Traficante ou usuário?

Não gosto de tratar de questões jurídicas nos meus artigos. É que tenho a pretensão de fazer chegar as minhas reflexões ao maior numero possível de leitores, e é óbvio que, se me limitasse a escrever acerca de questões penais, por exemplo, as minhas crônicas não teriam o alcance por mim pretendido.

Em face dessa pretensão, inobstante, eu não passo ao largo das cobranças, já que muitos são os que me pedem reflexões técnicas, pois querem saber a minha opinião sobre os temas mais atuais em matéria  penal.

Em face dessas insistentes cobranças, vou abrir algumas exceções, mas pretendo falar de temas que interessem a todos e que possam despertar no leitor algum interesse em torno da matéria, visto que não pretendo escrever para uma parcela específica da população.

Assim pensando, resolvi fazer algumas ponderações, a propósito do crime de tráfico de drogas, com a pretensão de desmistificar uma falsa verdade que alguns, por esperteza ou malandragem, tentam estabelecer, para alcançar benefícios legais previstos na Lei de Drogas, e em face mesmo da discussão que se faz iminente no STF, a propósito da constitucionalidade do artigo 28 da lei em comento.

Nessa senda, anoto que é um rematado equívoco, por exemplo, pretender que a quantidade de droga apreendida em poder do acusado define, por si só, tratar-se de droga destinada ao uso ou à traficância. Com efeito, é mais do que comum, sempre que alguém é preso, por exemplo, com dois, quatro, oito papelotes de maconha ou duas, quatro, oito pedras de crack, o argumento de que, em face da quantidade da droga apreendida, estar-se-ia defronte de um usuário e não de um traficante, a deslegitimar a manutenção de sua prisão. Na mesma balada, e da mesma forma equivocada, há os que concluem, precipitadamente, que basta a apreensão de uma quantidade expressiva de drogas para que se constate tratar-se o detido, sem maiores questionamentos, de um traficante.

Posso afirmar, para desmistificar, que nem uma coisa nem outra. Tudo depende do contexto da apreensão, tudo depende, depois, dos dados que serão coligidos.  Nem a pequena quantidade leva, de logo, à conclusão de que se trata de um usuário, nem uma quantidade expressiva é indicativa de estar-se diante de um traficante, convindo anotar que quando me refiro a quantidade expressiva não me refiro a toneladas de drogas, porque, nesse caso, a inferência lógica é de que se trata mesmo de traficância. Refiro-me, sim, a quantidade relevante, mas que não deixa evidenciado, de logo, à míngua de outros dados, tratar-se de traficância.

Não creio, por exemplo, que um usuário abastado se limite a adquirir pequenas porções de drogas, aventurando-se nas bocas de fumo com regular frequência, razão pela qual o fato de ser apreendida em seu poder uma significativa quantidade de drogas não deve, só por isso, levar à conclusão de que se trata de um traficante, sem que se faça uma análise do fato à luz de outros elementos de prova.

Da mesma forma, o fato de alguém ser preso com 05 (cinco) papelotes de maconha, por exemplo, não leva a concluir, sem a consideração de outros dados, tratar-se de um simples usuário. Tudo, portanto, deve ser aferido à luz do contexto, dos demais elementos de provas coligidos durante a persecução criminal, razão pela qual, tenho reafirmado, em sede de habeas corpus, de cognição rarefeita, não ser possível a emissão de um juízo de valor definitivo acerca da questão, pois que se traduziria numa injustificada precipitação.

É por isso que, em face do contexto, pode-se, sim, conceder liberdade a quem tenha sido preso com uma quantidade expressiva de drogas e, numa aparente contradição, negar o mesmo benefício a quem tenha sido preso com pequena quantidade, pois, repito, tudo depende do contexto, da quadra fática, do histórico do detido e de outros elementos que não podem, por óbvias razões,  deixar de ser considerados.

O que quero dizer, em outras palavras, é que, diferente do que possam pensar os que almejam liberdade provisória ou medidas cautelares diversas da prisão à luz apenas da quantidade da droga apreendida, é que a quantidade de drogas, isoladamente, nos conduz, necessariamente, à conclusão de que o detido seja traficante ou usuário de drogas.

É preciso ter presente que nenhum juiz analisa os pleitos de liberdade, em face de crimes desse jaez, levando em conta apenas e tão somente a quantidade da droga apreendida. Logo, é inviável tentar convencer o juiz, ainda na fase preambular da persecução ou em sede de habeas corpus, com cognição rarefeita e não verticalizada, de que tal e qual acusado esteja a merecer a sua liberdade provisória ou qualquer outro favor legis,  apenas e tão somente em face da quantidade da droga apreendida,  num juízo de pura precipitação.

O que é preciso ter em conta, diante dessas questões, é que a quantidade de drogas não tem o condão de antecipar, por si só, um juízo de valor acerca da tipicidade penal, e que, ademais, para manter uma prisão ou decretá-la, o que importa é a análise, concomitante, de outros dados consolidados nos autos,  sem perder de vista, por exemplo, as circunstâncias da apreensão  e a história pregressa do acusado.

Diante dessa perspectiva, sempre à luz do contexto, reafirmo que a quantidade de droga apreendida pouco importa para definir o acusado como traficante ou usuário, pois ela, isoladamente, não nos conduz à conclusão acerca da tipicidade penal e o consequente tratamento a ser dispensado ao indiciado.

E que não nos iludamos: não existe, desde a minha compreensão, nenhuma possibilidade de se fixar critérios objetivos para distinção entre traficantes e usuários, convindo anotar, como antecipei acima, que este artigo está sendo redigido na manhã de quinta-feira, dia 13, antes, portanto, do julgamento do habeas corpus manejado em favor do paciente Francisco Benedito de Souza, no qual o Supremo Tribunal Federal debaterá acerca da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

Somos todos iguais perante a lei?

É princípio republicano: todos são iguais perante a lei. Verdade? Em parte, sim. Contudo, uns são mais iguais que outros, já que aprontam e fazem o que lhes dá na cabeça, na certeza da impunidade, contando com a complacência das instâncias formais de controle, que, conforme se sabe, ao longo da nossa história, têm sido seletivas, com os olhos voltados apenas para os criminosos egressos das classes menos favorecidas, com os olhos vendados quando se trata de delinquente de posição destacada.
Nesse cenário, temos testemunhado, com desalento, o enriquecimento ilícito de muitos agentes públicos, cientes da impunidade, certos de que as instâncias de controle só excepcionalmente os alcançarão. E assim, agem à luz do dia, à vista de todos, como o mais destemido dos meliantes, pois têm ciência e consciência de que, se forem presos, será por pouco tempo, apenas o suficiente para que o cidadão desavisado tenha a falsa impressão de que a justiça não é discriminadora, que vale para todos.
Esse é o quadro que, infelizmente, até bem pouco tempo, mais precisamente até o julgamento do famigerado “mensalão”, se descortinava sob os nossos olhos, a minar a nossa esperança, a nossa crença de que a lei deveria a todos alcançar, sem discriminação, sem a seletividade que hoje tem sido a sua marca mais visível e, também, mais desalentadora.
Todavia, vejo, agora, uma flagrante e alentadora tendência no sentido inverso, ou seja, de igualar a todos os brasileiros perante a lei, ou, pelo menos, de tentativas nesse sentido, como temos testemunhado em face das diversas operações deflagradas pelas instâncias federais, que nos dão a esperança – que, espero, não seja vã – de que, logo, logo, as instâncias estaduais possam agir com o mesmo denodo, no sentido de punir exemplarmente quem faz uso de um mandato outorgado para alcançar o dinheiro público.
Espero, sinceramente, que isso ocorra com a máxima brevidade. É que tem que ser assim mesmo. Ninguém deve – ou deveria, pelo menos – se sentir autorizado a fazer o que lhe apraz no exercício do poder, na certeza da impunidade, na certeza de estar acima da lei, de estar à ilharga dos órgãos de controle do Estado, sensação que, sejamos sinceros, decorre da omissão, da leniência, da inércia, enfim, desses mesmos órgãos, sobretudo no âmbito estadual.
Portanto, é preciso acabar com essa nefasta cultura terceiro-mundista de que uns podem sempre mais que os outros, de que a lei não vale para todos, de que os seus rigores valem para uma maioria desamparada e desassistida, e de que os seus favores são destinados apenas e tão somente a uma elite, a uma minoria que tanto mal tem feito ao país.
Mas, convenhamos, sejamos realistas, para que isso se torne uma regra, para que os órgãos persecutórios – sobretudo no que se refere aos Estados, mais propícios a ingerências indevidas – ajam com o necessário destemor, ainda há um longo caminho a percorrer, porque entre nós ainda viceja, com muito mais intensidade, o apadrinhamento, o sistema de proteção, as ingerências indevidas, o favorecimento.
A cultura da impunidade, infelizmente, está sedimentada entre nós, pois, em certa medida, somos todos complacentes com as roubalheiras que se perpetuam no Estado. E, quando ocorre alguma reação efetiva das instâncias de controle, envolvendo figuras destacadas da República, testemunhamos reações destemperadas e inconsequentes dos investigados, acostumados, desde sempre, com a impunidade, com a certeza de que estão acima da lei, como tem ocorrido nos dias presentes em face da ação destemida, no âmbito federal, da Polícia, do Ministério Público e de um magistrado, que não têm medido esforços para alcançar os meliantes de colarinho branco que tomaram de assalto a Petrobras.
Tenho testemunhado, com certa indignação, reações descontroladas e irresponsáveis de figuras de destaque no cenário nacional, motivadas pelas ações destemidas e exemplares das instâncias formais de controle, acostumados que foram, desde sempre, com a complacência, com a omissão do Estado que, como anotei acima, só tinha as suas ações voltadas para a pequena criminalidade.
Os tempos, definitivamente, são outros, e nunca pensei testemunhar uma medida de força contra próceres da República, a reafirmar o fortalecimento das instituições. Eu até imaginava que isso pudesse ocorrer, mas em filme ou em sonho, razão pela qual a realidade que vivemos hoje ainda assusta a muitos como eu, acostumados com a omissão do Estado.
Nunca imaginei testemunhar figuras expressivas da República sendo investigadas e obrigadas a prestar contas à sociedade. Tampouco pensei em testemunhar a prisão de tantas pessoas destacadas da sociedade, exatamente as que sempre se colocaram acima da lei, confiantes, cientes da omissão das instâncias de controle.
Por tudo isso, creio que está próximo o dia em que, por essas plagas, como no primeiro mundo, todos serão, materialmente, iguais perante a lei. E quando esse dia chegar, quem vai dar risadas sou eu. Por enquanto, esboço apenas um sorriso acanhado, com o justificado receio de que tudo, ao fim e ao cabo, como tantas outras operações levadas avante no âmbito federal, se transforme num grande pesadelo.
O que espero mesmo, quase impaciente, é que, também nos Estados, onde os desvios de verbas públicas são uma sórdida realidade, sobretudo nas esferas municipais, as instâncias de controle – Ministério Público, Polícias e Poder Judiciário – saiam da inércia, deixem a sua prosaica letargia de lado, para, assumindo uma postura definitiva, agirem na mesma medida e com a mesma tenacidade das instâncias federais, no sentido de punir os que teimam em sangrar os cofres públicos.
A verdade é que não se pode mais transigir com tanta inércia em face da sangria dos cofres públicos municipais, em detrimento dos interesses da população, sangria que decorre da certeza da impunidade, em face da omissão, da inércia, enfim, dos órgãos de controle, salvo uma ou outra exceção.
Estou testemunhando, sim, o fortalecimento das nossas instituições. E chegará o dia em que, as ações que hoje testemunho como uma exceção, irão se tornar uma regra. E, quando isso se tornar realidade, o gestor público poderá até se locupletar do dinheiro do contribuinte, porque isso é inevitável, mas o fará sabendo que, se for pego, não se beneficiará do tratamento discriminatório que hoje prepondera na esfera criminal; ele o fará ciente de que a lei, definitivamente, vale para todos.
Tenho reafirmado que nada é mais danoso para a convivência social que a ação dos que se imaginam superiores, dos que pensam estar acima da lei; dos que esquecem que as pessoas são, essencialmente, iguais, razão pela qual, perante a lei, ninguém deve se sentir imune ou superior, convindo trazer à colação, para ilustrar, a sábia e reflexiva lição de Luis Roberto Barroso, segundo o qual nada mais triste para o espírito do que uma pessoa se achar melhor que a outra, seja por sua crença, cor, sexo, origem ou por qualquer outro motivo ( in A fé, a razão e outras crenças).

A sociedade precisa de proteção

O que se ouve dizer e o que se lê, em todas as revistas especializadas, em todos os artigos que tratam da questão prisional, em todos os seminários e congressos nos quais se tratam de temas relacionados à criminalidade e ao sistema carcerário, é que nunca se prendeu tanto, que os juízes abusam da prisão provisória, que prendem primeiro para depois condenarem, que, perigosamente, invertem a lógica da presunção de inocência, que a prisão deveria ser, mas não é, a última ratio da extrema ratio, e que, por isso, tem sido utilizada abusivamente.

Verdades absolutas? Não! Verdades, sim, mas relativas. Não é verdade, por exemplo, que os juízes façam tabula rasa do princípio da presunção de inocência ou que não reconheçam os malefícios da prisão e de que o cárcere deva ser a última opção. Contudo, é preciso reconhecer que, verdadeiramente, nunca se prendeu tanto e que há um número excessivo de prisões provisórias.

Mas por que isso ocorre? Por que se prende tanto? Porque os juízes são insensíveis?  Porque temos a mentalidade terceiro-mundista? Porque os juízes desconhecem a situação carcerária do país? Porque não sabem que as prisões são uma universidade do crime? Porque desconhecem que as prisões são verdadeiras masmorras?  Porque não sabem que são uma escola de recidiva? Porque não têm consciência de que os direitos humanos são desrespeitados nas chamadas instituições totais? Porque pensam que crime se combate apenas com prisão? Porque, enfim, lhes falta sensibilidade?

Atrevo-me a responder às indagações, assumindo o risco de ser contestado, dizendo que os juízes – em sua maioria, pelo menos – não são insensíveis e nem desconhecem a realidade carcerária do Brasil, e muito menos as garantias legais inseridas em nossa Carta Magna. Aventuro-me a afirmar, nesse sentido, que se prende muito porque nunca se cometeu tantos crimes violentos e nunca se reincidiu tanto nas práticas criminosas mais nefastas para o conjunto da sociedade.

Prende-se muito, ademais, porque a prisão ainda é a face mais visível, a mais didática, a mais exemplar das (re)ações das instâncias persecutórias, conquanto se tenha que admitir a sua quase falência e, no mesmo passo, se tenha a convicção de que ela deva ser reservada apenas para os criminosos violentos e/ou recalcitrantes, como tem sido, pois não me ocorre que alguém permaneça preso se não cometeu crime violento ou sem que seja contumaz.

 Prende-se muito, porque não há políticas públicas preventivas da criminalidade, razão pela qual temos que trabalhar com os efeitos da ação criminosa, cientes de que as causas da criminalidade permanecem inalteradas, realimentando o sistema. Prende-se muito, de mais a mais, porque entendemos ser preciso dar uma resposta à sociedade, que tem que ser minimamente protegida. Prende-se muito, finalmente, porque não se pode fazer vista grossa diante do criminoso recalcitrante, da criminalidade grave, como antecipei acima.

Os que fazem esse tipo de questionamento pensam, equivocadamente, olhando apenas um lado da questão, que só os autores de crimes merecem a tutela do Estado, que só a eles importa a proteção contra os excessos. A sociedade, sob essa mesma visão, não mereceria proteção, razão pela qual dever-se-ia, em face da escalada criminalidade, sublimar a presunção de inocência em detrimento do interesse público,, como se fosse um direito absoluto; e, conforme sabemos, direito absoluto não é, pela singela razão de que direito absoluto não existe.

Portanto, é necessário colocar as coisas no seu devido lugar. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Se é verdade, com efeito, que a prisão, máxime a provisória, deveria ser a última opção – e efetivamente o é -, não é menos verdadeiro que a sociedade tem o direito à proteção das instâncias de controle, as quais, para esse fim, devem, sim,  sem excessos que possam ferir a razoabilidade, valerem-se dos mecanismos de tutela para sua proteção, sabido que a não observância ao direito de proteção corresponde, também,  a uma lesão a direito fundamental.

É preciso não olvidar da obrigação positiva do Estado quanto à materialização dos direitos fundamentais, dentre eles, mas do que nunca nos dias atuais, o direito à segurança, positivado na Constituição Federal.

À guisa de ilustração, anoto que o Direito Penal serve, simultaneamente, como limitação ao poder de intervenção do Estado, como instrumento de combate ao crime. Todavia, deve, com a mesma intensidade, proteger a sociedade e seus membros dos abusos do individuo. Assim é que o mesmo direito penal que protege a liberdade individual em face de uma repressão desmedida do Estado, deve preservar o interesse social ainda que à custa da liberdade do indivíduo (Claus Roxin)

Não se pode, diante da criminalidade recorrente e da situação de quase descalabro que todos nós testemunhamos, deixar tudo como está, colocar em liberdade meliantes perigosos, a pretexto de que prisão não corrige ou de que  os acusados, no atual sistema penal, tendem a sair pior do que entraram, mesmo porque as pessoas assaltadas ou estupradas, por exemplo, jamais entenderiam a liberdade de um roubador ou de um estuprador, à invocação da presunção de inocência – a qual, como qualquer outro principio, deve, sim, em determinadas circunstâncias, ser relativizado .

É preciso, pois, ter em conta que, assim como o preso individualmente considerado, a sociedade também precisa de proteção, razão pela qual não comete nenhum desatino o magistrado que, diante do criminoso violento e/ou recalcitrante, opte por mantê-lo preso, ainda que provisoriamente, sem que, com isso, atente contra a Constituição Federal, pois, afinal, a mesma Constituição que destaca a presunção de inocência, estabelece que a sociedade tem direito à proteção.

Ademais, não se deve perder de vista que, se o interesse de um cidadão se puser em linha de confronto com outro interesse, um deles deve ser sacrificado, como ocorre com o direito à liberdade e o direito à segurança e proteção da sociedade, sem que isso importe em abespinhamento da ordem jurídica.

À conta de reforço, anoto, forte na lição de Gilmar Mendes, que os direitos fundamentais expressam também um postulado de proteção, já que eles não contêm apenas uma proibição de excesso mas também uma proibição de omissão. Nesse sentido, a proibição de proteção deficiente impõe ao Estado o dever de proteger o individuo contra ataques de terceiros, mediante a adoção de medidas de força.

Por que insisto em escrever?

François Truffaut, cineasta francês, diretor, ator e crítico, morto aos 52 anos, de câncer no cérebro, vinte e um longas-metragens, um punhado de  curtas, centenas de artigos sobre cinema, dizia, com simplicidade:   “Eu faço filmes para realizar meus sonhos de adolescente, para me fazer bem e, se possível, fazer bem aos outros” (Folha de S. Paulo, de 21 de junho de 2015)

Algumas vezes tenho me perguntado por que insisto em escrever? Indago a mim mesmo, reiteradas vezes,  se não seria melhor o silêncio, se não seria melhor para as minhas relações de amizade, para minha paz interior, para manter uma boa convivência com os que pensam diferente de mim,  ficar contando as estrelas, admirando o por do sol, silente e passivo, deixando a banda passar, como a moça feia debruçada na janela a que faz menção Chico Buarque na famosa e deliciosa  A Banda: “…a moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela…”

Todavia, alguma coisa muito instigante me impulsiona a escrever. É alguma coisa muito forte, algo difícil de ser contido. É quase uma necessidade. Vou observando o mundo, examinando a conduta das pessoas, e vou sendo instigado, no mesmo passo, a dizer o que penso, e sinto,  em face do que vejo.  Não dá, na minha percepção, na minha visão de mundo, para, simplesmente, deixar acontecer. Eu não toleraria essa passividade. Não é o meu perfil. Não é a minha praia, para usar uma expressão própria dos dias atuais.

Assim é que, quando o impulso me leva à reflexão e esta me leva a escrever, não tenho peias, não tenho controle de mim mesmo. Nesse sentido, deixo a inércia, sou instado,  e me apresso a dizer o que penso sobre isso ou aquilo, com cuidado para não falar sobre o que não conheço para não parecer arrogante; nem mesmo a incerteza quanto à recepção dos meus escritos me desestimula.

E, nessa sanha incontrolável, vou escrevendo, refletindo, traduzindo em pensamento as palavras que dentro de mim não querem calar, pois, reafirmo,  sinto uma enorme necessidade, quase doentia, de compartilhar as minhas inquietações, ainda que não tenha a exata dimensão da sua repercussão, ou seja, de como as pessoas assimilam as coisas que digo, afinal, nesse mundo em que viceja, em profusão, a liberdade de expressão, eu sou apenas mais um a se aventurar no mundo das letras, sem ser sequer um dos mais qualificados, ciente e consciente das minhas limitações intelectuais.

Fico, cá do meu canto, me questionando, a propósito dessa propensão de não silenciar, ciente de que, para uma boa convivência, melhor mesmo é não dizer, é permanecer calado, optar pelo mutismo acomodado, pela inércia covarde, sabido que aquele que fala, que diz o que pensa, que não contém o impulso, corre sempre o risco de ser incompreendido, pois as palavras têm uma força inigualável, podendo ser bem ou mal interpretadas, dependendo de quem se aventure a penetrar no espírito do cronista, em face, sobretudo, da vagueza, da polissemia de alguns termos, a possibilitar várias interpretações, sobretudo se analisada fora do contexto, o que pode, sim, ocorrer, em face, por exemplo, da má vontade de quem se aventura a ler o texto.

Todavia, ainda assim, mesmo correndo o risco da incompreensão, não deixo de dizer o que penso, e sinto,  em face dos mais variados temas. Tenho dito, para mim mesmo, quando me ocorrem esses questionamentos, que eu não quero ser, nunca vou ser, me recuso a ser um Meursault, personagem de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, pois, diferente do personagem e de muitos que pensam e agem como ele, não aceito levar  uma vida banal, irrelevante.

A vida e o pensar para mim não são indiferentes.Tudo na vida para mim faz sentido. Mesmo a dor do próximo ( lembro, para quem não leu a obra de Camus, que nem a morte da própria mãe abalou Meursault), para mim, tem relevância. Diferente de Meursault, me recuso a ser levado, arrastado pela correnteza da vida e da história, ainda que, por isso,  possa ser incompreendido.

Parafraseando Fracois Truffuat, eu escrevo para me satisfazer, e, se possível, para agradar aos outros, para induzir à reflexão, pois sei que há muitos que assimilam bem o que escrevo, ainda que isso não seja o mais relevante, pois, afinal, numa sociedade plural e diversificada como a nossa ,  é mais que natural que as pessoas divirjam, que tenham pontos de vista diferentes dos meus,  daí que o mais relevante mesmo é a constatação de que me faz bem escrever e que, decerto, me sentiria feliz e honrado se pudesse, com os meus escritos ( desculpem a pretensão descabida), fazer bem às pessoas, o que seria uma recompensa sem igual para quem, como eu, não almeja ser mais do que efetivamente sou.

Um brado contra a discriminação e a intolerância

Preliminarmente, consigno que não faço apologia ao descuido com a saúde. Muito pelo contrário, procuro levar uma vida saudável, fazendo exercício com regular frequência e me alimentando com moderação. Portanto, essa crônica não é uma manifestação a favor da vida descuidada; faço-a apenas como um brado contra toda forma de discriminação.

A inspiração me veio de uma briga de condomínio, no Rio de Janeiro, que foi parar na justiça, porque uma juíza federal chamou o porteiro do seu prédio de “Bolo de Banha”, em face da barriga exuberante que ostenta, como uma vingança por tê-lo flagrado dormindo no trabalho. O episódio extrapolou os limites do condomínio e foi parar na 1ª vara civil da comarca de Rio de Janeiro, onde foi distribuído um pedido de indenização por danos morais.

Sabe-se que o ser humano parece (?) ter um prazer pra lá de doentio de discriminar o outro. Às vezes, por pura gozação, sem maiores consequências; outras tantas, para sacanear mesmo, para ferir, magoar, espezinhar. Discrimina-se por tudo. Discrimina-se em face da roupa, da cor, da altura, da voz, da opção sexual, da posição social, das orelhas, do corte de cabelo, da roupa, da estatura, de uma deficiência. Discrimina-se, enfim, pelos mais diferentes motivos e pelas mais variadas e injustificáveis motivações.

Nos dias presentes, um dos mais discriminados, maior alvo de gozação é, sem dúvidas, o(a) gordo(a). Nesse quesito, ninguém supera o(a) gordo(a), sendo que, quando se trata de gorda, sexo feminino, portanto, a discriminação chega a níveis de intolerância.

Nessa questão, o sexo feminino tem sido o objeto preferencial da discriminação, e por isso muitas mulheres almejam ser magras, a qualquer custo, conquanto isso não  seja privilégio de muitas, pelas mais diversas razões, que vão da genética à falta de condições materiais.

A verdade é que, como afirmei acima, vivemos a ditadura da magreza. Nesse sentido, não escapa ninguém – tanto faz ser homem, quanto mulher. Tem que ser magro (a). Ser gordo (a) parece ser um pecado.

Nesse ambiente, discrimina-se o(a) gordo(a), sem pena e sem dó. Nas academias, então, ambiente que frequento e que conheço bem, o(a) gordo(a) é sempre visto como ele(a) é, ou seja, como gordo(a). Ele(a) parece não ter identidade. É gordo(a) e ponto. É, simplesmente, ponto de referência. Nada mais do que isso, descontados, claro, os exageros da afirmação.

As pessoas não consideram outras possibilidades, outras razões pelas quais umas engordam e outras não. Tudo passa por uma tendenciosa e precipitada constatação: o(a) gordo(a) é gordo(a) porque quer, por desleixo, como se não fosse o desejo de muitos ter um corpo sarado,  saudável e escultural.

 Eu, pelos mais diversos motivos, sempre tive um marcante sobrepeso que me colocou no rol dos gordos, embora não me sinta discriminado,  quiçá porque não tenho uma gordura muito perceptível.  Na minha família, por exemplo, em face da protuberância abdominal que ostento, poucos me chamam pelo nome. Chamam-me, mesmo os meus filhos, carinhosamente, de “Gordo”, como se fora pré-nome. Mas isso nunca me incomodou. E não incomodou porque, de rigor, não me acho gordo, nem discriminado.

O (a) gordo(a), entretanto, nem sempre foi discriminado(a); pelo menos nos níveis que constatamos nos dias atuais. Vivi uma época na qual magreza era, ao contrário dos dias atuais, sinônimo de doença, de desnutrição, de necessidade. Os pais, no passado, faziam tudo para ver seus filhos roliços. E nessa faina, muitos ganhavam quilinhos extras para sempre. Mas as pessoas conviviam bem – se é que é possível – com a gordura. Recordo de pelo menos três colegas de infância que, por serem magros, tinham os sugestivos apelidos de “Filé de Borboleta”, “Come Papel” e “Sopa de Osso”.

Mas, deixando de lado os magros e musculosos, o que quero mesmo é refletir sobre a gordura, que é tema candente nos dias atuais. A verdade, portanto, é que, em se tratando de gordura e magreza, hoje em dia os papéis se inverteram. Está, com efeito,  decretado: é proibido ser gordo(a).

Devo dizer, no entanto, que é preciso pôr um fim a essa infernal patrulha, deixando que cada pessoa viva como é possível viver. Vamos deixar o(a) gordo(a) em paz. Que cada um cuide si. Não faz sentido discriminar por isso. Aliás, não faz sentido nenhuma forma de discriminação.

Cuide da sua beleza, cuide do seu corpo, controle a sua gula, feche a sua boca, exiba seus músculos, seu bumbum durinho, esnobe com a sua panturrilha, promova os seus bíceps e tríceps, mas deixe que o próximo viva como bem entender, como é possível viver em face de sua realidade.

Pare de ser fiscal da barriga dos outros. Cuide da sua vida. Cada um deve viver como lhe aprouver. Da minha gordura e da minha saúde cuido eu. Do seu corpo e da sua magreza, cuide você.

É preciso que sejamos mais tolerantes com as pessoas. Vamos parar de discriminar, afinal, chamar alguém de “Bolo de Carne”, “Filé de Borboleta”, “Come Papel” e  “Sopa de Osso”, em face da magreza ou da gordura, é tão discriminatório e condenável quanto chamar o próximo de “Maneta”, “Perneta”, “Cegueta” ou “Ceguinho”, em face de uma deficiência física ou visual.

Voando nas asas de uma quimera?

Tenho medo de que a minha visão de mundo possa não ser compreendida pelos meus filhos. Afinal, eles ainda têm tudo por construir, e o mundo em que vivemos deixa transparecer a prevalência das condutas heterodoxas, a privilegiar os caminhos nem sempre condizentes com a minha visão de mundo, como o fizeram, por exemplo, os moradores de Tubiacanga, na famosa crônica A Nova Califórnia, de Tobias Barreto, os quais, ao descobrirem que a violação das sepulturas rendia aos profanadores alguns gramas de ouro, aderiram à profanação que antes condenavam.

Meus filhos têm testemunhado, com algum desalento, a vitória dos que fazem apologia de ações pouco recomendáveis, como o fizeram os outrora éticos e críticos moradores de Tubiacanga, que só tiveram escrúpulos enquanto não viram os proveitos auferidos pelo protagonista Raimundo Flamel.

Os jovens, meu filhos entre eles, podem, sim não compreender que seja possível viver sem usar dos expedientes que todos nós condenamos, já que, na opinião de muitas pessoas, o que importa mesmo é ajuntar bens materiais, sem espaço para os escrúpulos, porque se esquecem de que, pelo menos na minha e na visão de muitos que pensam como eu, o que importa mesmo nessa vida é não desperdiçar afetos (Machado de Assis, Helena).

A propósito, dia desses, conversando em família, disse aos meus filhos que me preocupava muito em ser apontado por eles, um dia, como responsável por eventual insucesso em sua vida profissional, em face das minhas posições, radicais para alguns. Nessa conversa franca, olho no olho, eles concluíram que não viam nada de errado na minha maneira de ser, nas posições por mim assumidas como pai e como profissional. Mas, ainda assim, tenho medo de uma reação, de ser incompreendido. Tenho receio de que eles um dia, revoltados com tanta licenciosidade, com tantas notícias que degradam os nossos homens públicos e que alimentam a desesperança do povo, terminem por concluir que não vale a pena tanto rigor, que é preciso mais flexibilidade para enfrentar o mundo.

Recordo-me de certo dia em que meu filho, ainda bem pequeno, brincava com os primos e outros amigos. Determinada hora, como não obedeciam a ninguém, resolvi impor minha autoridade de pai. Chamei-o e determinei que sentasse ao meu lado. Ele me olhou, e com os olhinhos bem tristes, perguntou-me se estava de castigo de novo. Eu respondi que sim, ao que ele redarguiu: “Pai, e os outros? Por que só eu fico de castigo?”

Aquela pergunta foi como uma facada no meu peito. Decidi, então, precipitadamente, liberá-lo. E disse aos presentes, repercutindo a inquietação do meu filho, que não pretendia mais mantê-lo de castigo, pois não achava justo que as regras de boa conduta só valessem para ele.

Por essas e por outras é que temo que, como na obra ficcional de Amos Oz, Uma certa paz, meus filhos terminem por concluir um dia que é chegada a hora de dar um basta às concessões, de deixarem as minhas orientações,  de seguiram o curso “natural” da vida, de competirem com as mesmas  armas, por entenderem que, pelas vias que elegi, as conquistas são muitos mais difíceis.

Convém trazer à colação, para ilustrar, excertos do desabafo do personagem Ionatan Lifschitz, da obra ficcional antes mencionada –  obra já referida por mim, nesse mesmo espaço, em outro artigo -,  o qual, determinado dia, cansado do mundo em que vivia, sedento de viver uma vida diferente da que lhe tinha sido imposta, resolveu partir para o tudo ou nada, expondo as suas inquietações mais ou menos nos seguintes termos:  “O tempo todo, em toda a minha vida, eu abro mão e abro mão e já quando eu era pequeno me ensinaram que a primeira coisa é abrir mão, e na turma abrir mão, e nas brincadeiras abrir mão, e ter consideração, e dar um passo ao encontro de, e no Exército e no trabalho e na minha casa e no campo de esportes ser sempre generoso e não criar caso e não perturbar e não insistir mas sim prestar atenção, levar em consideração, dar ao próximo, dar ao coletivo, dar ajuda, se atrelar ao objetivo sem ser mesquinho, sem contabilizar e o que resultou de tudo isso resultou que dizem de mim Ionatan é bem legal, um rapaz sério com quem se pode falar, pode procurá-lo, você vai procurá-lo você vai se arranjar com ele,  ele sabe das coisas, um rapaz dedicado um homem simpático. Mas agora chega. Basta. Acabaram-se as concessões. A partir de agora começo uma nova história.”

Definitivamente, tenho receio de que meus filhos concluam, com algum grau de realismo, que em face das minhas ideias e obstinações,  eu viva, sem me dar conta,  voando sob as asas de uma quimera, o que, decerto, seria, para mim, um desalento.

É isso.

A cultura da impunidade

Todos que cometem crimes devem – ou deveriam – receber o mesmo tratamento das instâncias de controle social. É assim que penso, é nesse sentido que tenho agido. Por isso me causa certo desalento, por exemplo, colocar  em liberdade um meliante perigoso por excesso de prazo ou quando tenho, pelo mesmo decurso do tempo, que reconhecer uma prescrição e extinguir a punibilidade de um criminoso, sejam quais forem os crimes a ele imputados, por entender que é dever do Estado julgar a tempo e hora os que transgridem a ordem pública.

É mais comum do que as pessoas possam estar informadas a extinção da punibilidade e o relaxamento da prisão de meliantes por inação, descaso, incúria dos responsáveis pelas instâncias formais de controle social, o que é de se lamentar.

Nesse cenário, confesso, com ênfase, o meu especial desalento, a minha quase revolta quando me deparo, por exemplo, com a falta de zelo e de rigor dos agentes do Estado, diante, por exemplo, de crimes que condizem com o desvio de verbas públicas ou praticados com violência, pondo em relevo, neste artigo, os primeiros, em face dos efeitos danosos para o conjunto da sociedade.

Na condição de magistrado, tenho me defrontado com vários processos que traduzem bem a conduta imoral e irresponsável de gestores do dinheiro público, e, no mesmo passo, com a inércia, com o descaso e a falta de zelo dos responsáveis pelas agências de controle, que deixam, injustificadamente, que as ações se prolonguem no tempo, com indiscutíveis prejuízos à persecução criminal. Por isso a tenaz fiscalização do CNJ em torno desses processos.

Em casos desse jaez, o dado que me chama mais a atenção, portanto, é a morosidade da justiça – injustificável, desde a minha compreensão -, disso resultando a impunidade dos gestores, em face das consequências que dimanam do tempo transcorrido, por mais nociva que tenha sido a sua ação na administração da coisa pública. Logo, diante dessa sedimentada cultura de impunidade, eles se sentem estimulados a continuar transgredindo, cientes de que só por acidente serão responsabilizados criminalmente.

Decerto que as instâncias persecutórias não podem fazer corpo mole, sobretudo, diante de crimes dessa coloração, em face, repito, dos efeitos devastadores desse tipo de ação para o conjunto da sociedade. Por isso, nos julgamentos dos quais faço parte, tenho reiterado que, se é verdade que um assaltante merece ser tratado com todo o rigor – e merece mesmo, pois é, para mim, acima de tudo um covarde -, merece maior rigor, ainda, o gestor que desvia verbas públicas, pois as consequências da sua ação são mais danosas que as de um assalto à mão armada, por mais que o assalto nos cause indignação.

Diante desse cenário, causa-me indignação ter que reconhecer a prescrição e extinguir, na mesma balada, a punibilidade de um criminoso que tenha, no exercício de uma outorga, enriquecido à custa da desgraça e do abandono dos que lhes confiaram um mandato.

Por isso, tenho reafirmado ser necessário que todos – Ministério Público, Polícia, Poder Judiciário, dentre outros -, diante de casos dessa envergadura, nos empenhemos ao máximo para julgar a tempo e hora processos que cuidem dessas questões, envidando esforços para que não fiquem impunes, pelo decurso do tempo, os que fazem mau uso do dinheiro público.

A verdade é que, na quase totalidade das vezes, por omissão das instâncias persecutórias, os crimes praticados em detrimento do Erário ficam impunes, estimulando, nesse passo, a sua prática.

Em face da má gestão, do desvio de verbas públicas, do enriquecimento ilícito no exercício do poder, posso constatar, triste e quase revoltado, que a cultura da impunidade irradia os seus efeitos para outras instâncias, com as mesmas consequências práticas. E assim, muitos que ascendem ao poder, acreditam por ciência própria ou por ouvir dizer, que enriquecendo no exercício desse mesmo poder, pelos mais diversos meios, têm assegurada a garantia da impunidade, ou seja, que nada lhes ocorrerá, pois, conforme pensam, cadeia mesmo é só para os miseráveis.

Portanto, se é verdade que as franquias constitucionais permitem, muitas vezes, que os processos se encaminhem para a prescrição – e para consequente impunidade -, não é menos verdade que, pelo que tenho testemunhado nessas décadas de exercício judicante, com um pouco mais de boa vontade é possível fazer muito mais do que fazemos.

Proponho, pois, que façamos uma corrente positiva para reverter esse quadro desalentador. Vamos envidar esforços no sentido de fazer com que os processos que cuidam de questões desse matiz sejam julgados com brevidade,  para absolver ou para condenar; mas que cheguem ao fim, que não seja pela prescrição, pois  depõe contra as instituições de controle o favorecimento dos acusados em face do transcurso do tempo.

Ladrões de sonhos

Decerto que muitas das minhas reflexões não são aceitáveis, sobretudo para aqueles que se contrapõem às minhas ideias, Sei, portanto, que o que escrevo não é bem recebido por muitos. Todavia, isso não me preocupa, pois, como dizia Sócrates, uma vida sem exame, ou seja, sem reflexão, sem indagações, sem que se busquem novos ideais, novos caminhos, nova direção, não merece ser vivida.

Bem sei que, por comodidade e para viver em paz com todos, o ideal mesmo seria guardar as nossas inquietações no recôndito da alma, sem falar, sem dizer o que pensamos – calar, enfim; deixar as coisas fluírem. Contudo, não sei ser assim,. Por isso, vou continuar dizendo o que penso, com a necessária responsabilidade, para não ferir suscetibilidades e nem macular a honra de ninguém.

Padre Antonio Vieira dizia que melhor que luzir todo tempo, é luzir somente a tempo, pois que, assim agindo, se enganam os olhos da inveja, se concilia nos ânimos a estima. Deixar de luzir, na minha interpretação, é deixar a ribalta para não mais lembrado, para espantar a inveja do semelhante. Essa questão, inobstante, passa ao largo das minhas preocupações.

Sei que não sou digno da inveja de ninguém, pois custo muito a acreditar que alguém quisesse ser o que sou: um tipo enfadonho, incapaz de despertar qualquer sentimento que não seja da mais absoluta indiferença.

A minha hora de ser esquecido virá inevitavelmente. Enquanto esse dia não vem, não deixo a ribalta, e vou continuar expondo os meus pensamentos, consignando, em artigos, as minhas inquietações, as minhas reflexões, ainda que, assim o fazendo, corra o risco de ser mal interpretado, repetindo a sábia constatação de Amir Klink, segundo o qual na vida o maior fracasso é não partir.

Como todo jovem, eu também fui um sonhador quase incorrigível. Vivi, como muitos da minha geração, do porvir, pois que, afinal, como diz, com sabedoria, o protagonista de o Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, “é uma estupidez não ter esperança”. E foi esperando e crendo, que sonhei com um mundo melhor, retratado numa sociedade mais fraterna, menos egoísta, com mais solidariedade. Mas errei! E assim como eu, muitos erraram. É que o mundo está ficando cada dia mais difícil, mais desalentador, pelo fato de imperar nele i o oportunismo, a esperteza e o impulso descontrolado dos que almejam mais e mais, os quais, nessa volúpia, vão atropelando as pessoas, levando a vida da maneira que melhor lhes convier, na defesa dos seus interesses.

Flertei com o comunismo, vesti camiseta com a estampa de Che Guevara, apostei em Fidel Castro, pensei em morar em Cuba, sonhei com um mundo justo que, cheguei a supor, se consolidaria na ilha dos irmãos Castro. E assim, criei um mundo de sonho e de fantasia, para, depois, como todos nós testemunhamos, vê-lo ruir.

A verdade é que eles – como tantos outros que estão ou passaram pelo poder – roubaram os meus, os nossos sonhos, e ainda persistem nessa sanha, mesmo nos dias atuais, embora sob outra roupagem, agora sob os dogmas do liberalismo, mas com a mesma volúpia. E assim, vão pelos mesmos caminhos, com armas diferentes, mas da mesma forma, roubando o sonho de todos nós, deixando-nos sem a perspectiva de vislumbrar o futuro.

Hoje, já cansado de sonhar, maltratado pelo tempo que a tudo destrói, estou desencantado com quase tudo, quase perdendo a esperança. Talvez por isso, eu não suporte mais ouvir promessas oportunistas, vindo a sentir até uma certa revolta com as que são feitas a cada eleição; promessas gestadas, pensadas, com inteligência e perspicácia, para enganar, iludir, ludibriar.

Ninguém suporta mais tantas mentiras, tanta enganação. Estamos desiludidos, definitivamente, em face dessa insistência em roubar os nossos sonhos, sem nos deixar enxergar o futuro. Além disso, tudo o que fazem é em beneficio pessoal, já que eles enganam, se irmanam, se unem – e aprontam, em detrimento do coletivo, enriquecendo no poder, sem controle, sem peais, sem escrúpulos, descaradamente, pouco importando as consequências que decorram do dinheiro que subtraem, apostando na impunidade, na leniência das instâncias penais.

Com as suas ações daninhas e com o dinheiro público que subtraem, eles deixam sem perspectiva a nossa juventude, da qual surrupiam o ensino que sonhamos um dia pudesse  ser de qualidade.

Em face da voracidade com que se lançam sobre as verbas públicas, negam ao cidadão saúde, moradia, estradas de qualidades, segurança e, sobretudo, respeito, destinando ao órfãos do Estado apenas as migalhas, que têm servido, a cada eleição, para vilipendiar a consciência dos incautos, dos mais necessitados.

Já não é possível conviver com tanta desfaçatez, tanta volúpia por cargos, não para servir, mas para deles apenas se servirem. Falta aos nossos representantes, como regra, o necessário espírito público. Alheios a essa necessidade, eles deixam transparecer que só pensam em seu próprio bem estar. Afinal de contas, as disputas pelo poder não são – e nunca foram, ao que parece – para servir.

Para ilustrar, trago à colação, porque no sentido das reflexões aqui expostas, a conclusão  de Luiz Fernando Vianna, colunista da Folha de S. Paulo, no artigo intitulado O que resta, edição do dia 08 do corrente, verbis: “O vazio da política – entendida como disputa de ideais e projetos – é o terreno onde vicejam os partidos de aluguel, os chantagistas, os surrupiadores, os fascistas”.

É isso.