A BESTA HUMANA SE REVELA

 

No romance A Besta Humana, de Emile Zola, o protagonista, Jacques Lantier, vive atormentado pelo desejo de matar as mulheres com as quais se relaciona.  Essa perversão, esse desejo, contido, algumas vezes, com muita dificuldade – e que constituem os momentos mais tensos e eletrizantes do livro  – não são, obviamente, do conhecimento dessas pessoas.

O romance referido trata, portanto, do caso típico de pessoa – no caso um maquinista respeitado e sedutor – que se relaciona com os semelhantes com aparente normalidade, sem que estes se deem conta da sua perigosidade, sem que sequer imaginem o perigo que permeia a relação.

No filme Dormindo com o inimigo, protagonizado por Julia Roberts, Martin Burney é um homem de boa aparência, bem sucedido e sedutor, que a princípio parece ser o homem que Laura (personagem de Júlia Roberts) sempre quis ter. Ocorreu, entretanto, que após o casamento, ele se mostrou um marido ciumento, compulsivo e violento. A conduta de Martin atormenta a esposa a ponto de esta, determinado dia, quando velejavam durante uma tempestade, aproveitar a oportunidade para simular o seu afogamento, para, com isso, desaparecer da vida dele.

Apanho, ao acaso, as duas obras em eferência, do cinema e da literatura – ambas símbolos das minhas paixões – apenas para reafirmar aquilo que não é mais que uma obviedade, ou seja, que convivemos com pessoas muitos próximas, às vezes dividindo o mesmo leito, sem que as conheçamos de fato. São verdadeiras bestas humanas – para usar o título da obra monumental de Zola – capazes de um desatino, a qualquer momento.

A outra obviedade que decorre das obras em comento é que, verdadeiramente, só conhecemos o ser humano quando convivemos mais amiúde com ele, pois não são poucos os que só revelam a sua personalidade (a besta que há dentro dele), passados longos anos de convivência.

Nos ambientes que favoreçam a reunião de pessoas diferentes tem de tudo. As bestas humanas neles habitam, se manifestando das mais variadas formas. Tem as persuasivas, as dispersivas, as arrogantes, as que se julgam donas da verdade, as que não respeitam a posição dos colegas, as que não gostam de ser contrariadas, as que se julgam superiores,  as que detestam ter os seus argumentos confrontados, situações que, de rigor, não deveriam surpreender, pois, afinal, o ser humano existe mesmo é para surpreender,

Somos assim! Paradoxalmente, da mesma forma que julgamos, precipitada e equivocadamente, quem não conhecemos, somos surpreendidos quando nos defrontamos com o verdadeiro perfil psicológico de pessoas que imaginamos conhecer muito bem. Daí por que não devemos nos iludir com as aparências, com as falsas cortesias, com os abraços que são disfarces, com o sorriso que não passa de dissimulação, com o beijo que não traduz o verdadeiro sentimento, situações que, todos haverão de concordar, permeiam a convivência do ser humano em sociedade.

A verdade é que ninguém, pelo menos ao primeiro contato, se mostra por inteiro. As circunstâncias, às vezes, nos impõem uma conduta que não retrata o que somos ou pensamos, como se pode inferir dos trechos de uma carta enviada a Deus, por Celie, protagonista do romance A cor púrpura, de Alice Walker, na qual ela confessa: “Todo mundo fala do tanto queu sou boa pros filho do Sinhô___. Eu sou boa pra eles. Mas eu num sinto nada por eles. Fazer carinho nas costa do Harpo num é nem como acarinhar as costa de um cãozinho. É mais como acarinhar um pedaço de madeira. Não uma árvore que vive, mas uma mesa, um guarda-roupa. De toda maneira, eles também num gostam de mim, por melhor queu seja.”

O ser humano – tento, aqui e agora, refletir sobre a questão, sem nenhum conhecimento teórico, à luz apenas da minha experiência de vida e profissional, quer como promotor de justiça, quer como magistrado – não cansa mesmo de surpreender. Por isso, tenho dito que ele pode ser, ao mesmo tempo, o pior e/ou o melhor animal sobre a terra, em face mesmo de sua capacidade de dissimular, de escamotear, de fingir, de apunhalar o igual pelas costas, de abraçar, beijar, ainda que o seu desejo mesmo seja de escarrar no rosto de quem elegeu como desafeto. Nenhum outro animal é capaz de agir assim.

Há sempre no recôndito da alma de alguém algo desconhecido, um lugarzinho impenetrável, imperturbável que guarda só pra si, até o dia em que aflora, de súbito, surpreendendo as pessoas que estão em seu entorno, revelando, por inteiro, a besta humana que sempre foi.

MORALMENTE CONDENADOS

 

Não se pode negar. Em todos os lugares, em todas as corporações, em todas as instituições, onde houver gente, enfim, haverá sempre os que não têm boa conduta, embora sejam minoria, felizmente.

No Poder Judiciário não podia ser diferente, como diferente não é nos demais Poderes, conquanto se tenha a impressão de que o Poder Legislativo concentre o maior numero de autores de condutas desviantes, que pode ocorrer, sim, porque os políticos são sempre os mais expostos e têm sempre um desafeto a lhe infernizar a vida.

Na nossa corporação, como em qualquer outra, é muito provável que convivamos, sim, com malfeitores, ou seja, com os que não se comportam com dignidade, cuja conduta termina por jogar lama em toda instituição, atingindo todos os seus membros mesmo os de conduta ilibada.

E quando falo em comportamento indigno eu não me refiro apenas aos que recebem propinas, aos que vendem suas decisões, aos que mercadejam o direito do jurisdicionado, auferindo vantagens materiais.

Refiro-me, ademais, aos que traficam influência, descarada e acintosamente, ou seja, os que usam o poder sem escrúpulos, os que, nessa faina, não se constrangem em fazer mercancia com o direito de uns para servir aos amigos, exorbitando, abusando do poder, sem se importarem com o mal que possam estar fazendo ao semelhante; semelhante não tão semelhante assim, pois que a maioria, desprotegida, não tem a quem apelar, sendo vitimada pela ação nefasta de quem, com poder, não se impõe limites.

O que alivia e conforta, em face da constatação acima, é que, conquanto muitos dos malfeitores incrustados nos Poderes não sejam flagrados e desmascarados, e que, por isso, persistam formalmente impunes em face de sua sanha criminosa, eles não passam ao largo da condenação moral, do julgamento popular e de seus próprios pares, pois, afinal, todos cometam essas más ações, todos falam, todos cochicham, todos condenam o tráfico de influência, todos condenam, por exemplo, os sinais exteriores de riqueza, todos se  agastam com a vida esnobe que uns levam, incompatível com os ganhos consignados nos seus holerites.

A verdade é que ninguém é tolo a ponto de não perceber que uns poucos parecem sempre estar podendo mais do que os seus iguais, os quais, de rigor, estão na mesma posição dentro da pirâmide social, daí a estupefação, a condenação moral a que são submetidos, conquanto consigam passam à ilharga das ações dos órgãos persecutórios.

Com efeito, embora se imaginem imunes às ações das agências de controle – judicial e/ou administrativa – porque, afinal, todos sabem, em face dessas condutas desviadas, raramente os seus autores são punidos exemplarmente, é bom que sejam lembrados de que, por onde passam, são julgados moralmente pelo cidadão de bem, pois todos comentam, todos têm uma história pra contar a desabonar-lhes a conduta, todas destacam uma falcatrua protagonizada por um malfeitor; não passam, portanto, incólumes do julgamento popular, pois sempre haverá quem ouviu falar ou mesmo tenha testemunhado uma ação marginal, a qual, por ser marginal (a ação), não chega, formalmente, ao conhecimento das instâncias de controle.

É bobagem, portanto, achar que as bandalhas que protagonizam os malfeitores passam à margem da condenação pública. Ninguém faz nada escondido nos dias atuais. Os corruptores, não se iludam, são os primeiros a comentar os desvios de conduta, pelo prazer de desmoralizar, ou mesmo para contar vantagem, para demonstrar estar podendo.

Nesse sentido, eles, os de condutas heterodoxas, podem até imaginar estar agindo às escondidas – nas sombras, sorrateiramente, como o fazem os assaltantes que agem na calada da noite, em lugar ermo, furtivamente, sem se dar conta de que pode estar sendo flagrado por uma câmera qualquer -, mas suas falcatruas, na verdade, já caíram – ou cairão, mais dias, menos dias – no domínio público, por isso eles já receberam a condenação moral que mereciam, pouco importando as aparências, as falsas pregações que façam no afã de iludir os incautos.

A verdade é que, ainda que não sejam desmascarados publicamente, eles não passam, não passarão incólumes do julgamento moral; este é inevitável, inapelável, não falhará, pois, como disse acima, essas ações malsãs são comentadas em todas as rodas, em todos os lugares, aonde há gente reunida, tudo furtivamente, na base do cochicho, como convém, pois, afinal, ninguém, por mais inconsequente que seja, ousará fazer uma denúncia formal sem provas.

Faço esse desabafo porque me agasta as notícias sobre corrupção envolvendo homens públicos, sem que se apontem os nomes dos malfeitores, disso resultando que todos nós, indistintamente, ficamos sob suspeita, ainda que se saiba que os desvios de conduta entre nós estão restritos a uma minoria; minoria que, no entanto, com a sua ação malfazeja, se encarrega de aspergir nódoa  sobre todos nós, a manchar a nossa história de vida, a nossa luta, o nome que construimos.

ENQUANTO ISSO A VIDA LÁ FORA, IMPÁVIDA, DESFILAVA

 

Muito jovem, na adolescência, vi, com agastamento natural, a vida (sentido lúdico) lá fora desfilando, impávida, arrogante e prepotente em face daqueles que, como eu, não tinham condições materiais de participar, minimamente, da festa por ela patrocinada, compelido que fui a conviver apenas com as “sobras” do que ela oferecia, decorrência natural das dificuldades materiais pelas quais passei, sem me sentir tentado a praticar nenhum desatino, como fazem muitos jovens nos dias de hoje, quando decidem, por exemplo, pela prática de um assalto, para compartilhar dos bens de consumo aos quais não têm acesso.

A verdade é que, na sua ação discriminadora, pelos mais diversos motivos, a vida desfilava intrépida – como desfila até hoje para muitos –, diante dos meus olhos e de muitos que se encontravam na mesma situação que eu, só oferecendo os seus prazeres – plenamente, despudoradamente – a uma minoria, com a mesma arrogância e prepotência com que negava a muitos – como, de resto, nega até hoje – o direito de vivê-la com igualdade de condições, como era de se esperar numa sociedade que pretendemos justa.

É verdade sabida que ser jovem é muito diferente de ser adulto. Daí que, quando jovem, numa visão equivocada e egocêntrica, a gente pensa que tudo tem que ser para hoje, como se não houvesse amanhã, razão pela qual muitos, como eu, se incomodavam com a vida que se vivia lá fora, alijados, perplexos e, de certa forma, inconformados por não poder participar da festa promovida para uns poucos.

Nesse panorama, estar – ou sentir-se – marginalizado, colocado de lado em face da festa que é viver (sempre no sentido amplo), para os jovens, sobretudo nos dias presentes, bombardeados pelas propagandas que são veiculadas, ad nauseam, nos veículos de comunicação e nas mídias sociais, às quais quase todos têm acesso, pode ser decisivo quanto a atitude a ser adotada doravante – muitos infletindo para a marginalidade –, sobretudo se falham – e eles quase sempre falham – as instâncias de controle, com especial destaque para a família.

Para os adultos, calejados pela vida, já tendo testemunhado as injustiças do mundo e já tendo vivido o suficiente para compreender que só para uns poucos a vida reserva o melhor quinhão, alijando, no mesmo passo, a grande maioria, para a qual nega quase tudo – saúde pública educação de qualidade, e moradia decente, etc –, contemplar a “festa” que a vida promove, sem dela participar, pode ser, a essas alturas do campeonato, pura bobagem, algo indiferente. Muitos, como eu, são cientes de que viver a vida intensamente não se resume aos prazeres do mundo exterior, os quais podemos encontrar, o quanto basta, no ambiente familiar, afinal o lar é onde ocorre a absolvição das lides da vida, lugar onde a gente se despe, muda de pele, tira todos os uniformes que vestiu e os trajes em que se enfiou, onde a gente se desvencilha de todas as feridas e ressentimentos (Casei com um comunista, de Philip Roth).

Para os jovens, entretanto, com os hormônios em ebulição, à flor da pele, a impossibilidade de participar ativamente das festas que a vida promove, pode ser arrebatadora, definitiva, inibidora, preocupante, desanimadora, porque ele pensa, por falta-lhe a exata percepção do que é a vida e seus desdobramentos, que viver se resume aos prazeres que se apresentam agora, o que é próprio da juventude, que imagina que uma oportunidade perdida não se recupera.

Envelhecer, como se vê, também tem as suas vantagens. Quando se é jovem – é claro que estou falando a partir da minha visão de mundo –, é doído ver a vida lá fora desfilando, como muitas vezes vi, sem poder dela participar, daí o sentimento aflitivo, e as vezes incontido, de alijamento, discriminação, impotência, abespinhamento, visão que resulta definitivamente mitigada e arrefecida – quando não expungida – em face do tempo vivido e da experiência acumulada.

Eu testemunhei, sim, muito jovem ainda, da janela entreaberta, a vida lá fora desfilando, impávida (Mia Couto, em Um rio chamado tempo; uma casa chamada terra), sem que tivesse condições de participar da festa, quando incontida era a minha vontade de viver e compartilhar com meus colegas das noites que eles curtiam e sobre as quais eu só ouvia os comentários do dia seguinte, exacerbando a minha inquietação e a minha angústia.

Hoje, cá do meu lado, convivendo com as consequências da passagem inexorável do tempo, não me importo, como fazia na juventude, com a empáfia da vida que desfila lá fora. Se não chego a desprezá-la, posso dizer que a encaro com a mais absoluta naturalidade, quase indiferença. Não estou, na verdade, nem aí para a soberba da vida que se vive lá fora, pois prefiro, sim, ver a vida que desfila, humilde e acolhedora, no interior do meu apartamento, cercado das coisas que gosto, estimo e que me dão prazer.

SOBRE CARROS E PRISÕES

No Brasil, todos os dias, são emplacados milhares de carros novos; e os lançamentos se fazem a todo hora, seduzindo o público consumidor.

Nesse cenário, o estimulo ao consumo é uma constante, e não se vê providências no sentido de viabilizar o tráfego de veículos – nem nas cidades e nem nas estradas.  Persistindo a situação atual, vai chegar o dia no qual não vamos mais poder sair de carro, pois, logo, logo, nas médias e grandes cidades, ter-se-á que apelar, inicialmente, para o rodízio e, em seguida, para um transporte alternativo.

Vejo se multiplicar, por outro lado, com a mesma volúpia, a reclamar, da mesma forma, providências do Estado Administração, a prática de crimes, com inevitável implementação de prisões, provisórias ou definitivas.

Porque crimes vários são cometidos a toda hora, sobretudo os violentos, nunca se prendeu tanto no Brasil. Chegamos, assim, ao esgotamento do modelo. Mas não é colocando em liberdade perigosos meliantes que se resolve o problema.

A prisão, nos dias atuais, é bem de ver-se, ainda é uma amarga necessidade, por isso é que, goste-se ou não, prende-se muito, para o bem ou para o mal. Os presídios, por isso, estão esgotados, e as centrais de recolhimento provisório chegaram à exaustão.

Nesse panorama, depositam-se os presos nos cárceres, como se fossem artigos de segunda, brutalizando-os, desrespeitando a sua dignidade, emprestando-lhes tratamento desumano e degradante, sob os olhos contemplativos dos que, podendo, nada fazem.

O triste cenário salta aos olhos. Onde cabe um, colocam-se dois, três, quatros, sem as mínimas condições de higiene e saúde. E por aí vamos todos, açoitando, aviltando o ser humano no que ele tem de mais relevante que é a sua dignidade.

Com essas ações (ou inações) danosas, vamos traçando, moldando o perfil do criminoso do futuro, daquele que sairá da cadeia pior do que entrou: revoltado, aviltado, achincalhado, desrespeitado, aniquilado, brutalizado, espezinhado.

.E o Estado, o que esperar dele? Acho que pouco ou quase nada. O Estado, diante dessas e outras tantas questões relevantes, quase sempre se mantém inerte, alegando, em sua defesa, falta de recursos, os mesmos recursos que sobram para a corrupção, para o enriquecimento ilícito.

Nesse cenário, a violência grassa, ao tempo em que impunidade deseduca. E, diante desse quadro, a sociedade, indignada, nos cobra providências, pelo fato de sermos responsáveis pelas agências de controle. E nós temos que fazer a nossa parte, uma vez que o  Poder Judiciário, por seus agentes, não pode quedar-se inerte. Não podemos, simplesmente, colocar em liberdade um meliante, ao argumento de que não há vagas nos presídios, pois, afinal, garantismo penal tem limites, e o limite é a proteção da sociedade.

Que o réu será brutalizado pelo Estado quase não se tem dúvidas. Que a prisão provisória deveria ser evitada todos sabemos. Que a prisão é a última ratio da extrema ratio, temos ciência. Mas o que fazer diante da criminalidade crescente, se nos negam os outros instrumentos de controle? Fechar os olhos? Colocar todo mundo em liberdade, a pretexto de dar ao meliante o tratamento digno e humano que ele não dispensa à vitima, em face da omissão do Estado que não constrói presídios? Vamos exaltar a liberdade individual em detrimento da nossa própria liberdade, quase inviabilizada em face da violência que permeia a vida em sociedade?

Ao Estado não é dado o direito de promover arbitrariedades e por isso devemos condenar toda sorte de abuso. Mas disso resulta o xis da questão, já que ele, Estado, não pode dispensar proteção deficiente à sociedade, privilegiando o direito individual de um acusado, em detrimento das pessoas de bem, conquanto nos aflija – e refutamos, com veemência – o tratamento desumano e degradante a ele dispensado.

A verdade é que, nos dias de hoje, com a violência batendo à porta, e a impunidade estimulando a prática de crimes,  não se há que falar apenas de proteção negativa contra os abusos estatais. O Estado Democrático de Direito tem que cuidar de todos, deve expender esforços para proteger o cidadão de bem de toda sorte de agressão. E nessa faina, se for necessária a prisão, ela deverá ser implementada.

O Estado deve intervir tanto para evitar os abusos em face de um criminoso, quanto no sentido de combater a criminalidade, visando a proteção da sociedade. E do confronto desses dois interesses, deve optar pelo interesse social, conquanto não deva, sob qualquer pretexto, silenciar em face do desrespeito aos direitos humanos.

Contudo, o dilema persiste. E diante disso,, o juiz deve decidir, pois, se, por um lado, o Estado não pode se valer do ius puniendi para praticar arbitrariedades atentatórias aos princípios basilares da Constituição, por outro, no chamado Estado Democrático de Direito, tem o dever de proteção integral de todos os direitos, disso resultando o conflito que deve ser dirimido, entre o direito à liberdade de um meliante reconhecidamente perigoso e o interesse da sociedade em se ver protegida.

Portanto, assim como não se pode pura e simplesmente fechar as fábricas de veículos e nem proibir a sua venda porque as ruas e as estradas já não os suportam mais, não se deve deixar de prender porque as penitenciárias estão lotadas. Numa e noutra hipótese, espera-se do Estado providências no sentido de minimizar as consequências dos excessos.

COMO SUPORTAR TANTA REALIDADE

imagesÀs vezes me pego indagando como, nos dias atuais, suportar  tanta realidade, para usar uma expressão de T.S. Eliot (1888-1965), diante, sobretudo, da violência que se alastra e que faz de todos nós reféns de nós mesmos.

A propósito, numa das mais recentes sessões da Câmara Criminal,  fizemos, eu e meus pares, algumas reflexões acerca da violência que grassa na sociedade e em face da nossa situação de impotência diante do crime, que tirou de todos nós a nossa liberdade e o sagrado direito de ir e vir livremente, como, afinal, preconiza a nossa Constituição.

Essas reflexões vieram a propósito de alguns habeas corpus que pretendiam a liberdade de criminosos violentos – latrocidas, assaltantes, estupradores, etc -, os quais alegavam estar submetidos a constrangimento ilegal, em face da demora no encerramento da instrução.

Conquanto reconhecêssemos um pequeno elastério na instrução criminal, entendemos no mesmo passo, à unanimidade, que não deveríamos conceder liberdade aos pacientes, por compreendermos que, diante da realidade que vivenciamos, da periculosidade in concreto dos autores dos delitos e, algumas vezes, em face de sua vida predadora em sociedade, uma decisão que concedesse liberdade aos mesmos seria uma afronta  à sociedade.

Optamos, com efeito, pela manutenção das prisões, na certeza de que, agindo assim, prestávamos um tributo à sociedade, ao tempo em que deixamos transparecer aos acusados que, por serem perigosos, teriam que suportar as consequências de sua ação, ainda que o fosse pela via excepcional da constrição provisória.

Temos consciência de que não se deve abusar das prisões provisórias, em face mesmo da presunção de inocência. Todavia, diante da criminalidade violenta, não se pode simplesmente fechar os olhos para a situação concreta que ensejou a prisão cautelar dos pacientes. Por isso, conquanto se discuta, por exemplo, excesso de prazo, não se pode descurar dos motivos que ensejaram a medida extrema. Não se deve, por exemplo, em face de um pequeno excesso, não atribuível à desídia do magistrado, colocar em liberdade um denunciado por crime extremamente grave (latrocínio com resultado morte), sobretudo quando se trata de recalcitrância delitiva..

A gravidade do delito, é preciso não deslembrar, assim como a reiteração criminosa, são motivos suficientes para a manutenção da prisão preventiva do paciente, como forma de garantir a ordem pública e a paz social, mormente quando se aproxima o julgamento da ação penal, ainda que se verifique uma pequena demora no encerramento da instrução, pois o excesso de rigor formal pode significar uma afronta à sociedade.

Reitero, nessa linha de pensamento, que as circunstâncias relacionadas ao lapso temporal devem ser apreciadas, como sói ocorrer, em conjunto com as especificidades do caso, concernentes à necessidade de acautelamento do meio social.

As decisões judiciais não podem ser meramente técnicas, devendo também ser justas e eficazes, direcionadas ao fim precípuo do Direito Penal, de forma a garantir a harmonia social, desde que, é claro, não se constate ofensa aos direitos fundamentais.

Forte nessas considerações, entendo que um pequeno retardo para o encerramento da instrução não autoriza, ipso facto, ipse jure, a colocação em liberdade de quem tem uma vida perniciosa e perigosa, pois a segregação, nesses casos, é medida que se impõe.

Não está fácil, como se vê, suportar tanta realidade; para suportá-la, no que se refere especificamente à criminalidade, é necessário  que os agentes do Estado responsáveis pela persecução criminal não descurem de suas obrigações e de seu compromisso para com as pessoas de bem, agindo, quando necessário, com o inexcedível rigor, no sentido de punir o criminoso violento e para prevenir, ainda que com o remédio amargo da prisão provisória, a criminalidade recalcitrante.

O CUIDADO QUE DEVEMOS TER COM AS EXPECTATIVAS QUE CRIAMOS

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

 

Todos nós, admitamos ou não, vivemos, aqui e acolá, momentos de pura elucubração, de muita imaginação, de fantasias e de sonhos. Nos nossos sonhos e fantasias, elucubrações e imaginação, muitas vezes, pontificam personalidades do mundo real, com as quais não temos o menor contato, mas sobre as quais fazemos as mais diversas e esquisitas especulações, os mais esquisitos juízos, imaginando-as assim ou assado, até o dia em somos instados a confrontar a realidade e, nesse passo, compelidos a reavaliar, positiva ou negativamente, os juízos pré-concebidos que formulamos.

O primeiro encontro de Stalin com Lênin se deu na Finlândia, em dezembro de 1905, numa conferência semiclandestina da qual Stalin participaria como delegado do partido georgiano. Consta que a primeira impressão de Stalin em face de Lênin foi de pura decepção; muito distante, com efeito, daquilo que havia imaginado e idealizado sobre o líder.

Consta, nesse sentido, que Stalin, depois do primeiro encontro, teria dito: “Eu esperava ver a águia do nosso partido, o grande homem, grande não só politicamente, mas, por assim dizer, também fisicamente, porque Lênin se apresentava à minha imaginação como um gigante de bela figura, com um ar imponente. Qual não foi, porém, a minha desilusão, prosseguiu, quando vi um homem dos mais comuns, de estatura inferior à média, que não se distinguia em nada, em absolutamente nada, dos simples mortais”.

Lênin, da mesma forma, não deve ter se impressionado com o que viu, afinal, segundo uma ficha de dados compilada pela policia czarista depois de sua primeira prisão, Stalin era, da mesma forma, um tipo comum, atarracado, de estatura média, com cerca de 1.62, barba e bigode escuros, a fisionomia marcada pela varíola e uma singular particularidade: tinha o segundo e o terceiro dedos do pé esquerdo unidos.

José de Alencar subiu à tribuna para o seu primeiro discurso como deputado, sob enorme expectativa, em face da sua reputação como literato. Todos esperavam um excelente orador, com boa dinâmica de fala, convincente, capaz de galvanizar as atenções. Foi uma enorme decepção. Tropeçou nas palavras, não foi convincente, não mereceu aplausos. Foi o oposto de tudo que se imaginou, que se criou, enfim, em face da sua fama de literato. É que as pessoas não foram capazes de, ao alimentarem a sua imaginação, perceber que um literato não é, necessariamente, um grande orador, daí o equivoco de se elucubrar, de se imaginar, de se sonhar descurando que, acima disso, além dos nossos preconceitos, há uma realidade que não pode ser desconsiderada.

O que revelam esses episódios é o obvio: devemos ter cuidado com as expectativas que criamos em torna nas pessoas, da mesma forma que temos que ter cuidado redobrado com a primeira impressão, pois nem sempre o que parece é. Essas são lições comezinhas, mas que, pela que testemunhamos todos os dias, poucos a aprenderam. Eu próprio, muitas vezes, sou tomado de desalento, ao fazer um julgamento precipitado do que vi no primeiro momento ou em face das expectativas que criei em torno de determinadas pessoas; como ocorreu, por exemplo, com Euclides da Cunha que trazia consigo uma falsa impressão sobre Canudos, que só se dissipou quando se defrontou com a realidade.

Pelo fato de ser muito fã de um determinado cantor popular, de ter sido embalado na minha juventude – e até hoje, já na terceira idade – pelas suas canções, sempre guardei em mim a esperança de um dia poder estar com ele. Descobri, já maduro, que o melhor mesmo é que esse dia nunca chegue, pois, para mim, tendo-o como um mito, tendo-o idealizado como um quase deus, seria muito difícil concluir que ele é uma pessoa igual a mim. É preferível, pois, que eu guarde dele apenas a imagem que criei, pois, para mim, seria um desalento se, conhecendo-o de perto, descobrisse que ele é gente igual a gente; e um ídolo, um mito como ele, não pode ser igualzinho a mim, simples mortal.

Eu guardei na minha lembrança, por muitos anos, a imagem da casa que morava com a minha família em Vitorino Freire. Na minha retina ficou guardado, por muitos anos, o campo de futebol, em frente a uma usina de beneficiamento de arroz, onde jogávamos futebol. Eu sonhava muito em voltar um dia para rever a casa e o campo mencionados, pois eles, como tantas outras coisas de lá, não habitavam, de forma inclemente, as minhas mais lúdicas lembranças.

Determinado dia, muitos anos passados, voltei na esperança de matar a saudade dos momentos vividos na minha infância. Criei expectativas várias. Meus pés e as minhas mãos gelaram ao entrar na cidade. Mas foi enorme a decepção: nem o campo de futebol e nem a casa em que morávamos existiam mais. Frustrado, decepcionado, triste, voltei para São Luis, prometendo a mim mesmo que tudo faria, doravante, para não destruir os meus sonhos, as minhas fantasias, a imagem guardada, pois o que vi diante dos meus olhos pode ser medido, em proporção, à decepção de Stalin ao deparar-se com a figura minúscula e inexpressiva de Lênin, ou de Euclides da Cunha, ao testemunhar os seus equívocos em torno de Canudos.

Não custa nada guardar as boas lembranças no aconchego da alma. Não faz mal sonhar, imaginar e elucubrar. Faz parte da vida. Melhor sonhar, viver das boas lembranças que pura e simplesmente se decepcionar ao confrontar a realidade; pelo menos até aonde é possível sonhar, afinal, como diz o poeta, “sonhar não custa nada, não se paga pra sonhar”. Mas, do mesmo modo, é preciso muito cuidado com as ideias pré-concebidas, para não ter se decepcionar, como se decepcionaram os que confundiram José de Alencar escritor com o José de Alencar orador.

 

O PREÇO DA AMBIÇÃO

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

 

Clay Carter, advogado público, aparentemente, não tinha ambição, uma vez que se dedicava, exclusivamente, à defesa de pessoas pobres e marginalizadas, parecendo do tipo acomodado, apesar de ser reconhecidamente brilhante. Clay, inobstante, conforme se verá adiante, assim como muitos, cede à primeira tentação, pois, sem formação moral consolidada, não é capaz de suportar a primeira provocação, ao primeiro aceno.

Apesar de brilhante, Clay era do tipo mal remunerado, malsucedido, visto que só trabalhava em casos ruins, daqueles que ninguém queria. Ele parecia conformado com a vida simples que levava, em que pese ser filho de um grande e bem-sucedido advogado, que por um deslize moral, caíra no ostracismo e já não era mais lembrado por ninguém.

Clay namorava Rebecca, cujos pais não aceitavam a sua condição de malsucedido profissionalmente. Contudo, ele parecia não estar nem aí para o fim do namoro, que se deu por pressão dos ambiciosos pais de Rebecca, os quais, ricos, prepotentes e sem pudores, queriam o “melhor” para a filha.

Influenciada pelos pais, Rebecca deixava claro a Clay que gostava do que era bom, daquilo que só o dinheiro podia proporcionar, razão pela qual, por influência destes, deu por terminado o namoro com Clay, que ficou arrasado com o desfecho, fato que, muito provavelmente, o impulsionou rumo à ambição que terminaria por lhe trazer fortes dores de cabeça.

Confesso que, à proporção que eu conhecia a vida de Clay, ia me identificando com as suas desventuras, com as suas frustrações, supondo, numa primeira impressão, que se tratava de uma pessoa que não se deixaria levar pela ambição, e que, honestamente, venceria e daria uma lição a Rebecca e a seus pais.

Bastou, inobstante, que se abrisse a primeira oportunidade para que ele revelasse seu lado ambicioso e despudorado – como costumam fazer muitos com os quais às vezes convivemos -, e se aliasse ao misterioso Max Pace, para, em nome de uma grande firma de advocacia, patrocinar ações indenizatórias coletivas, com base em artimanhas e falcatruas, a partir das quais ganhou muito dinheiro, sem nenhuma restrição moral, deixando-se levar pelos interesses mais mesquinhos.

Clay Carter, assim como tantos que conhecemos, acabou totalmente absorvido pela ganância e pelo dinheiro fácil, sempre querendo mais, numa sequência de grandes ações coletivas contra grandes empresas que jogaram no mercado fármacos com algum efeito colateral danoso.

As passagens acima mencionadas – sem spoiler, pode constatar, depois, quem vier a ler o romance -, à guisa de ilustração, são do romance O Rei das Fraudes, de John Grisham, obra ficcional que não está distante da realidade, segundo testemunhamos todos os dias, em face da ambição desmedida de alguns, sobretudo os que exercem cargos públicos, os quais, pelas suas ações, se expõem e expõem, sem pudor, a sua própria família à execração pública.

O lamentável é que essas pessoas, sem freios e sem peias morais, equivocadas, com a mente obliterada pela ambição, pensam que, no exercício do poder, tudo podem – e agem como se tudo pudessem mesmo -, até o dia em que são flagradas e desmoralizadas publicamente (vide o exemplo da Operação Lava Jato), levando na onda desmoralizante os seus filhos e seus parentes mais próximos, que, sem apelo e sem culpa, passam a sofrer as consequências, os efeitos de sua ação incontrolada, que termina por espargir sobre todos os membros da família a lama fétida sob a qual resultou mergulhado, por pura ambição.

Fico me indagando, diante dos exemplos que tenho assistido, em face das notícias sobre corrupção em todas as esferas de poder, o que leva um homem público, bem remunerado, vivendo, como poucos, uma vida com muito conforto, com um bom saldo bancário, dando o que há de melhor aos filhos, consumindo o que se destina a poucos, a se corromper, mercadejar decisões e influências, desmoralizando a si e à instituição a que pertence, além de levar de roldão os que o cercam, impiedosamente.

Para os que pensam e agem assim, sem controle, sem amarras, dispostos a tudo pelo vil metal, é sempre prudente lembrar que ambição tem preço, e que quem opta por desviar a conduta, deve estar ciente de que o preço a pagar pelo luxo que ostenta, à vista de todos, despudoradamente, é muito mais alto do se que possa imaginar, em face dos efeitos que dela (da ambição) irradiam.

Ambição todos nós temos. O termo, de grande abertura semântica, permite  várias acomodações. É quase uma ficção viver sem ambicionar alguma coisa. Eu também tenho as minhas, mas não as permito sem controle. Eu gostaria, por exemplo, de ser um filho, um pai e esposo melhor do que sou. Também gostaria de ter a capacidade, que poucos têm, de me conduzir sem deslizes morais, mesmo os irrelevantes, que todos nós, em determinadas circunstâncias da vida, nos permitimos. Isso, todavia, vejo não ser possível, uma vez que esses pequenos deslizes são próprios do homem. Basta olhar em volta de si mesmo e examinar a sua conduta quando está diante da possibilidade de levar vantagem, seja furando uma fila de atendimento ou usando do poder e prestigio que o cargo oferece.

Por ter ciência de que o homem tende ao desvio moral, penso que é preciso que, no exercício de um múnus público, que busquemos, com sofreguidão, controlar os nossos impulsos, conter a nossa vaidade, pois, sem controle, podemos ser levados aos grandes desvios de conduta que podem nos levar, inapelavelmente, à derrocada moral, à desmoralização definitiva.

Aos que integram uma corporação e fazem uso do poder para levar vantagens, fiquem certos de que nada é mais desgastante para uma instituição, em qualquer instância de poder, do que ter entre seus membros pessoas ambiciosas e sem escrúpulos, que estejam a serviço apenas de seus interesses pessoais, pois que, nesse cenário, levam consigo parte da credibilidade da instituição a que pertencem, deixando a malévola e equivocada impressão de que todos têm a mesma tendência, que são todos movidos pelos mesmos interesses.

A CRISE PRISIONAL É CULPA DE TODOS

Carrlos Eduardo Pinheiro Rocha

Bacharel em Direito – Pós-Graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Estácio -Servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão.

Em meio ao caos que se instalou no sistema carcerário brasileiro, observo, após a leitura de vários sites, revistas, blogs e colunas, a busca incessante pela responsabilização do atual momento vivenciado.

Culpa-se o Executivo porque nunca investiu no sistema. O Judiciário se mantém determinado indivíduo preso de forma prolongada, é moroso, e se o põe em liberdade é conivente com a criminalidade.

Culpa-se ainda o Ministério Público e sua “sede” por condenação, além da polícia que é mal preparada e corrupta. Sobra até para Defensoria Pública, pois a mesma não é capaz de atender a demanda crescente. Aos advogados reserva-se o estigma de mercenários que por dinheiro defendem os piores criminosos.

Por fim, vem o poder Legislativo, responsável em elaborar leis penais brandas, o que estimula o crescimento da criminalidade. Resumindo, o problema, genericamente falando, é das autoridades e do sistema como um todo, independente do poder a qual pertençam.

Pronto. Encontrou-se a causa das mazelas atuais. A crise é lá e não aqui, afinal, eu não tenho a caneta em minhas mãos para autorizar, nomear, decidir, requerer, determinar, denunciar, peticionar ou executar qualquer ato inerente às autoridades públicas no cumprimento de seu dever. Sou apenas um cidadão de bem e nada disso me diz respeito.

A questão crucial, a meu ver, e que muitos devem se indagar principalmente na hora de atribuírem a culpa a determinado órgão é: porque que não se investe no sistema carcerário? Porque o governo não constrói presídios se a superlotação prisional debatida exaustivamente é de conhecimento de todos?

A resposta é simples: presídio não dá voto. Imagine você, um candidato em plena campanha, tendo como um dos seus temas “NO MEU GOVERNO, IREI INVESTIR 200 MILHÕES NA CONSTRUÇÃO DE NOVOS PRESÍDIOS”. Puro suicídio político. Derrota certeira. Num estado (e país) onde a carência por serviços básicos é precária, a educação é falha e a saúde pública é uma verdadeira antecipação de morte, não há espaço para se investir um real na melhoria de morada provisória de preso.

A população anseia por melhores condições de vida, saúde, educação, infraestrutura e, na rabeira dos investimentos públicos, melhorar o sistema carcerário não deve sequer fazer parte da lista de investimentos a serem efetuados.

Sinceramente, não quero a construção de presídios quando inexistem hospitais e escolas para atender a população de forma eficaz, e tenho certeza que este pensamento reflete o de muitos cidadãos. Porém, esta postura me responsabiliza, em conjunto com as demais autoridades, pelos fatos vivenciados atualmente.

Conforme dito antes, presídio não dá voto, não elege, e, via de consequência, não é importante para aqueles que estão ou pretendem um dia exercerem um cargo eletivo, sendo dispensável para o destinatário final de uma campanha política, o eleitor. Uma boa forma de um marqueteiro político perder seu emprego é informar ao candidato que parte de seu programa de governo será voltado para a melhoria carcerária. Demissão imediata.

A melhoria no sistema prisional não se dá apenas por parte de investimentos, se dá pela mudança no pensamento de todo cidadão, tendo a consciência de que a questão carcerária é de importância fundamental para toda a sociedade, afinal, ninguém que está privado de sua liberdade ficará eternamente neste estado de custodia, ou seja, um dia você estará do lado de uma pessoa que já permaneceu detida.

Agora vejamos, de quem é a culpa? Do governo que não investe ou da população que não quer este investimento? Quem votaria num candidato ao afirmar, em plena campanha, que pretende executar o maior investimento da história em presídios, quando o Estado sequer garante o mínimo de atenção básica para a população?

Como cidadão, confesso que passei a refletir um pouco mais sobre a complexidade do atual momento em que vive o sistema prisional brasileiro, mas infelizmente, e como já é praxe, determinadas questões só são debatidas após mortes, dor e sofrimento. É aquela máxima brasileira de que todo mundo sabe do problema, mas é preciso que uma desgraça aconteça para que se discuta. Vou dar um exemplo pontual para não fugir do tema. Redução da maioridade penal. Aparece e depois some. Discute-se para logo em seguida cair no esquecimento (exemplos: caso Liana Friedenbach de 2003, Victor Hugo Deppman, abril de 2013, universitário morto com um tiro na porta de sua casa e o da dentista Cynthya Magaly, que teve o corpo tomado por chamas após um menor lhe atear fogo, e mais recente, o estupro coletivo em Castelo/PI, dentre inúmeros). Infelizmente e com pesar, eu afirmo que vai ser necessário que um adolescente mate algum cidadão de forma chocante e trágica para que essa discussão volte à pauta, já que a “bola da vez” são os presídios.

Voltando. Praticar um crime é uma opção individual (generalizando, sem adentrar nas questões sociais) e a nossa insensibilidade e desprezo pelo sistema carcerário ocorre pelo fato da imensa maioria dos brasileiros serem pessoas corretas e trabalhadoras, fato que impõe a sensação de relativa imunidade de um dia fazermos parte do contingente carcerário deste país. Mas, se um de nós tivesse algum amigo ou parente preso neste atual momento, a nossa mentalidade provavelmente seria outra e, assim como se faz necessária a melhoria nos serviços públicos básicos, também se mostra urgente e indispensável a realização de investimentos no sistema prisional, afinal, quem está preso, um dia esteve solto e, infelizmente, a custódia restritiva de liberdade deixa sequelas insanáveis que são descontadas em toda a sociedade (reincidência delitiva).

Ademais, foi-se o tempo de nos considerarmos alheios a situação prisional no Estado. Além de cobrar por hospitais e escolas, a população deve cobrar também a melhoria no sistema carcerário, não devendo renegar aqueles que penalmente e provisoriamente, repita-se, foram excluídos do convívio social.

PS: Escrevi esse texto em março de 2014 quando ocorreu o massacre de Pedrinhas. Fiz essas observações de forma particular, apenas como reflexão própria. Incrível como quase três anos depois, tudo que foi redigido se aplica ao atual momento e penso, será que esse texto ainda será atual nos anos vindouros?