida atenção, pode-se observar, nesses ambientes – especialmente nas redes sociais (propícias ao escárnio e ao vilipêndio) -, que o vizinho, o torcedor rival, o motorista que disputa o mesmo espaço, o juiz que concedeu ou negou uma liminar, o ministro que soltou ou o que mandou prender, o deputado que votou contra ou o que votou a favor, o promotor que denuncia ou o promotor que não denuncia, o delegado que prende ou o delegado que não prende, todos, enfim, que não pensam e não agem e/ou não decidem de acordo com o que pensam e querem os que se imaginam mocinhos, são sempre os bandidos, são o alvo a ser defenestrado, o alvo a ser atingido, a ser massacrado, a ser enxovalhado, convindo anotar que os mocinhos, sobretudo os que pontificam nas redes sociais, que têm sempre uma crítica mordaz a fazer aos que não pensam da mesma forma que eles, são os que, na vida pessoal, na maioria das vezes, relativizam a moral, que não se acanham de, quando lhes convém, dar um jeitinho, fazer uma traquinice, cujo senso crítico só se mostra atilado quando lhes apraz.

Nesse panorama, é de rigor a constatação de que, em todos as circunstâncias, em todos os eventos, em todas as oportunidades, os equívocos são sempre dos outros, ou seja, dos que estão do outro lado, dos que assumem posições que não se prestam aos interesses dos que estão do lado oposto ou que possam afetar, de qualquer modo, os interesses dos seus amigos, – pois, afinal, para os que se julgam mocinhos, para os que estão em lado oposto, aqueles que não pensam, não agem e não decidem como eles gostariam, devem mesmo ser espezinhados. E as redes sociais, nesse sentido, são o melhor palco, são o ambiente ideal, são o local mais propício, ambiente no qual se pode assacar, com grandes possibilidades de não ser alcançado pelos órgãos de controle social, as críticas mais acerbas, as acusações mais descabidas, daquelas que beiram à incivilidade e à ignomínia, muitas vezes atingindo a honra e o decoro daquele que se elegeu como bandido.

Definitivamente, para os que pensam e agem a partir dos seus interesses, de sua visão unilateral de mundo, à vista de suas idiossincrasias, cujo centro do universo é o próprio umbigo, os mocinhos são eles próprios e os que se alinham ao seu pensamento, ou seja, os que decidem como eles gostariam que decidissem, os que pensam de igual modo ou, numa outra perspectiva, os que defendem e se alinham aos seus interesses. Nesse cenário, os que ousam contrariar os mocinhos, são os néscios que estão a merecer o seu desprezo. Nessa senda, eles, os mocinhos, não perdem a oportunidade de atacar os que julgam ser os bandidos, ou seja, os outros; bandidos por pensarem de modo diverso, por ousarem assumir posições diferentes.

E, nesse afã, para escarnecer o inimigo, nada melhor, repito, que uma página na internet, ambiente ideal para desancar quem pensa diferente, quem ousa discordar, ainda que, nesse alvitre, seja preciso manchar a honra daqueles que são eleitos desafetos, os quais, afinal, aos olhos dos mocinhos, não são dignos de respeito.

No mundo dos que usam as redes para destilar ódio e espargir veneno, constata-se que, do lado de cá, definitivamente – e assim parece estar dividida a sociedade –, estão os mocinhos; do lado de lá, estão os bandidos, considerados como tais até que adiram ao pensamento dos mocinhos ou até que decidam de acordo com as expectativas desses mesmos mocinhos.

Nesse mundo perverso e maniqueísta, o mal está sempre nos outros. Só os mocinhos professam e agem de acordo com o bem, o bom e o justo. Os desonestos são sempre os outros; os honestos são só os que se imaginam mocinhos, pois só estes têm pudor, agem com acerto. E os outros? Bom, os outros, até prova em contrário, são de honestidade duvidosa, a menos, repito, que se aliem ao pensamento dos mocinhos, que cerrem fileiras na defesa dos interesses dos que, imaginando-se mocinhos, são impiedosos com os que elegem bandidos.

No mundo dividido entre mocinhos e bandidos, a tendência é de os primeiros fecharem os olhos para os erros dos seus congêneres – e os seus próprios – e dos que pensam e agem da mesma forma que eles, para, noutro giro, permanecem com os olhos bem abertos e censuradores para os erros dos que elegeram como bandidos.

E assim, nos mais diversos ambientes, o que se ouve é sempre crítica aos outros; sempre aos outros. Nada de autocrítica, uma vez que os erros estão sempre nos outros, assim como os desvios de conduta são sempre protagonizados por estes. Por isso, as redes sociais parecem abrigar um exército de arcanjos, onde vicejam as críticas acerbas e as infâmias assacadas contra os que não rezam pela cartilha dos que se julgam donos da verdade. E tomem críticas e aleivosias, sobretudo aos homens públicos, muitas das quais assacadas por quem, na vida privada, vive protagonizando deslizes morais que só consegue perceber e condenar nos outros.

É isso.

NEURAS

“[…]Fatos como esse que acabo de narrar apenas reafirmam o óbvio, ou seja, que somos todos diferentes, que cada um de nós tem uma percepção diferente, singular, diante das coisas do mundo, motivo pelo qual é muito difícil julgar as atitudes do semelhante, o que não nos impede de continuar julgando o próximo, muitas vezes impiedosamente.
Fatos dessa natureza reafirmam, ademais, ser embalde qualquer tentativa de levar alguém a pensar ou agir como pensamos ou agimos. Cada qual, portanto, no seu cada qual. Cada um é cada um, e suas neuras. Nisso ninguém pode interferir, pois o que me atormenta pode até ser algo prazeroso para outrem{…]”

 

Rica Reinisch, da antiga República Democrática Alemã, a Alemanha comunista, foi uma atleta de ponta, que ganhou uma medalha de ouro, nos 100 metros nado costas na Olimpíada de Moscou, em 1980. Ganhou, depois, quatro medalhas de ouro nos 200 metros nado costa e bateu, duas vezes, o próprio recorde mundial em provas de revezamento.
Como se vê, a atleta tinha tudo para ser feliz, vaidosa, orgulhosa de suas conquistas. Qualquer pessoa, no seu lugar, sentir-se-ia, até, realizada. Contudo, não é isso que se vê, no entanto. Vou explicar.
Em face dos esteróides usados nos treinamentos durante a puberdade, pouco tempo depois ela foi hospitalizada com inflamação crônica nos ovários, vindo a se aposentar aos 16 anos, com o risco de ficar estéril.
Em 1994, foi uma das primeiras atletas a prestar depoimento no processo instaurado para apurar a política de doping da antiga RDA. Mas a neura da atleta, diferente do que se pode imaginar, não foi a possibilidade de ficar estéril. O que a deixa sem chão, o que a torna infeliz, segundo relatou, é que jamais saberá se poderia ter sido a nadadora excepcional que foi se não tivesse se submetido à maquina de fabricar campeões da Alemanha comunista.
Narro esse fato, buscado aleatoriamente na mente e confirmado depois de alguma pesquisa, apenas para dizer que cada um de nós tem as suas próprias neuras, muitas das quais, de rigor, parecem até ilógicas para quem não as tem, daí por que, algumas vezes, não compreendemos como alguém que, tendo tudo para ser feliz, feliz não é, em face de um detalhe, de uma obsessão, algo que, de rigor, não causaria em outras pessoas a menor preocupação, o menor desconforto, a corroborar o quão complexo e complicado é o ser humano.
Fatos como esse que acabo de narrar apenas reafirmam o óbvio, ou seja, que somos todos diferentes, que cada um de nós tem uma percepção diferente, singular, diante das coisas do mundo, motivo pelo qual é muito difícil julgar as atitudes do semelhante, o que não nos impede de continuar julgando o próximo, muitas vezes impiedosamente.
Fatos dessa natureza reafirmam, ademais, ser embalde qualquer tentativa de levar alguém a pensar ou agir como pensamos ou agimos. Cada qual, portanto, no seu cada qual. Cada um é cada um, e suas neuras. Nisso ninguém pode interferir, pois o que me atormenta pode até ser algo prazeroso para outrem.
O mundo, reafirmo o óbvio, é habitado por uma variedade infinita de personalidades, cada uma delas administrando as suas neuras, à sua maneira. Por isso, o que me apraz pode ser o que o vizinho abomine. Daí a razão pela qual deixamos de nos identificar com umas pessoas para nos derretermos de simpatia por outras.
Em face das nossas neuras, pessoas que abominamos são, muitas vezes, adoradas por outras, dado que nos causa, sem espanto, até uma certa inquietação, própria de quem não conhece o ser humano, se é que é possível conhecer essa máquina tão complexa.
Eu, como qualquer ser humano, também tenho as minhas neuras, algumas das quais creio que jamais incomodariam qualquer pessoa minimamente sã; mas a mim me incomodam, sem que eu permita – tento, pelo menos – que saiam da minha esfera individual para incomodar as pessoas que estão no meu entorno.
Mas as minhas neuras, antecipo em dizer, não me fazem um ser de difícil convivência, como podem atestar os que me conhecem como efetivamente sou. Procuro, sim, não me infelicitar – e nem infelicitar as outras pessoas – em face delas, pois com elas não travo nenhuma batalha; simplesmente não me permito dar a elas liberdade de ação para me dominarem.
Para administrar as minhas neuras, procuro não ir além e nem ficar aquém. Procuro, sempre, um ponto de equilíbrio, conquanto admita não ser algo muito fácil de alcançar. Nesse afã, não antecipo derrotas e nem vibro com a vitória que ainda não veio.
Quando cuidamos de neuras, a verdade é que somos todos incompreendidos. O que me irrita, o que me causa estupor e, até, revolta – sem me infelicitar, repito -, pode não ser capaz de irritar o mais irritadiço dos homens, a reafirmar, também por isso, as nossas diferenças, a reafirmar que cada um de nós é único.
É isso.

A reação em face do retrocesso

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“[…]Ante a certeza do retrocesso que virá com a mudança de entendimento do STF o único antídoto contra a impunidade seria, a meu sentir, fruto da experiência que acumulei em mais de 30 anos lidando com essas questões, a determinação dos juízes brasileiros de priorizarem os feitos criminais, numa verdadeira cruzada tenaz/cívica/moralizadora, sabido que, historicamente, referidos processos têm sido tratados com certo desprezo, como se de segunda categoria fossem, e para os quais, por isso mesmo, não se têm dado a devida atenção, de cuja omissão tem resultado, fácil constatar, a danosa sensação de impunidade que a todos nós nos incomoda, pois não são poucos os que são fulminados pela prescrição, cuja extinção da punibilidade tem ocorrido ainda em segunda instância[…]”

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Porque o tema está na ordem do dia, convém recordar alguns detalhes da decisão histórica e revolucionária do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito da prisão em segunda instância, para, ao final, expor a minha sugestão para tentar superar o revés que decorrerá da iminente mudança de orientação da nossa Suprema Corte.Pois bem. O STF entendeu, no mês de outubro de 2016, que o artigo 283, do Código de Processo Penal, não impede o início da execução da pena após uma condenação em segunda instância e, nesse sentido, indeferiu liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44.
Todos haverão de lembrar que o Partido Nacional Ecológico (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), autores das ações, pretendiam a concessão da medida cautelar para suspender a execução antecipada da pena de todos os acórdãos prolatados em segunda instância. Alegaram que o julgamento do Habeas Corpus (HC) 126292, em fevereiro deste ano, no qual o STF entendeu possível a execução provisória da pena, vinha gerando grande controvérsia jurisprudencial acerca do princípio constitucional da presunção de inocência, porque, mesmo sem força vinculante, tribunais de todo o país passaram a adotar idêntico posicionamento, produzindo uma série de decisões que, deliberadamente, ignoram o disposto no artigo 283 do CPP.
O caso começou a ser analisado pelo Plenário em 1º de setembro, quando o relator das duas ações, ministro Marco Aurélio, votou no sentido da constitucionalidade do artigo 283, do CPP, concedendo a cautelar pleiteada.
Contudo, com a retomada do julgamento, prevaleceu o entendimento de que a norma em comento não veda o início do cumprimento da pena, após esgotadas as instâncias ordinárias. O Ministro Edson Fachin inaugurou a divergência, dando ao artigo 283 do CPP interpretação conforme a Constituição, afastando aquela segundo a qual a norma impediria o início da execução da pena quando não esgotadas as instâncias ordinárias. Ele defendeu que o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso a cortes superiores.
Fachin destacou que a Constituição não tem a finalidade de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão com a qual o réu não se conforma e considera injusta. Para ele, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar ao STF e ao STJ exercer seus papéis de uniformizadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional. Retomar o entendimento anterior ao julgamento do HC 126292, pontuou o ministro, não é a solução adequada e não se coaduna com as competências atribuídas pela Constituição às cortes superiores. Por fim, afastou o argumento de irretroatividade do entendimento jurisprudencial prejudicial ao réu, entendendo que tais regras se aplicam apenas às leis penais, mas não à jurisprudência.
O ministro Luis Roberto Barroso, de seu lado, argumentou, a propósito, seguindo a divergência inaugurada pelo Ministro Luis Edson Fachin, ser legítima a execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado para garantir a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos por ele tutelados, aduzindo que, no seu entendimento, a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais que têm a mesma estatura. “A Constituição Federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do estado”, afirmou. “A presunção da inocência é ponderada e ponderável em outros valores, como a efetividade do sistema penal, instrumento que protege a vida das pessoas para que não sejam mortas, a integridade das pessoas para que não sejam agredidas, seu patrimônio para que não sejam roubadas” (Fonte: sitio do STF).
Feitos os registros sobre a questão jurídica em comento, devo admitir agora, tomado de desalento, que tenho a exata percepção de que essa decisão será revista proximamente, o que, admitamos, será um grande retrocesso no combate à criminalidade, logo agora que temos assistido a uma quebra auspiciosa de paradigma que decorre das ações implacáveis da Lava-jato, voltadas precipuamente a uma elite encastelada no Poder e que, de rigor, salvo uma ou outra exceção, sempre esteve imune às ações persecutórias.
Os que cerram fileiras pela mudança de entendimento do STF argumentam – para mim sem razão, mas essa é outra vertente que não será analisada aqui – que a interpretação da maioria fere a Constituição brasileira. Eu, cá do meu lado, tenha uma compreensão um pouco diferente e mais realista, e, nesse sentido, vou direto ao ponto: o que inspira os argumentos dos que buscam, incessante e freneticamente, a revisão da já famigerada prisão em segunda instância não é o respeito à Constituição, porque, afinal, não há desrespeito algum, pelo menos desde o meu ponto de observação. O que se busca, em verdade, é impunidade, pura e simplesmente, sabido que da espera do esgotamento de todas as instâncias resultará, com muita probabilidade, na inviabilidade da persecução pela certeza da prescrição, na maioria dos casos, do que resulta a constatação elementar que o que se almeja mesmo é a frustração das ações persecutórias deflagradas contra uma casta brasileira que se acostumou a viver à margem da lei.
Ante a certeza do retrocesso que virá com a mudança de entendimento do STF o único antídoto contra a impunidade seria, a meu sentir, fruto da experiência que acumulei em mais de 30 anos lidando com essas questões, a determinação dos juízes brasileiros de priorizarem os feitos criminais, numa verdadeira cruzada tenaz/cívica/moralizadora, sabido que, historicamente, referidos processos têm sido tratados com certo desprezo, como se de segunda categoria fossem, e para os quais, por isso mesmo, não se têm dado a devida atenção, de cuja omissão tem resultado, fácil constatar, a danosa sensação de impunidade que a todos nós nos incomoda, pois não são poucos os que são fulminados pela prescrição, cuja extinção da punibilidade tem ocorrido ainda em segunda instância.
É razoável compreender que só a decisão de priorizar os feitos criminais não resolverá, como num passe de mágica, o problema da impunidade, que, não tenho dúvida, será potencializado com a revisão do Supremo em face do cumprimento de pena após o esgotamento da segunda instância. Tenho certeza, todavia, que será um grande passo que daremos para evitar a impunidade, pois nada é mais estimulante para quem vive à margem da lei que a certeza de passar ao largo de uma persecução criminal.
É isso.

ESTUPIDEZ

Segundo Alexandre Dumas, “a diferença entre estupidez e genialidade consiste em que a genialidade tem seus limites”.
Pois bem. É sobre a estupidez do homem, que parece não ter limites, que pretendo refletir, aqui e agora, lembrando que o economista e historiador italiano Carlo Cipolla, citado por Alysson Augusto, editor do site o Ano Zero, tentou responder de forma abrangente a natureza da estupidez, para chegar à conclusão de que ela em si mesma é muito mais perigosa do que geralmente pensamos. E pode ser, sim, como vou tentar mostrar nesse artigo.
Devo dizer, inicialmente, que a estupidez é um dado complicador nas relações que estabelecemos com o semelhante, devido ao perigo que pode trazer, dependendo do grau de estultice do ser humano.
A verdade é que os excessos decorrentes da estupidez do homem – e nem falo de guerras, a suprema estupidez – tornam fastidiosos, demasiados, provocativos e perigosos os relacionamentos que temos com o semelhante. Daí por que, não raro, nos envolvemos em desinteligências que poderiam ser evitadas, não fôssemos nós todos néscios, em certa medida.
Logo, é preciso ter presente que, se não somos capazes de nos proteger da nossa própria obtusidade, permitimos, de certa forma, que os estúpidos também nos incomodem, sem que tenhamos alternativa que não seja aceitar a rudeza do congênere, pois que a estupidez é uma espécie de passaporte para exorbitâncias.
No mundo dos estúpidos, nos comportamos mais ou menos como aquela senhora que comprou um forno de microondas e colocou o gato no seu interior para secar. Quando se deu conta da reação do animal, voltou à loja exigindo uma indenização, porque não constava do manual de instrução que o aparelho não secava gatos.
É nesse mesmo mundo prenhe de estupidez – e também descontrole moral – que se destaca o ser humano que ejaculou numa passageira num ônibus na Avenida Paulista, em São Paulo, fato amplamente noticiado.
Da estupidez do ser humano avultam também situações como a que resultou no linchamento de uma senhora no Guarujá, em São Paulo, espancada em maio de 2014, em face de uma leviana acusação, veiculada nas redes sociais (local onde pontificam com mais sofreguidão os estúpidos), de que se tratava de uma sequestradora de crianças com as quais praticava magia negra, o que depois, viu-se, era uma acusação falsa.
Nesse mesmo cenário de pura estupidez despontam situações como a noticiada certa feita por Ancelmo Gois, colunista do jornal O Globo, sobre uma senhora que passava mal no metrô do Rio, em cuja oportunidade um cidadão que estava sentado próximo, jovem e aparentemente gozando saúde, foi instado a levantar-se e dar o lugar a ela, o qual, de má vontade aquiesceu, desde que, tão logo passasse o mal-estar, lhe fosse devolvido o assento.
Reconheçamos que é muito difícil a gente se ver livre do estúpido, porque nós mesmos, de vez em quando, costumamos nos valer da nossa estupidez para infernizar as pessoas, quando não replicamos uma notícia falsa ou pregamos, por exemplo, o linchamento de um assaltante, negando, sem nenhum pudor, o Estado de Direito, o mesmo que sublimamos quando defendemos os nossos interesses.
A permear a nossa vida, com efeito, a constante estupidez do ser humano. Cito como exemplo, dentre tantos outros, para não perder a oportunidade, a ultrapassagem de veículos em autoestrada sem as cautelas devidas, sem a observância das mais comezinhas regras de trânsito, ceifando vidas de inocentes, quando não a do próprio infrator e de seus entes queridos.
Os exemplos não param por aí. Nós bem que poderíamos, sim, nos proteger da nossa estupidez, para ter o direito de exigir que o semelhante não aja da mesma forma. Bem que poderíamos, por exemplo, em respeito ao próximo, não estacionar em locais destinados aos idosos, gestantes ou deficientes físicos. Mas isso não ocorre. A cara de pau, a falta de pudor e discernimento de quem procede dessa forma contrasta com o que se espera de uma pessoa civilizada.
Digo mais. Só a nossa estupidez justifica por que, ainda nos dias atuais, há avisos nos banheiros de uso coletivo para que se dê descarga depois de usá-los ou uma advertência de que a tampa do vaso deve ser levantada antes do seu uso. Se não fôssemos estúpidos, esse tipo de advertência já estaria há muito em desuso.
O certo e recerto é que, por falta de atenção, descortino e discernimento, as pessoas vão por aí, estupidamente, desrespeitando as mais elementares regras de convivência, lembrando que são essas mesmas pessoas que, em campo oposto, se indignam, esperneiam, gritam alto e armam barracos quando constatam que seus direitos estão sendo desrespeitados, o mesmo discernimento que não têm quando são protagonistas de ações que malferem direitos do semelhante.
Se queremos mudar o mundo, se pretendemos construir uma sociedade mais humana e fraterna, é preciso nos conscientizarmos de que não será possível fazê-lo protagonizando cenas explicitas de estupidez, como ocorre quando avançamos um sinal vermelho, desrespeitamos a faixa destinada a pedestres ou aceleramos para inviabilizar que um motorista faça uma conversão.
Decerto que todos nós queremos ser respeitados, ter os nossos direitos preservados. Mas, na primeira oportunidade, agimos em desacordo com o que exigimos dos outros. E, nessa faina, endoidecidos, brutalizados, saímos por aí, estupidamente, arrostando, por exemplo, os direitos dos cadeirantes ou furando uma fila ante o primeiro vacilo de quem está há horas esperando a sua vez.
É isso.

Em direção ao shabat

 

Penso que não são poucas as pessoas que só valorizam as coisas singelas em momentos de muita angústia, de muita aflição, de sérias dificuldades; no momento em que veem, por exemplo, a vida se esvaindo.

Em condições normais, convenhamos, não são poucos os que levam a vida sem valorizar as coisas simples, tomados pela ambição material que lhes domina as ações, contaminados, outras vezes, pelo apego excessivo ao poder.

Eu gosto das coisas mais simples, aprendizado que eu trago comigo desde a mais tenra infância e que me leva a desfrutar prazerosamente do que de mais simples a vida me oferece. E exatamente por isso, as minhas melhores recordações são das coisas simples que vivi e testemunhei.

Oliver Sacks, neurologista e escritor, autor, dentre outros, de “Tempo de Despertar”(1973), “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” (1985) e “Um Antropólogo em Marte” (1995), tendo sido diagnosticado com câncer metastático no fígado, que o levou à morte, aos 82 anos, escreveu quatro ensaios, que publicou no livro intitulado Gratidão, dos quais apanho e transcrevo alguns excertos, para reafirmar o óbvio, qual seja, de que o homem, de regra, somente diante de dificuldades insuperáveis olha o mundo de forma diferente do que via até então.

“[…] Quanto a mim, não creio (nem desejo) uma existência após a morte, exceto na memória dos amigos e na esperança de que alguns dos meus livros ainda possam ‘falar’ às pessoas quando eu morrer […]”. (Ensaio Mercúrio).

“[…] Não penso na velhice como uma fase cada vez mais penosa que é preciso suportar e levar o melhor possível, mas como um período de liberdade e tempo descomprometido, sem as infundadas urgências de outrora, livre para explorar o que eu quiser e para amarrar os pensamentos e sentimentos de toda uma vida”. (Ensaio Mercúrio).

“[…] Agora devo escolher como viver durante os meses que me restam. Tenho de viver do modo mais rico, profundo e produtivo que puder[…]”. (Ensaio My Own Life).
“[…] e desejo e espero, no tempo que ainda me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles a quem amo, escrever mais, viajar, se tiver forças, atingir novos patamares de compreensão e descortino […]”. (Ensaio My Own Life).

“[…] Sinto uma repentina clareza de enfoque e de perspectiva. Não há tempo para o que não é essencial. Devo me concentrar em mim mesmo, no meu trabalho, nos meus amigos. Não assistirei mais ao noticiário toda noite.. Não vou mais prestar atenção em política ou em discussões sobre o aquecimento global…[…]”. (Ensaio My Own Life)

“[…] Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi… Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores. Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal que pensa, neste belo planeta, e só isso já é um enorme privilégio e aventura. (Ensaio My Own Life)

“[…] Encontro consolo, desde que escrevi em fevereiro sobre meu câncer metastático, nas centenas de cartas que recebo, nas expressões de amor e apreço e no sentimento de que (apesar de tudo) eu talvez tenha tido uma vida boa e útil. Continuo a me sentir muito feliz e grato por tudo isso, mas nada mais me afeta como o céu repleto de estrelas daquela noite[…]”. (Ensaio Minha Tabela Periódica).

“[…] Deram-me, assim, não uma remissão, mas uma intermissão, um tempo para aprofundar as amizades, ver pacientes, escrever e viajar de volta ao meu pais natal, a Inglaterra […]” (Ensaio Minha Tabela Periódica).

“[…] E agora fraco, sem fôlego, os músculos antes firmes derretidos pelo câncer, encontro meus pensamentos cada vez mais, não no âmbito sobrenatural ou espiritual, e sim no que se quer dizer com levar uma vida boa, que valha a pena – alcançar a sensação de paz dentro de si mesmo. Encontro meus pensamentos rumando em direção ao Shabat, o dia do descanso, o sétimo dia da semana, e talvez o sétimo dia da nossa vida também, quando podemos sentir que o nosso trabalho está feito e, com a consciência em paz, descansar […]”. (Ensaio Shabat).

Oliver Sacks, com a morte batendo à porta, como se conclui dos excertos acima transcritos, passou a cogitar mais amiúde das coisas mais simples. Vê-se, claramente, nas passagens acima, que o que mais lhe importava, diante da morte que se aproximava inclemente, era aprofundar as amizades, atingir patamares de compreensão e descortino.

Era seu desejo, ademais, ser lembrado apenas pelo que escreveu, externar o seu amor às pessoas que lhe são caras, buscar a paz interior para a qual talvez não tenha se dedicado, atentar para as coisas simples como o céu repleto de estrelas, o qual talvez tenha esquecido de fazê-lo, quiçá por acreditar que a vida não era finita.

Definitivamente, o que a vida não é capaz de demonstrar, a proximidade da morte tem o condão de ensinar. Mas aí já pode ser tarde demais.

É isso.

ESTADO DE ANOMIA

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“Nos dias presentes, a sensação que tenho é de que o Estado perdeu o controle da situação, favorecendo, com sua omissão, o surgimento de um ambiente propício e deletério, no qual proliferam grupos de criminosos que vivem em função e em razão das ações de um Estado paralelo, criado com o objetivo de dar vazão a suas ações criminosas, não escapando dessa análise nem mesmo os homens públicos que, pela sua posição, poder decisório e influência, deveriam agir de forma escorreita, para não incutirem no cidadão com propensão à anomia a triste sensação de que vale a pena transgredir, e que bobo mesmo é quem, podendo, opta por não desviar a sua conduta, como se viver sob o império da lei fosse mesmo uma exceção”

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Ultrapassada a chamada “primeira fase da criminologia”, com os estudos referentes às Escolas Clássica e Positiva, vieram as chamadas Teorias Macrossociológicas da Criminalidade, com as quais teve início a chamada “segunda fase da criminologia”, iniciada na década de 1920, com a escola de Chicago.

Conforme se sabe, com as Teorias Macrossociológicas, os estudos da criminalidade deixaram de se preocupar com o indivíduo ou com pequenos grupos de indivíduos, para se concentrarem na criminalidade macro, ou seja, passaram a se concentrar nos fatores que levam a sociedade como um todo a praticar infrações penais, com especial atenção aos denominados guetos, surgidos nas chamadas megalópoles, cujos ambientes proporcionariam o “cultivo do crime”.

Segundo a Teoria do Consenso, um dos grupos em que se dividem as Teorias Macrossociológicas, existem certos locais onde o Estado não consegue fazer valer sua força normativa e coercitiva. Nesse sentido, esses lugares seriam guiados por uma verdadeira anomia, por uma subcultura delinquente, por condutas “anômicas” que o indivíduo adota quando se vê privado de referências e controles; condutas marginais, portanto, ligadas à violência.

Diante das reflexões que tenho feito em torno dessas questões, tenho constatado que, efetivamente, vivemos, nos dias presentes, esse estado de anomia, que, segundo Durkheim (1974), é onde as normas de uma sociedade são enfraquecidas, onde o indivíduo parece perder o sentido de pertencer a um determinado grupo.

Devo dizer, inobstante, diferente de algumas conclusões das Teorias Macrossociológicas, que essa situação anômica não se restringe a determinados lugares; a sensação de viver num estado sem lei e sem ordem, pelo menos até onde a minha vista alcança, se esparrama por toda sociedade, faz parte da nossa vida cotidiana, apresentando-se sob as mais diversas feições e nos mais diversos ambientes: em cada esquina, um assalto; em muitos ambientes familiares, a violência doméstica; nas repartições públicas, incontáveis casos de corrupção; em cada prefeitura, uma licitação fraudada; em diversos ambientes de trabalho, a prática do assédio, moral e sexual; no trânsito, a falta de respeito às normas mais comezinhas; nas favelas, a proliferação de milícias; nos presídios, o domínio das facções criminosas etc.

Essa criminalidade – que não é pontual, reafirmo – está em todos os ambientes onde o homem pontifica, introjetando no semelhante o sentimento malfazejo de que o ser humano perdeu, definitivamente, o sentido de viver sob o império da lei, afastando-se, a olhos vistos, das normas da sociedade, para viver em função das normas de grupos de delinquentes, que não têm apreço ao pacto social e pelo coletivo, não raro optando por agir individualmente como ser anômico, sem referências positivas do passado e sem perspectiva de mudança de direção no futuro.

Esse estado anômico, bem se pode ver, estimula o surgimento, como uma panaceia, das mais diversas teorias de pretenso combate à criminalidade (Tolerância Zero, Janelas Quebradas ou Broken Windows Theory, Tree Strikes an You are Out) as quais culminaram com a chamada teoria do Direito Penal do Inimigo, de Günter Jacobs, segundo a qual, um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar do conceito de pessoa, levando-nos a crer, equivocadamente, que determinadas pessoas, pela sua conduta, não merecem a proteção do Estado. Daí por que devêssemos, em nome dos que se submetem às leis estatais, tratá-las de forma diferenciada, restringindo, com efeito, as suas garantias penais e processuais, enfrentando-as com as chamadas “leis de combate”.

É preciso estarmos atentos ao fato de que as teorias que acima mencionei, que tanto fascinam as correntes favoráveis ao maximalismo penal, à conta de leis penais mais severas e de uma cultura imediatista, flertam com a ilegalidade, pois abespinham, malferem princípios comezinhos de direito, sem, entrementes, resolverem o problema da criminalidade.

Tais teorias, que, repito, não resolvem o problema da criminalidade, são apenas, desde o meu olhar, discriminadoras e perpetuadoras do tratamento diferenciado que tem sido dispensado a uma determinada classe social, mesma classe que, à falta de ações estatais, terminaram por prodigalizar o Estado de anomia a que me referi acima, onde cada um defende o que é seu, a seu tempo e modo, com a perpetuação (vide o caso das favelas do Rio de Janeiro) dos grupos criminosos que terminam por substituir o Estado, mesmo Estado que, historicamente, tem sido omisso nas questões mais elementares que permeiam a vida em comunidade, mesma comunidade que, sentindo-se órfão das ações estatais, terminam por se aliar aos grupos de criminosos que o substituem, perpetuando, nesse sentido, o Estado de Anomia a que me reportei acima.

É isso.