AQUI SE FAZ, AQUI SE PAGA?

Aqui se faz, aqui se paga?

Minha mãe costuma repetir, para não perder a esperança  que “aqui se faz, aqui se paga. Esse aforismo traduz a certeza que ela tem, desde sempre, de que os que fazem maldades, paguem por elas ainda em vida, aqui na terra, para que todos nós testemunhemos, e para que sirva de exemplo.

A vida nos tem ensinado, minha mãe, que não é bem assim, pois que, por tudo que temos testemunhado,  há muitos que fazem maldades e, ainda assim, vivem uma vida plena  ostentando e afrontando, como se fossem proprietários do mundo, o que me autoriza a concluir não ser verdade, sob uma perspectiva terrena, que aqui se faz e que aqui se paga, pois, afinal, se aqui se faz e aqui se paga, no sentido que empresto à locução, então quem não faz aqui, aqui não deveria pagar. E não é isso que tenho testemunhado, por exemplo, com as vítimas da Covid -19, muitas  delas reconhecidamente boas, e que, ainda assim, depois de intenso sofrimento, tiveram a vida subtraída, muitas delas, inclusive, sufocadas, sem ar, fruto da irresponsabilidade de alguns dos nossos representantes.

Aqui e acolá, é verdade, testemunhamos, só para não perder a fé, a queda de um  bandalho. Mas, confesso, desalentado, que, quase nos estertores da vida, vi poucos calhordas padecerem aqui na terra, seja pelo beneplácito da própria natureza, seja pela omissão das instâncias de controle, cujas ações, todos nós sabemos, se destinam a uma clientela específica, sobre a qual derramam, preferencialmente, toda a sua energia, deixando à ilharga parcela relevante de malfeitores do colarinho branco.

A verdade é que poucos são os que pagam sob os nossos olhares pelas maldades que fizeram em vida, como se deu, por exemplo, com Mem de Sá, cujo fato histórico narro a seguir, à guisa de ilustração.

Pois bem. Durante dez anos, Mem de Sá, escolhido, cuidadosamente, pelo rei D. João III, de quem era amigo, para substituir o desastrado Duarte da Costa, exterminou milhares de indígenas, dizimou centenas de aldeias e estimulou o tráfico de escravos, ao tempo em que amealhava uma enorme fortuna pessoal, em razão do tráfico negreiro, de suas fazendas de gado, dos seus engenhos de açúcar e da exportação do pau-brasil.

Todavia, pagou um preço alto: numa expedição enviada ao Espírito Santo, em abril de 1558, para combater os Aimorés, foi morto seu filho Fernão, sendo que, nove anos mais tarde, morreria também, vítima de uma flechada, seu sobrinho Estácio de Sá, na luta contra os franceses e Tamoios pela conquista do Rio de Janeiro.

A filha Beatriz, de 12 anos, e a mulher, Guiomar, também estavam mortas,  tornando-o mais solitário e soturno ainda, solidão que sintetizou, em 1569, numa carta enviada ao rei, com a seguinte expressão: “Sou um homem só.”

Mas o que mais o atormentava acabou acontecendo: morreu aqui, e aqui foi enterrado, sozinho, esquecido pela corte.

Antes, em 1568, quase aos 70 anos de idade, há mais de uma década como governador-geral, Mem de Sá escreveu uma carta ao rei de Portugal. Nela, dentre outras coisas, implorava para que fosse mandado outro governador, pois que tinha receio de morrer em terras nas quais se julgava degredado.

De nada adiantou. Morreu, triste e solitário, por essas bandas; rico, sim, porém infeliz.

É isso.

É PRECISO ASSUMIR POSIÇÃO COM CLAREZA

Uma das maiores dificuldades que constato nas relações que travamos com o semelhante – sejam colegas, amigos, filhos ou mesmo consorte – decorre da nossa incapacidade de compreender e de ser compreendidos..

Nesse cenário, não é rara uma desinteligência em face de uma incompreensão, que pode, dependendo da relevância, levar a relação ao paroxismo, disso resultando a reafirmação do óbvio, ou seja, de que, nas nossas relações, precisamos ser, além de compreensivos, tolerantes.

A verdade é que as pessoas não conseguem – ou não querem –  definitivamente, compreender as outras – por má-fé, maldade ou incapacidade mesmo; incapacidade que, desde o meu olhar, é muito mais significativa quando se tratam das relações que se travam no âmbito das corporações.

Mas as incompreensões são, até, irrelevantes, se levarmos em conta que, no mundo que habitamos, competindo com a mesma tenacidade com as incompreensões, viceja, ademais, com efeitos muito mais danosos, o mais deletério e nefasto de todos os sentimentos que é a inveja, sentimento repugnante e sobre o qual já me detive em outras reflexões.

Se é verdade, como antecipei algures, que temos enormes dificuldades para compreender o semelhante, maiores serão as dificuldades se o semelhante é dissimulado, do tipo que não diz coisa com coisa, que afirma negando e que nega afirmando, que diz hoje o que nega amanhã, que sublima a farsa e o embuste como armas argumentativas.

 Só para ilustrar, lembro que, antes do desfecho da revolução de 30, Getúlio Vargas, aluno aplicado da escola do caudilho Borges de Medeiros, dissimuladamente, fazia juras de fidelidade eterna a Washington Luis, então presidente da República, de quem tinha sido ministro da fazenda, enquanto que João Neves, por determinação do mesmo Getúlio Vargas, por trás, prosseguia costurando a aproximação com Minas Gerais, dificultando, assim, a real compreensão de sua posição política, que só terminou por se revelar com o desfecho da Revolução que o levou à presidência da República, cumprindo destacar que, quando insinuado o flerte com Minas, João Neves se limitou a dizer que o Rio Grande tinha olhos para todos os lados, à direita e à esquerda, como o fazem os jacarés.

Ainda a guisa de ilustração. Quando sondado por Assis Chateaubriand sobre a possibilidade de um candidato do Rio Grande do Sul, terceira força eleitoral do país à época, para se contrapor ao candidato de Washington Luis, no caso Júlio Prestes, Getúlio encarregou o oficial de gabinete a providenciar uma resposta imediata. Mas advertiu: era preciso mostrar-se receptivo à ideia de um acordo com Minas, para não denotar desprezo pelo caso, mas também com cuidado para não demonstrar entusiasmo excessivo, a fim de não transparecer avidez pessoal. É dizer: era preciso, segundo orientação de Getúlio, não se fazer entender, não ser compreendido, pois, afinal, no mundo da política, é assim mesmo que as coisas funcionam.

Mas no mundo do simples mortais as coisas deveriam fluir de outra forma. É preciso ter clareza nas ideais, como é necessário, ademais, predisposição para o entendimento. É preciso ter ciência que nas relações pessoais não se pode viver de tergiversações, de aparências, a partir de frases dúbias, feitas para não ser entendidas, pois isso pode denotar uma esperteza que não se coaduna com o que se espera nas relações das pessoas que se amam, se prezam e se respeitam.

É isso.

JUIZ ANALÓGICO X JUIZ DIGITAL

Principio essas reflexões com uma advertência de Yuval Noah Harari, que serve bem aos que não movem uma palha para ajudar a mudar o mundo, caso, por exemplo, dos juízes que, por comodidade, preferem o conforto da interpretação literal dos textos normativos, ainda que se saiba que o direito pode não estar integralmente contido na lei: “Se o futuro da humanidade for decidido em sua ausência, porque você está ocupado demais alimentando e vestindo seus filhos – você e eles não estarão eximidos das consequências”. (Trechos do ebook “21 Lições para o século 21”, Companhia das Letras. Apple Books).Feito o registro, digo, agora, que todos nós, magistrados, temos, por dever de ofício, que refletir acerca da nossa atuação em face das expectativas da sociedade, o que nem sempre ocorre, porque há, sim, como exceção danosa, os que não dão importância para o nosso deficit de credibilidade.

À luz dessa constatação e tendo em vista que vivemos tempos de inovações tecnológicas que estão revolucionando a prestação jurisdicional, decidi, nessa oportunidade, tecer considerações em face dos juízes que chamo, para fins de comparação, de “digitais” (contemporâneos) e dos que denomino “analógicos” (atrasados).

Devo advertir, nessa linha de reflexão, que nenhum avanço tecnológico reverterá o quadro atual de descrença, se não houver sincronia entre esses avanços e uma mudança de rumo de alguns magistrados, para os quais o tempo parece não ter passado, razão pela qual continuam, mesmo diante das inovações tecnológicas, com uma mentalidade, digamos, analógica, ou seja, atrasada.

O Poder Judiciário avança, a olhos vistos, com a perspectiva de, nos próximos anos, possibilitar a todos os brasileiros acesso amplo, irrestrito e em tempo real aos nossos serviços. Mas essa será uma conquista que tende a ser debalde se não houver uma mudança de atitude do próprio magistrado, de quem se espera, cada vez mais, comprometimento com o seu desempenho, integridade e previsibilidade em suas decisões.

Faço a advertência porque, nos dias atuais, ainda há juízes que teimam em decidir, por exemplo, contra os precedentes, olvidando-se que eles, os precedentes, conferem “segurança jurídica, isonomia e eficiência às decisões” (Luís Roberto Barroso), agindo, com efeito, na era digital como se vivessem no mundo analógico.

Nesse cenário, importa redizer, noutro giro, que “Juiz digital”, sendo juiz do seu tempo, é aquele que, além de não surpreender a cada decisão, não tem medo de processo; e decide contramajoritariamente, se necessário, ainda que, decidindo, tenha que enfrentar os dissabores propiciados pelas incompreensões.

O “Juiz digital”, lado outro, age sempre, no dia a dia, como qualquer cidadão, sem explorar prestígio ou traficar influência, e sem ousar bradar o odiento “sabes com quem estás falando”, porque tem ciência e consciência de que todos são (ou deveriam ser) iguais perante a lei.

O “Juiz digital” tem consciência de que, algumas vezes, tem que se transformar num gladiador (para lembrar Dworkin e o juiz Hércules), para bem decidir, sem permitir, jamais, a instrumentalização da sua razão, que, sabe-se, não liberta; antes, oprime ( Marilena Chauí).

Nessa linha de intelecção, importa concluir que o “Juiz digital” é aquele que, diante de um pleito judicial para o qual não exista regra específica (dogma da subsunção), não se furta de decidir, de uma maneira ou de outra, objetivando a satisfação dos direitos vindicados, que, afinal, é o seu, é o nosso compromisso.

Finalmente, “Juiz digital” é aquele que sabe que não existe intérprete neutro e que o ponto de observação do julgador faz a diferença, razão pela qual toda interpretação contém um grau considerável de subjetividade, que deverá, sempre, ser sopesada, para não deixar transparecer que não tenha sido imparcial.

É isso.

ESTADO DE DIREITO E A NAU DOS INSENSATOS

Diante de uma decisão judicial impactante há um grita natural da sociedade. Nesse cenário, todos nós magistrados, indistintamente, somos tratados como se fôssemos insensíveis, com as costas viradas para o interesse público, perspectiva em razão da qual se pode inferir o quanto é difícil a missão de julgar os atos do semelhante numa sociedade que democratizou, pela internet, a emissão de juízo de valor sobre qualquer tema.

Mas não é bem assim. Logo, é preciso ter muita cautela – e responsabilidade, sobretudo – nessa generalização absurda, que, na minha forma de compreender, até se justifica, aqui e acolá, em face da ação descomprometida de alguns poucos.

Da mesma forma, é imprescindível levar em conta que não somos os seres frios e calculistas que muitos pensam, sem compromisso com o combate à criminalidade, uma vez que ela atinge a todos nós, sem distinção de posição hierárquica.

Ao magistrado, tenho dito, reiteradas vezes, não é dado o direito de fazer cortesia com o direito alheio, ainda que as suas decisões possam ser incompreendidas por parcela significativa da sociedade, sabido que, na maioria das vezes, elas são gestadas em face de um direito individual, em contraposição com o interesse coletivo.

A verdade é que o magistrado não pode deixar de conceder, por exemplo, uma liberdade provisória ou relaxar uma prisão ilegal, temendo uma provável incompreensão de parcela da população, o que não quer dizer que não existam os que prolatem decisões com argumentos marcadamente heterodoxos, a propiciar alguma inquietação.

É de relevo que se diga, no entanto, que não se constrói uma sociedade minimamente justa quando aquele que tem a missão de decidir uma demanda o faça temeroso e acovardado, ante a iminência de uma reação dos jurisdicionados e da imprensa.

Quando um magistrado decide-se pela liberdade de um acusado, em face de uma ilegalidade, está dizendo, no mesmo passo, que qualquer pessoa que se veja em situação similar poderá se socorrer desse mesmo expediente, que é próprio das sociedades civilizadas, que não se confundem, definitivamente, com os estados tirânicos que uns poucos inconsequentes e radicais almejam.

A verdade é que não se pode manter preso, provisória e ilegalmente, quem eventualmente tenha tangenciado as leis do Estado, apenas porque vivenciamos uma verdadeira guerra de informações e contrainformações que viceja numa sociedade marcadamente amargurada pela ação/inação/ falta de compromisso de alguns homens públicos.

Nossa geração testemunhou o desconforto, para dizer o mínimo, de viver num Estado totalitário, onde os fins justificavam os meios e no qual testemunhamos, estupefatos, o abespinhamento de muitas garantias constitucionais que é, ao que parece, o que desejam os mais empedernidos haters que habitam o mundo descontrolado e nefando das redes sociais, que, para o bem e para o mal, têm dado voz e espaço a todos, inclusive aos imbecis  

Dito isso, importa consignar, por oportuno, não podemos, agora, com as instituições funcionando com regularidade, embarcar na nau dos insensatos/radicias, para os quais juiz bom é tão somente o que decide de acordo com os seus interesses.

Da mesma forma, não pode um magistrado, num Estado de Direito, ser acossado, desrespeitado, atacado, às vezes de forma vil e covarde, apenas porque cumpriu a lei, quando, por exemplo, tenha reparado uma prisão ilegal, cumprindo destacar, com ênfase, que aqui não absolvo os togados que, sem compromisso, decidem marginalmente.

O Estado, é de sabença, tem por finalidade a realização do bem comum, que, convém assinalar, jamais será alcançado sem a preservação dos direitos dos cidadãos, sabido que, mesmo quando ele intervém com o jus puniendi, deve, por seus agentes, respeitar o direito dos acusados, por mais grave que tenha sido a transgressão praticada.

Nessa senda, reafirmo que, diante de uma prisão ilegal, o Estado, por seus agentes, não pode se omitir, ainda que o preço seja a incompreensão, o que não quer dizer, repito, que não existam os que, mal-intencionados, concedam liberdade a perigosos meliantes sem atentar para o princípio da proibição da proteção deficiente que, conforme se sabe, autoriza o juiz, em determinadas hipóteses, a sacrificar o direito individual em benefício do coletivo.

É isso.

SOBRE PODER, VIDA E MORTE

A cada perda de um ente querido sou levado a refletir sobre a passagem intolerante do tempo, sobre a nossa fragilidade diante das doenças devastadoras, e, na mesma balada, sobre o exercício do poder, que  vaidosos/insanos exercem sem limites, sem empatia e sem compromisso com a sua própria história.

Nessa toada, importa dizer, de primeira, que, em face do tempo e da consequente finitude da vida, só um tolo se ilude estando no exercício do poder, sobretudo se não se dá conta do julgamento da história, pois, como adverte o genial Caetano Veloso , quando tivermos saído do círculo, não seremos e nem teremos sido (Oração ao tempo), daí a relevância de, no poder, construir um boa trajetória.

Logo, é preciso ter bem presente que aquilo que se vive no poder é  efêmero  e, ainda mais grave, ilusório, pois, nos estertores, tendemos a desfrutar, tão somente, do convívio dos que verdadeiramente nos amam, se, claro, tivermos construído as nossas relações familiares sob os auspícios de um amor desinteressado, verdadeiro e incondicional.

A vida acelera e se esvai. E o tempo, capaz de proporcionar o prazer legítimo e o movimento preciso (Caetano Veloso, ibidem), é o mesmo que levará consigo as nossas conquistas materiais; menos, claro – e aqui reside o detalhe mais importante, daí a insistência da anotação -, a história que construirmos.

Portanto, é preciso estar preparado para o tempo que flui, o que nem sempre é perceptível aos olhos dos que, no poder, se perderam em face do seu desfrute, cumprindo relembrar, nessa balada, que com o passar do tempo, caído e fora do círculo, será como se nunca tivéssemos sido (Caetano Veloso).

Dessa forma, aquele que não prestar tributo ao tempo, e, no mesmo passo, ao tempo de fazer as boas ações, será surpreendido com a constatação de que só lhe restou, para ser administrada, quase sempre num ambiente de muita solidão, a ressaca moral e perversa em face do que não edificou e/ou do que fez sob os auspícios da insensatez e da falta de pudor, como o fazem – e fizeram – os lideres mundiais mais repugnantes e para os quais os sensatos emprestam apenas o seu desprezo.

Destaco, para ilustrar, a um naco da história construída por D. Pedro II, escorraçado do poder pelos militares, liderados  pelo seu grande amigo Deodoro da Fonseca, o qual, indagado se não iria lutar para manter a coroa, respondeu apenas que se era essa a vontade dos seus patrícios, a ela se curvaria, diferente dos que são capazes de matar ou morrer para não deixar o poder, ainda que para isso precisem arrostar as instituições.

Do mesmo D. Pedro II, trago a segunda ilustração. Quando instado a receber uma pensão do Estado, após a sua deposição, respondeu aos que pretendiam lhe outorgar a benesse, que eles não podiam fazer cortesia com o que não lhes pertencia, já que a mesura seria feita com dinheiro público.

Convém não esquecer que mesmo os ditadores um dia deixam a ribalta –  pela morte ou pelo golpe. Todavia, a sua história será sempre lembrada pelo mal que infligiram aos semelhantes e às instituições.

É preciso, pois, não perder de vista, e aqui tendo à exaustão, que a vida passa, que todos passamos e que a história não perdoará os que, no poder, podendo, nada fizeram de edificante; e quando o fizeram, o fizeram apenas e tão somente em atenção aos seus próprios interesses ou dos que estavam em seu entorno.

É isso.

AOS QUE IDOLATRAM GENTE RUIM

Uma indagação inquietante nos dias presentes: Por que há uma legião de pessoas incapazes de ver os defeitos dos que escolhem para prestar vassalagem?  Com a mesma inquietação indago, ademais, por que há pessoas – e não são poucas – que idolatram gente ruim? E como explicar esse fenômeno entre as pessoas que enaltecem as pregações do Cristo Salvador?

No sentido das indagações supra e no afã de corroborá-las, testemunho, nos dias atuais, pessoas ruins sendo carregadas nos braços, aplaudidas tenazmente, ainda que, por serem ruins, demonstrem, sem disfarce, desamor ao próximo e desapreço aos ensinamentos daquele que pregou o amor incondicional ao irmão, o que, desde qualquer olhar, é uma contradição insuportável, a merecer detida reflexão.

 Importa anotar, nesse triste cenário, que o que testemunho hoje não difere em nada do que sempre foi a postura contraditória do ser humano, muitos dos quais com inclinação inexplicável para admirar pessoas de índole ruim.

Stalin, como tantas outras pessoas más, teve – e ainda tem – uma legião de admiradores, dentre eles pessoas de bem como Graciliano Ramos, cujo filho, Ricardo Ramos, afirmou tê-lo visto chorar em duas oportunidades: uma no suicídio do filho Márcio; outra, na morte do sanguinário ditador.

O jornalista Osvaldo Peraval também chorou quando foi divulgado o estado desesperador do mesmo Stalin, que ele considerava o amigo mais querido, como se o histórico de Stalin autorizasse alguém a crer, verdadeiramente, em sua amizade. O jornalista Moarcir Werneck de Castro, no calor da hora, a propósito da morte do ditador, escreveu: “Os povos choram a perda do maior dos homens”. No telegrama de pêsames, Luis Carlos Prestes, glorificou Stalin como “nosso mestre e guia”. Em 1951, Jorge Amado canonizou-o em vida, apontando-o como maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu.

Só para fins de ilustração, a propósito das ações nefastas do genocida, Stalin matou mais comunistas do que Hitler e Mussolini somados, entre os quais – estimados 20 milhões – estavam dois presidentes do Komintern: Grigori Zinóviev e Nikolai Bukhárin.

Ademais, os registros históricos dão conta de que Stalin não tinha meros seguidores, mas fiéis, com espírito de rebanho. Daí a minha estupefação em face das homenagens prestadas  ao ditador, bem como a pessoas que, assim como ele, não têm apreço pelo semelhante,

É bem de ver-se, pois, à vista dos exemplos acima, que pouco importa para o fanático apoiador, seja de direita ou de esquerda, os defeitos dos que elegem  para seguir cegamente, pois a cegueira, que imagino deliberada, só lhes permite ver os defeitos dos que elegem como desafetos, o que condiz, também, com o comportamento de pessoas ruins.

A propósito de Stalin, um registro histórico relevante e ilustrativo para encerrar e para que as pessoas saibam que, mais cedo ou mais tarde, a conta chega.

Pois bem. Consta que no dia 1º de março de 1953, Stalin, tendo sofrido um derrame, teve o atendimento médico postergado, porque não havia um só especialista de renome para a tarefa de socorrê-lo. É que o tirano tinha mandado prender os melhores médicos de Moscou na KGB. Então, as sessões de tortura foram suspensas para que o algoz pudesse ser atendido. Mas não havia mais nada a fazer; quatro dias depois, o tirano estava morto.

É isso.

DECIFRA-ME MAS NÃO ME CONCLUAS

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, absorto diante de um jardim particular, não se dava conta dos olhares de temor e preocupação que ele despertava. A dona da casa, achando que podia ser um ladrão preparando-se para a invasão, decidiu chamar um policial.

O guarda se aproxima e perguntou de forma seca e direta:

– Quem é o senhor?

Reflexivo e provocante, o filósofo responde com um desafio:

– Se o senhor puder me esclarecer isso, eu lhe serei eternamente grato.

Tendo essa história como linha condutora dessas reflexões, antecipo que me incomoda muito constatar que as pessoas persistem em julgar o semelhante precipitadamente, a partir de uma avaliação superficial

É de perquirir-se em face dos juízos precipitados: Se, como advertiu Schopenhauer, as pessoas têm dificuldades de autoconhecimento, como podem ousar julgar o semelhante apenas pelo que lhes parece ser?

Por que as pessoas insistem em prejulgar o semelhante, maldosa, precipitada e impiedosamente, apenas pela carranca e pela sisudez, que, no meu caso – e de tantos outros –  são inatas?

Confesso que não compreendo, foge à minha capacidade cognitiva, entender por que as pessoas se prestam aos pré-julgamentos, sobretudo se eles decorrem de uma convivência compartilhada superficialmente.

Compreendo, todavia, que exigir do ser humano que se abstenha de julgamentos precipitados seria exigir muito dele, sabido que o ser humano existe mesmo é para surpreender a cada momento.

As pessoas, infelizmente, são assim. Nesse sentido, não são poucas as que preferem, preferem, por capricho, vingança ou perfídia, a crítica mordaz, danosa e desumana, sobretudo em face dos que elegeram como desafeto.

A verdade é que as pessoas insistem em julgar o semelhante em face das expectativas que criam em relação a ele, e não em face daquilo que efetivamente é, dado que, assim considerado, implica em relações humanas controvertidas.

Não é demais reafirmar, todavia, que não se devem julgar as pessoas pela cor da pele, pela posição social, pelo cabelo, pelas roupas que vestem ou pela sisudez, pois é muito provável que por trás de uma carranca e da sisudez de um casmurro  exista um ser humano muito melhor do que se pensa e julga.

É razoável compreender, racionais que somos (?), que, ao compartilhamos apenas alguns momentos das nossas vidas, não nos revelamos por inteiro, disso inferindo-se que qualquer julgamento é fruto de uma precipitação. Daí que, para não antecipar um julgamento sobre o semelhante, é recomendável não fazermos juízos antecipados sobre as pessoas com as quais só convivemos circunstancial e superficialmente.

Digo, para encerrar, que só quem está em condições de emitir juízo de valor sobre o semelhante – mas, ainda assim, com grande possibilidade de estar errado – é quem desfruta de uma  convivência compartilhada de forma intensa e profunda, e desde que o julgamento não for seja feito a partir de ideias preconcebidas e preconceituosas.

Para encerrar, uma frase lapidar de Clarice Lispector para a qual chamo a atenção em face do que ela contém de exemplar diante das reflexões aqui encartadas: “Decifra-me, mas não me conclua. Eu posso te surpreender”.

É isso.

PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE ESPERANÇA

Segundo a Mitologia Grega, Zeus criou Pandora, a primeira mulher. Antes de enviá-la à terra, entregou-lhe uma caixa, recomendando que ela jamais fosse aberta, pois dentro dela os deuses haviam colocado, dentre outras coisas, um arsenal de desgraças para o homem – discórdia, guerras, doenças etc. Pandora abriu a caixa, deixando sair todos os males do seu interior, preservando, apenas, a esperança, sem a qual, por óbvio, não seria possível enfrentar as dificuldades que permeiam as nossas vidas.

Na série norte-americana OZ (1997/2003), produzida pela HBO, o detento Augustus Hill, interpretado por Harold Perrineau Jr., em determinado episódio, apareceu gritando desesperado e lamentando o indeferimento de um pleito de liberdade condicional. Um dos colegas de cela, Kareem Said, interpretado por Eamonn Walker, vendo aquela cena insólita, o aconselhou a não se revoltar, pois, afinal era a lei que assim prescrevia, ao que Hill respondeu, argumentando:

-Não é a lei o meu problema. O meu problema é a esperança.

Nos dias de hoje, constato que o nosso problema, é a esperança, que tanto pode ser, metaforicamente, a contida na Caixa de Pandora, quanto a bradada, como lamento, pelo detento da série mencionada.

Diante disso, importa indagar: como não esmaecer a esperança quando testemunhamos líderes de algumas nações, com incontáveis seguidores fanatizados, fazendo pouco, por exemplo, da vacinação como meio eficaz para o enfrentamento de uma doença grave (Covid-19), que já ceifou a vida de milhões de pessoas no mundo inteiro?

Como não fenecer a esperança quando testemunhamos o desvio impune de verbas destinadas à compra de respiradores que salvariam vidas, sabido que a prisão após o trânsito em julgado é um impeditivo real de inflição de penas aos que habitam o andar de cima da criminalidade?

Como não se desesperançar quando testemunhamos profissionais da saúde injetando vento nas pessoas em vez de vacina, nos levando à conclusão de que a degradação moral do homem não tem limites?

Nesse cenário desalentador, convém anotar que a esperança, ao lado da fé e da caridade, são virtudes que se complementam. Por isso, não surpreende que, ao lado da desesperança, coladinho com ela, perdem intensidade, também, a fé e a caridade das pessoas.

Apesar de tudo, é preciso, como um imperativo de sobrevivência, ter fé e esperança. Por isso, a força que me move resulta da esperança – e da fé que ainda não perdi – no ser humano. Contudo, posso escolher depositar a minha esperança, sim, mas no ser humano empático, altruísta e solidário, que não age apenas para satisfazer os seus interesses pessoais, capaz, portanto, de contribuir com o próximo na superação das suas dificuldades, como uma força propulsora, arrebatadora e definitiva da dignidade humana.

Mas é preciso ter em conta que, por maior que seja a minha esperança, ela tende a sucumbir em face dos maus exemplos, sobretudo dos que, podendo ser uma fonte de energia positiva para as pessoas, preferem chamá-las para dançar à beira do precipício, sendo oportuno trazer à colação, nessa linha de compreensão, uma lapidar constatação de Nietzsche, segundo a qual “quando você olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você”.  Daí por que se recomenda prudência aos que, cega e burramente, seguem os maus exemplos e acreditam em falsas pregações.

É isso.