NARRA MIHI FACTUM DABO TIBI IUS

“[…]Logo, de nada adianta a exposição de teses jurídicas, por mais inteligentes e bem concebidas que sejam, se o julgador não tiver absoluto domínio dos fatos e das circunstâncias, pois são eles, fatos e circunstâncias, que possibilitam ao julgador a construção do direito, a fixação da tese, a definição da norma jurídica a ser aplicada[…].

A prestação jurisdicional é dada, dentre outros, sob o manto dos princípios da narra mihi factum dabi ius e da jura novit curia. A equação é simples. O juiz conhece o texto da lei. A norma jurídica, no entanto, o Direito, enfim, só exsurge a partir dos fatos narrados. Dessa forma, o direito é algo a descobrir-se, a ser encontrado, a ser construído.

O direito, com efeito, não é algo dado. Ele se constrói em face da interpretação feita pelo magistrado do enunciado linguístico, levando em conta o caso concreto, a partir dos fatos narrados, fatos da vida, do mundo real; diria, fatos e circunstâncias, como, aliás, lembrou Eros Grau, na Reclamação nº 3.034-2-PB AgR: “[…Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida[…]” (STF, Reclamação nº 3.034-2/PB AgR, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, voto do Min. Eros Grau).

Faço essa linha de introdução para realçar, como um tributo, que o nosso estimado colega Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, como um mantra e com o feeling que só os mais argutos julgadores possuem, tem instado os colegas, nas sessões de julgamento, insistentemente, a noticiarem, pormenorizadamente, os fatos e as circunstâncias do crime em julgamento, exatamente para que ele possa construir a sua decisão, com a convicção, que é própria dos bons julgadores, de que eventual norma jurídica só pode surgir à luz de dados do mundo real, tendo em vista que, como leciona Eros Graus, os juízes decidem não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas em razão de situações do mundo da vida. É dizer: com a materialidade mais substancial da realidade.

Às vezes, pragmáticos – e, no mesmo passo, equivocados -, insistimos em apresentar, em destaque, a tese jurídica. Mas ele, determinado, obtempera: quero os fatos e as circunstâncias, pois somente a partir deles me posicionarei. É dizer: narrem-me os fatos e darei o direito, noutros termos, narrem-me os fatos e direi qual a norma jurídica a ser aplicada.

A propósito da relevância dessa posição, definitiva e judiciosa, do Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues, lembrei, um dia desses, de uma passagem interessante colhida na história da filosofia, que trago à guisa de ilustração, apenas para corroborar a relevância da benfazeja insistência do nosso colega no sentido de não assumir posição sem que tenha o domínio dos fatos e todas as suas circunstâncias.

À ilustração, pois.

Sócrates, como sabido, há mais de 2400 anos, segundo alguns manuais, foi condenado, dentre outros motivos, por perguntar demais. É que, apesar de reconhecerem em Atenas o seu brilhantismo e a sua inteligência, ambos incomuns, muitos o achavam inoportuno, exatamente por perguntar demais, por querer saber além do permitido.

Um diálogo de Sócrates com Eutidemo ilustra bem a importância de se perquirir acerca de fatos e circunstâncias. Pois bem. Certo dia, Sócrates indagou de Eutidemo, na lata, como se diz na gíria, se todo ato enganador poderia ser considerado imoral, ao que respondeu Eutidemo, sem titubeio, que sim, ou seja, que todo enganador é imoral.

Sócrates, então, complementou, trazendo à luz fatos e circunstâncias para facilitar a compreensão da sentença: “Mas, e se um amigo estivesse muito triste e quisesse se matar, e você roubasse-lhe a faca? Não seria esse um ato enganador?

O mesmo Sócrates respondeu: “Sim, sim, com toda certeza”.

E prosseguiu: “Mas fazer isso não seria moral em vez de imoral, afinal, se trata de uma coisa boa, não ruim – embora seja um ato enganador”?

Eutidemo, de pronto, concordou com Sócrates, mudando a compreensão anterior de que todo ato enganador seria imoral.

Resumo da ópera: Sócrates, ao usar um contraexemplo, ao expor fatos e circunstâncias que levaram ao ato enganador, demonstrou que a conclusão de que ser enganador é imoral, diferente do que concluiu Eutidemo, não se aplica a todas as situações.

Repetindo o mantra do desembargador José Bernardo Rodrigues: “Tudo depende dos fatos e das circunstâncias”. É dizer: os fatos e as circunstâncias definem se uma ação é típica ou atípica, se se subsume a um tipo penal ou se está acobertada pelo manto, por exemplo de uma excludente de ilicitude.

A conclusão óbvia a que se chega, em face do acima exposto, é que, tendo os fatos às mãos, e somente à luz deles, ter-se-á condições de fazer um julgamento tão próximo quando possível do que seja mais justo.

Logo, de nada adianta a exposição de teses jurídicas, por mais inteligentes e bem concebidas que sejam, se o julgador não tiver absoluto domínio dos fatos e das circunstâncias, pois são eles, fatos e circunstâncias, que possibilitam ao julgador a construção do direito, a fixação da tese, a definição da norma jurídica a ser aplicada.

Ademais, o julgador que não tiver total domínio dos fatos e daquilo que o circunda, nunca terá condições de fazer um julgamento justo; não terá como fazer um juízo de subsunção; não terá como aplicar a pena de forma justa, proporcional e razoável.

Para definição da autoria, fixação de uma pena, definição do grau de censurabilidade desse ou daquele acusado, só mesmo mediante fatos e as circunstâncias; só, e tão somente só, se eles estiverem expostos, quantum sufficit, pois, em sentido contrário, não será possível a apreensão do objeto do conhecimento.

Portanto, nenhum juiz será capaz de decidir acerca da responsabilidade penal de um acusado, nem será capaz de definir com clareza a sua posição diante de um fato criminoso, se não estiver ciente, o quanto baste, dos fatos e das circunstâncias.

Simples assim.

NAS PASSARELAS DA IMPUNIDADE

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“[…]O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças[…]”

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O direito existe como uma necessidade humana decorrente da vida em sociedade. Logo, sem ele e sem o funcionamento das instituições encarregadas de sua aplicação, não há condição de coexistência numa sociedade, pois, afinal, o homem, quando decidiu se submeter ao contrato social, o fez sob a perspectiva de o Estado lhe prover assistência, no sentido mais amplo da palavra.

O crime, que ofende, num primeiro momento, um bem alheio, num segundo momento coloca em xeque a própria vida em sociedade; por isso, quando não pode ser evitado – e não se pode mesmo evitar a sua ocorrência -, deve ser combatido com tenacidade; os infratores, nesse sentido, devem ser exemplarmente punidos, para que outras pessoas não se sintam estimuladas à prática de novos crimes, e assim possibilitar que todos possam viver numa sociedade minimamente pacificada.

Nessa perspectiva de vida pacífica em sociedade, todos nós deveríamos ter compromisso com o cumprimento da lei; seja aplicando-a, indistintamente, a quem compete fazê-lo, ou, simplesmente, se submetendo aos seus ditames, sem restrições, à luz do preceito constitucional segundo o qual todos somos iguais perante a lei.

Pois bem. Se é responsabilidade de todos o respeito à lei e se somente sob o império desta a sociedade pode sobreviver, por que então ainda há pessoas – um milhão de pessoas envolvidas em linchamento no país, segundo o professor José de Souza Martins, da USP – que se socorrem da barbárie a pretexto de fazer justiça, à margem das instituições, numa sociedade que supomos integrada por pessoas civilizadas? Antes de responder a essa indagação, narro um fato que impactou a sociedade maranhense ainda recentemente, e que me levou a essas reflexões.

Todos nós testemunhamos, em face do vídeo veiculado nas mídias sociais, o linchamento de um jovem nominado Wallison Silva Araújo, de 19 anos, vulgo “Zambeta”, na cidade de Araioses, suspeito de ter assassinado uma pessoa com dezessete facadas, fato ocorrido num domingo, mais precisamente no dia 24 de junho próximo passado.

Fatos desse jaez nos remetem, inapelavelmente, a uma necessária reflexão, como antecipei acima, que condiz com a necessidade de se compreender as razões pelas quais, com as instâncias de controle funcionando, há pessoas que ainda preferem agir por conta própria, ou seja, à margem da lei. É essa sobre essa inquietante questão que pretendo esgrimir as minhas impressões, na certeza de que, em face delas, haverá dissenções, como sói ocorrer.

Na minha compreensão, quando as pessoas optam pela autotutela, não obstante vivam numa sociedade pretensamente civilizada, estão mandando um recado claro aos agentes do Estado, responsáveis pelas instâncias de controle: não dá mais para suportar a tibieza, a vacilação das instituições quando se trata do enfrentamento de condutas criminosas. Portanto, não é preciso ser especialista para diagnosticar que as pessoas cansaram, perderam a fé e decidiram, em alguns casos, agir por contra própria.

A verdade é que a infinidade de crimes impunes deixa a população com a justificável sensação de que não dá mais para aguardar a (re)ação do Estado, sabido que, muitas vezes, não há (re)ação alguma, bastando para isso a constatação de que são inúmeros, incontáveis os criminosos que desfilam nas passarelas da impunidade, por culpa exclusiva das instituições que não desempenham a contento suas obrigações, ou o fazem mal, de forma leniente, titubeante, frouxa e seletiva, a incutir nas pessoas a falsa percepção de que a solução mais eficaz é mesmo (re)agir por contra própria.

Nesse cenário, certo mesmo é que as vítimas, diretas ou indiretas, de um crime, dos mais diferentes matizes, já não suportam se defrontar com os seus algozes flanando por aí, debochando das instituições, desfilando, como dito acima, nas passarelas da impunidade. As pessoas não aguentam mais a triste evidência de que as instituições, quando punem, convém reafirmar, punem mal, punem seletivamente, sem forças e sem predisposição para punir indistintamente, como se a lei, definitivamente, não valesse para todos.

O que se vê, na prática, é que, sempre que as instituições atuam com alguma sofreguidão, a pretexto de combater a criminalidade, o fazem rugindo como um leão faminto à caça da sua presa, quando se defrontam com os criminosos egressos das classes menos favorecidas, que são a sua clientela preferencial. Essas mesmas instituições, lado outro, apresentam-se frouxas, lenientes e acovardadas, miando como um gatinho encurralado, quando se trata de punir os criminosos do colarinho branco. Nesse panorama, os grandes criminosos, os que assaltam os cofres públicos, ficam impunes, via de regra, recebendo estímulos para permanecerem em cena, roubando os nossos sonhos, minando as nossas esperanças.

A verdade é que, para uma parcela diminuta da sociedade, os que promovem os maiores assaltos aos cofres públicos – sejamos honestos com nós mesmos –, a prisão é, sempre foi e sempre será uma excepcionalidade, como todos nós testemunhamos, em face das mais diversas decisões pretorianas que favorecem criminosos do colarinho branco com a concessão de liberdade, muitas vezes de ofício; liberdade que, admitamos, só fazem por merecer porque, afinal, são o que são, e sendo o que são, no país da impunidade, passam mesmo, como regra, à ilharga das ações persecutórias.

A impunidade, definitivamente, estimula a prática de crimes, verdade sabida que, entretanto, parece não sensibilizar os que têm sempre às mãos, de prontidão, um alvará de soltura para favorecer esse ou aquele marginal o qual, pela posição de destaque que ostenta, se sente imune às ações das instâncias de controle do Estado.

Convém ressaltar que há, sim, causas variadas que fomentam a criminalidade. Mas, seguramente, nenhuma é tão óbvia, tão evidente, tão à vista de todos quanto a certeza da impunidade. E quando se reflete sobre esse tema, a verdade é que, ainda que punamos preferencialmente os mais humildes, ainda assim punimos mal e excepcionalmente, estando as cifras negras da criminalidade a demonstrar que a lei, definitivamente, alcança a poucos e que, os poucos que as instâncias alcançam, esses, comumente, são egressos das classes menos favorecidas. Daí não ser de todo incompreensível que as pessoas, cansadas, busquem fazer justiça com as próprias mãos.

É isso.

ENTRE O RIDÍCULO E O ANTOLÓGICO

Nós, brasileiros, especialmente os que militam na área jurídica, nos acostumamos a assistir, pela TV Justiça, às sessões do Supremo Tribunal Federal. E pelo fato de atuarmos na área do Direito, não temos dificuldades de entender os votos dos doutos ministros. Contudo, o público em geral, pouco afeito ao que se convencionou chamar “juridiquês”, fica, às vezes, a ver navios.

Nesse sentido, muitos assistem às sessões do Supremo para, ao fim e ao cabo, se indagarem o que foi mesmo que eles decidiram, o que não espanta, mesmo porque, muitas vezes, eles, os ministros, decidem mesmo que não vão decidir. É que, além do “juridiquês”, os ministros têm a necessidade, para mim injustificável, de alongarem seus votos em demasia, tornando-os cansativos, mesmo aos versados, contribuindo, assim, para o atraso dos julgamentos.

Nesse alongamento excessivo dos votos, alguns deles falam por duas, três, quatro, cinco horas, para, no final do voto, concluírem, simplesmente, que seguem o relator, que, por seu turno, já havia apresentado um voto de duas, três, quatro, cinco horas. Isso nos leva a entender que falta, definitivamente, objetividade nos julgamentos do Supremo; e não só no Supremo, reconheçamos.
Convenhamos, se o voto que se pretende proferir segue, às inteiras, o do relator ou o voto divergente, penso que se poderia ser mais objetivo, salvo uma ou outra observação que se fizesse necessária. Para mim, respeitando quem pensa de modo diverso, só é justificável um voto mais denso, se for para dissentir.

Penso que, se for para seguir a linha de entendimento do relator ou o do voto divergente, pode-se primar pela objetividade; e assim, todos nós ganhamos, conquanto reconheça que o grande saber jurídico dos ministros seja, para quem possa interessar, de grande utilidade.

Se é verdade que não são poucos os que, pasmados, ficam sem saber o que dizem os doutos em seus complexos e alongados votos, não é menos verdadeiro que há unanimidade quanto ao desconforto que causam a deselegância e a descortesia que permeiam algumas intervenções.

Se é verdade – e quanto a isso acho que somos todos acordes – que há discussões ridículas, há, da mesma forma e com igual intensidade, passagens em alguns votos que merecem ser lembradas sempre, numa linha compensatória, já que se tratam de verdadeiras antologias, como as que vou destacar a seguir, do eminente ministro Luís Roberto Barroso, no Habeas Corpus 152.752.

Vejamos, pois, em destaque, as antologias.

“[…] A Nova Ordem que se está pretendendo criar atingiu pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. Para combatê-la, uma enorme Operação Abafa foi deflagrada em várias frentes. Entre os representantes da Velha Ordem, há duas categorias bem visíveis: (i) a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e (ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente[…]”.

“[…] Eu respeito todos os pontos de vista. Mas não é este o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos. Um paraíso para homicidas, estupradores e corruptos. Eu me recuso a participar sem reagir de um sistema de justiça que não funciona, salvo para prender menino pobre[…]”.“[…] Quando a investigação começa, o princípio da presunção de inocência tem seu peso máximo. Com o recebimento da denúncia, este peso diminui. Com a sentença condenatória de 1º grau, diminui ainda mais. Quando da condenação em 2º grau, o equilíbrio se inverte: os outros valores protegidos pelo sistema penal passam a ter mais peso do que a presunção de inocência e, portanto, devem prevalecer[…]”.

“[…] Processos devem durar 6 meses, um ano. Se for muito complexo, um ano e meio. Nós nos acostumamos com um patamar muito ruim e desenvolvemos uma cultura da procrastinação que oscila entre o absurdo e o ridículo. O processo penal brasileiro produz cenas de terceiro mundismo explícito. As palavras no Brasil vão perdendo o sentido. Entre nós, a ideia de devido processo legal passou a ser a do processo que não termina nunca. E a de garantismo significa que ninguém deve ser punido jamais, não importa o que tenha feito […]”“[…] O poder, em geral, e o Poder Judiciário, em particular, existe para fazer o bem e para promover justiça, e não para proteger os amigos e perseguir os inimigos […]”.

Essas passagens são dignas de ser lembradas, e por isso antológicas, deveriam inspirar, nortear, iluminar os juízes criminais do século vinte e um, além de poderem contribuir para a construção de uma Nova Ordem.

Logo, se persistimos em manter a mesma mentalidade retrógrada do passado, podemos ficar certos de que não reverteremos o quadro de impunidade que se descortina sob os nossos olhos, prevalecendo, assim, a Velha Ordem que pode ser traduzida como impunidade.

“INTERVENÇÃO MILITAR JÁ”

Durante a grave dos caminhoneiros, fui à Santa Rita para um compromisso.
No trajeto até aquela cidade, fui surpreendido com os caminhões parados e, próximo deles, em destaque, várias faixas que pediam intervenção militar no país; depois, vi que havia no Brasil inteiro.
Claro que fiquei estarrecido, especialmente porque vivi a ditadura, testemunhei a censura e sei das atrocidades de um regime de exceção.
Pensei com meus botões sobre a contradição que encerra o apelo por intervenção militar e a livre manifestação dos caminhoneiros, indagando a mim mesmo: Meu Deus, será que esses manifestantes não compreendem que só é possível essa estranha e intempestiva manifestação porque vivemos em uma democracia?
Pensei, ademais: Será que é difícil compreender que, num regime ditatorial, os manifestantes estariam, para dizer o mínimo, em maus lençóis e teriam sido impedidos de protagonizar as badernas que protagonizaram?
Devo dizer, antes de responder a essas indagações, que é preciso perscrutar, sincera e realisticamente, as razões pelas quais os caminhoneiros apelaram por uma intervenção militar, porque, afinal, se o fazem, sabendo das consequências de um ato intervencionista, devem ter fortes motivos para o impulso.
Não sou especialista, mas tenho suficiente sensibilidade para expender um juízo em face do que testemunhei, estarrecido, a propósito da greve dos caminhoneiros.
A verdade é que os caminhoneiros – e grande parte do povo brasileiro – apelam para intervenção militar por uma razão mais que elementar: perderam a fé em tudo que está aí.
Para o povo brasileiro, os que estão aí, desfrutando (esse é o termo) do poder, estão fazendo exatamente isso: desfrutando do poder, sem nenhum compromisso com as causas públicas que juraram defender.
Ninguém, salvo poucas, raras exceções, admitamos, está preocupado com os problemas do povo brasileiro; cada um está cuidando de si, dos seus próprios interesses.
Os exemplos que me levam a essa afirmação estão aí, aos montes, à toda evidência, à vista de todos; só não os vê quem não quer.
As filas dos hospitais?
Não sensibilizam ninguém.
Os desvios de recursos públicos?
São uma prática recorrente.
As promessas não cumpridas?
São uma constante.
As falsas promessas?
São uma praga.
As estradas brasileiras?
Um desastre.
Segurança pública?
Uma tragédia.
Impunidade?
Uma regra.
Tudo isso, e mais, muito mais, levou o povo à descrença. Por isso, o apelo à intervenção militar, como se fosse uma panaceia.
Salvo raras exceções, no Brasil ninguém disputa eleições, ninguém corre atrás de votos para servir, senão para servir-se.
Ninguém gasta milhões de reais numa eleição por amor ao povo.
É triste constatar, mas cada um está correndo em busca dos seus interesses.
Nesse cenário, é preciso uma mudança de direção, que não é, seguramente, uma intervenção militar.
É preciso dar um basta no que está aí.
O povo cansou; acha que com os mesmos – e essa é a tendência – não vai ter melhora, que tudo será como antes.
Quem vê um ente querido morrer nas filas dos hospitais, uma bala perdida tirando a vida de um inocente e meia dúzia de espertalhões enriquecendo com o dinheiro público desviado, se julga no direito de pedir, num ato de desespero, uma intervenção militar, um regime de força, na vã esperança de reversão do quadro, pois a desesperança leva as pessoas em busca de soluções mágicas.
Além disso, a péssima sensação, a quase certeza, para ser otimista, de que, depois das eleições, tudo que está aí permanecerá exatamente como sempre foi, sem perspectiva de mudança, estimula o discurso extremista, o que nos leva a viver um pesadelo.
Temos um Estado incapaz de conduzir políticas públicas com o mínimo de seriedade.
O desemprego explode, e os indicadores sociais são péssimos.
Não temos boas expectativas em relação ao futuro.
A violência está generalizada, sem perspectiva de reversão.
As instituições persecutórias funcionam de forma temerária, pois, enquanto uns lutam contra a corrupção, outros trabalham em sentido contrário.
Este cenário estimula a insensatez e nos faz pensar em soluções heterodoxas.
Mas é preciso não esquecer que o que está aí é culpa nossa, sabido que, podendo mudar o panorama pelo voto, persistimos fazendo péssimas escolhas.
Por nossa conta e risco, ninguém tem dúvidas de que a quase totalidade do que aí está, grande parte responsável por desvios de dinheiro público, ou será reeleita ou elegerá um representante, da família ou correligionário, exatamente para que tudo fique como sempre foi.
Diante de um quadro desses, é compreensível que muitos, sobretudo os jovens, que não viveram a ditadura ou não conhecem a história, clamem por uma intervenção militar.
Todavia, é preciso convir que a maior revolução que podemos fazer, como anotei acima, é pelo voto, que é a nossa arma.
O problema é que não são poucos os que usam mal esse instrumento singular e definitivo de mudança.
Nesse panorama, o irônico, o risível é que os líderes do movimento grevista deverão ser processados com base na Lei de Segurança Nacional, provavelmente serão punidos, e os que deram causa ao caos em que se transformou o país, continuarão surfando na onda da impunidade, protegidos por mais um mandato outorgado pelos que não valorizam o voto como instrumento de mudança.
É isso.

“VAI DAR ERRADO”

Muitos de nós testemunhamos quando o ministro Gilmar Mendes, por ocasião do julgamento que restringiu o alcance do foro privilegiado, teceu críticas severas contra os juízes de primeiro grau, os quais, como sabido, em face do julgamento em comento, devem assumir os processos deflagrados contra políticos agora sem prerrogativa de foro, nas hipóteses contempladas na decisão.

Em determinado momento de sua fala, o ministro disse, dentre outras coisas, que o sistema de Justiça Criminal, nos diversos estados da Federação, é disfuncional e não está preparado para julgar os detentores de foro.

Mais adiante, de forma, para mim, pouco respeitosa, disse que, com “essa gente”, se referindo ao juízes e membros do Ministério Público, a situação vai ser pior que no Supremo, para, adiante, prognosticar: “Vai dar errado”.

Abstendo-me de julgar o ministro em face da maneira deselegante como se dirigiu a nós outros, acho que, em face de sua afirmação, é preciso uma seríssima reflexão, pelo que ela contém de verdadeiro.

É necessário, sim, sem falsos pruridos, sem fazer beicinho e sem fingir indignação, admitir que a afirmação do ministro, conquanto pouco respeitosa, traduz, sim, uma realidade que precisa ser encarada, se pretendemos mudar a realidade.

A verdade é que, com a restrição do foro privilegiado, jogou-se sobre os ombros dos juízes, promotores e polícia judiciária dos estados uma enorme responsabilidade que, confesso, não sei se estamos preparados para enfrentar, como advertiu o ministro, em face, dentre outras razões, das nossas reconhecidas limitações estruturais.

Não bastasse o reconhecimento das nossas limitações estruturais, é bem de se ver, com mais preocupação que, historicamente, não temos dado aos feitos criminais, pelo menos na Justiça Estadual, o mesmo tratamento que tem sido dado aos feitos cíveis, a contribuir decisivamente para impunidade.

Não fosse suficiente esse histórico “desprezo” para com os feitos criminais, é forçoso admitir, de mais a mais, que, também historicamente, as instâncias de controle dos Estados – aqui considerados Poder Judiciário, Ministério Público e Polícias – não têm sido rigorosas, como deveriam, com os criminosos do colarinho branco, os quais, como regra, pelos mais diversos motivos, têm passado à ilharga das instâncias de controle.

Por essas e outras razões, existe no ar, exalando péssimo odor, uma forte probabilidade de a população se decepcionar com a expectativa de que, aqui embaixo, longe do foro por prerrogativa de função, os processos andarão e que, como num passe de mágica, a turma do andar de cima será penalizada exemplarmente. Contudo, não será assim, posso garantir, se persistirem – e a tendência é a manutenção do status quo – as coisas como sempre foram.

Posso afirmar, com pouca probabilidade de estar errado, que tudo ficará como antes: aqui, assim como no Supremo, as demandas em desfavor dos que se acostumaram a passar à ilharga das ações dos órgãos de controle continuarão sem uma resposta efetiva, imunes, portanto, às nossas ações, salvo uma ou outra punição, aqui e acolá, pontualmente, para confirmar a regra.
Torço, sincera, mas desesperançadamente, para que o ministro não tenha a oportunidade de, daqui a alguns anos, dizer que tinha razão quando afirmou que não ia dar certo, e que não se podia mesmo contar com “essa gente”.

Eu espero, sim, com sofreguidão, mas ao mesmo tempo tomado da necessária prudência, que, sobretudo os juízes e promotores estaduais, deem uma resposta positiva à sociedade, devido à expectativa que se criou em torno da questão, conquanto desconfie dessa possibilidade, uma vez que, mesmo os processos criminais contra os desvalidos, não têm merecido de nós a necessária atenção, muitos deles sendo levados à prescrição.

Importa anotar que, quando falo em resposta positiva à sociedade, como o fiz acima, não me refiro, necessariamente, ao desfecho condenatório. Refiro-me, sim, à solução do conflito, seja para condenar, seja para absolver, pois, afinal, a justiça não é eficaz apenas quando pune, mas também quando é capaz de, a tempo e hora, decidir as questões submetidas a julgamento, sem tardança e sem delongas, pronta e eficazmente.

À luz do que expus acima, a minha esperança agora é que, numa guinada exemplar, as instâncias de controle dos Estados, comandadas por “essa gente”, apliquem um duplo twist carpado na indolência, um upper de esquerda no queixo da indisposição, um cruzado à altura do fígado da acomodação e um salto mortal na indiferença, dando, com essa necessária mudança de conduta, uma resposta exemplar à sociedade, em face das expectativas criadas em torno da nossa ação, pois só assim reverteremos o quadro de impunidade que ainda é uma regra entre nós, em se tratando de criminosos do colarinho branco.

É isso.

A PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

“[…]Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade[…]”

 

Volto ao tema porque ainda persiste, infelizmente, como um pesadelo para quem almeja uma sociedade mais justa e menos seletiva, a possibilidade de ser revista pela nossa Corte Suprema a prisão em segunda instância, medida que, desde o meu olhar, chegou em boa hora, pois, com ela, finalmente, estamos testemunhando reais perspectivas de as instâncias de controle alcançarem, como nunca o fizeram realmente, os que sempre se valeram das deficiências e da falta de efetividade do sistema, para se safarem da persecução penal, conquanto tivessem praticado crimes de especial gravidade, de consequências imensuráveis/deletérias para o conjunto da sociedade.

Muitos, incontáveis são os artigos escritos sobre a seletividade do sistema penal. Eu mesmo, neste mesmo espaço, e no meu blog – www.joseluizalmeida.com –, já tive a oportunidade de, reiteradas vezes, denunciar essa deformação/seletividade do nosso sistema, que, como lembrou Luís Roberto Barroso, no julgamento do HC 152/752, só prende menino pobre com 100 gramas de maconha, fechando os olhos para o agente público ou privado que desvia 100 milhões de reais.

Retomo o tema acerca da prisão em segunda instância apenas para reafirmar o óbvio que uns poucos preferem não admitir, por conveniência e/ou por interesse, ou seja, que aguardar o cumprimento de pena para só depois de esgotadas todas as vias recursais, é, tão somente, reafirmar o que o mais ingênuo dos mortais já sabe: que o sistema penal brasileiro, disfuncional como é, voltará a ter as suas ações destinadas, como sempre foi – por isso o registro que fiz no parágrafo anterior -, apenas para a sua clientela preferencial, para a qual, de forma evidente, não são assegurados, objetivamente, os mesmos instrumentos recursais que favorecem a uma minoria que, de tão privilegiada pelo modelo, se considera e se assume imune às ações das instâncias de controle.

Nessa perspectiva, ou seja, da iminente volta ao modelo anterior que tanto mal fez ao Brasil, ao consagrá-lo como país da impunidade, consolidar-se-á uma outra obviedade, qual seja, a existência, por essas bandas, de duas classes distintas de criminosos, numa clara e frontal ofensa ao princípio da igualdade: i-a classe dos que sucumbem/sucumbirão diante do sistema, que sempre existiu para punir pobres, e ii -a classe dos que sempre se safaram/safarão, como regra, em face da ação persecutória estatal, tendo a socorrê-los o nosso horroroso/danoso/disfuncional modelo recursal, que tem se prestado a levar os feitos à prescrição, favorecendo, como regra, aos criminosos do andar de cima.

É dizer: voltando-se ao modelo anterior, ou seja, a possibilidade da execução da pena somente depois de esgotadas todas as vias recursais, em face de uma interpretação constitucional que não condiz com a realidade brasileira, o sistema penal, definitivamente, não alcançará os grandes criminosos, aqueles que podem contratar as grandes bancas de advocacia, sabido que, em relação à quase totalidade da clientela do Direito Penal, nada muda, pois a ela (clientela) será sempre destinada – como sem o foi, reitere-se – a prisão em face de uma decisão de segunda instância, que é o que efetivamente ocorre na prática.

A verdade é que essa discussão acerca da prisão depois da segunda instância só ganhou destaque nos dias atuais em face da mudança de paradigma que se deu com a Lava Jato. Continuasse o sistema penal – como ainda se dá na absoluta maioria de casos que chegam ao Poder Judiciário, fruto da nossa proverbial leniência com os criminosos de colarinho branco – agindo seletivamente, como tem feito historicamente, não haveria insurgência alguma em face da prisão em segunda instância, que, de rigor, é o que sempre ocorre em face dos miseráveis, para os quais são negados, na prática, por motivos de todos conhecidos, os mesmos instrumentos recursais que são utilizados, à exaustão, pelos que podem pagar grandes bancas de advocacia.

A verdade é que, se as instâncias de controle não tivessem, num determinado momento da nossa história, abandonado um pouco a seletividade do Direito Penal, que, efetiva e prioritariamente, pune apenas os miseráveis, ninguém estaria se insurgindo contra a prisão em segunda instância, que, repito, sempre foi a regra, ainda que não escrita, para a quase totalidade dos condenados, egressos, como regra, das classes menos favorecidas.

É bem de ver-se, pois, que essa luta renhida que se trava em face da prisão em segunda instância não decorre do apego empedernido ao texto constitucional, ao princípio da presunção de inocência, pois, o que se pretende mesmo, é livrar da cadeia uma elite criminosa, que historicamente passou à ilharga da persecução criminal.

Falo isso em face do conhecimento que tenho amealhado nos mais de trinta anos lidando com a criminalidade miúda, para a qual as instituições penais sempre destinaram todo o seu rigor, conquanto tenham sido, historicamente, cordadas, lenientes, covardes e indispostas quando se trata de punir os do andar de cima, cujos crimes, reconheçamos, causam muito mais danos à sociedade que a soma total dos crimes praticados pela clientela miserável do Direito Penal, muitas vezes presa em face de um crime menor e, em seguida, jogada em verdadeiras masmorras, esquecida, vilipendiada, desassistida e abespinhada em sua dignidade, ante o silêncio, algumas vezes covarde e não raro cúmplice, de grande parte da sociedade.

A verdade é que o modelo que estava aí – prisão somente depois de esgotados todos os recursos – não serve à sociedade. Ao contrário, esse modelo era um incentivo à prática de crimes de corrupção, pois a certeza de não ser alcançado pelos órgãos persecutórios é um estímulo à criminalidade, estímulo que se revitalizará tão logo se retome o modelo anterior, de triste memória, mas que ainda se coloca sobre a sociedade como uma espada prestes a lhe decepar a esperança.

Como bem anotou Luís Roberto Barroso, em seu magistral voto no HC acima mencionado, a Nova Ordem que se criou com a mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal criou condições para que fossem alcançadas pessoas que sempre se imaginaram imunes e impunes. A volta da Velha Ordem, como bem lembrou o douto ministro, só beneficiaria duas categorias de malfeitores: i)a dos que não querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos; e ii) um lote pior, que é dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente.

É isso.

BANDIDOS SÃO OS OUTROS

 

“[….]Nesse panorama, é de rigor a constatação de que, em todos as circunstâncias, em todos os eventos, em todas as oportunidades, os equívocos são sempre dos outros, ou seja, dos que estão do outro lado, dos que assumem posições que não se prestam aos interesses dos que estão do lado oposto ou que possam afetar, de qualquer modo, os interesses dos seus amigos, – pois, afinal, para os que se julgam mocinhos, para os que estão em lado oposto, aqueles que não pensam, não agem e não decidem como eles gostariam, devem mesmo ser espezinhados. E as redes sociais, nesse sentido, são o melhor palco, são o ambiente ideal, são o local mais propício, ambiente no qual se pode assacar, com grandes possibilidades de não ser alcançado pelos órgãos de controle social, as críticas mais acerbas, as acusações mais descabidas, daquelas que beiram à incivilidade e à ignomínia, muitas vezes atingindo a honra e o decoro daquele que se elegeu como bandido[…]”.

Dê uma olhada nas mensagens e comentários postados no Facebook, leia as curtas mensagens no Twitter, atente para o teor das cartas enviadas para as redações dos jornais e revistas, observe a participação de ouvintes em rádios AM/FM, ouça os discursos políticos, atente para o que dizem as mais destacadas lideranças nacionais/locais, converse nas filas de banco, dialogue numa mesa de um restaurante ou de um bar, convide os amigos para assistirem a uma partida de futebol, se reúna em volta de uma mesa para uma rodada de vinhos ou para degustar um bom churrasco e constatará, inapelavelmente, pelos discursos/comentários que ouvirá/lerá, pelas posições assumidas, enfim, que vivemos no país dos mocinhos, os quais são sempre os do lado de cá, enquanto os bandidos são os outros, os do lado de lá.

Com a devida atenção, pode-se observar, nesses ambientes – especialmente nas redes sociais (propícias ao escárnio e ao vilipêndio) -, que o vizinho, o torcedor rival, o motorista que disputa o mesmo espaço, o juiz que concedeu ou negou uma liminar, o ministro que soltou ou o que mandou prender, o deputado que votou contra ou o que votou a favor, o promotor que denuncia ou o promotor que não denuncia, o delegado que prende ou o delegado que não prende, todos, enfim, que não pensam e não agem e/ou não decidem de acordo com o que pensam e querem os que se imaginam mocinhos, são sempre os bandidos, são o alvo a ser defenestrado, o alvo a ser atingido, a ser massacrado, a ser enxovalhado, convindo anotar que os mocinhos, sobretudo os que pontificam nas redes sociais, que têm sempre uma crítica mordaz a fazer aos que não pensam da mesma forma que eles, são os que, na vida pessoal, na maioria das vezes, relativizam a moral, que não se acanham de, quando lhes convém, dar um jeitinho, fazer uma traquinice, cujo senso crítico só se mostra atilado quando lhes apraz.

Nesse panorama, é de rigor a constatação de que, em todos as circunstâncias, em todos os eventos, em todas as oportunidades, os equívocos são sempre dos outros, ou seja, dos que estão do outro lado, dos que assumem posições que não se prestam aos interesses dos que estão do lado oposto ou que possam afetar, de qualquer modo, os interesses dos seus amigos, – pois, afinal, para os que se julgam mocinhos, para os que estão em lado oposto, aqueles que não pensam, não agem e não decidem como eles gostariam, devem mesmo ser espezinhados. E as redes sociais, nesse sentido, são o melhor palco, são o ambiente ideal, são o local mais propício, ambiente no qual se pode assacar, com grandes possibilidades de não ser alcançado pelos órgãos de controle social, as críticas mais acerbas, as acusações mais descabidas, daquelas que beiram à incivilidade e à ignomínia, muitas vezes atingindo a honra e o decoro daquele que se elegeu como bandido.

Definitivamente, para os que pensam e agem a partir dos seus interesses, de sua visão unilateral de mundo, à vista de suas idiossincrasias, cujo centro do universo é o próprio umbigo, os mocinhos são eles próprios e os que se alinham ao seu pensamento, ou seja, os que decidem como eles gostariam que decidissem, os que pensam de igual modo ou, numa outra perspectiva, os que defendem e se alinham aos seus interesses. Nesse cenário, os que ousam contrariar os mocinhos, são os néscios que estão a merecer o seu desprezo. Nessa senda, eles, os mocinhos, não perdem a oportunidade de atacar os que julgam ser os bandidos, ou seja, os outros; bandidos por pensarem de modo diverso, por ousarem assumir posições diferentes.

E, nesse afã, para escarnecer o inimigo, nada melhor, repito, que uma página na internet, ambiente ideal para desancar quem pensa diferente, quem ousa discordar, ainda que, nesse alvitre, seja preciso manchar a honra daqueles que são eleitos desafetos, os quais, afinal, aos olhos dos mocinhos, não são dignos de respeito.

No mundo dos que usam as redes para destilar ódio e espargir veneno, constata-se que, do lado de cá, definitivamente – e assim parece estar dividida a sociedade –, estão os mocinhos; do lado de lá, estão os bandidos, considerados como tais até que adiram ao pensamento dos mocinhos ou até que decidam de acordo com as expectativas desses mesmos mocinhos.

Nesse mundo perverso e maniqueísta, o mal está sempre nos outros. Só os mocinhos professam e agem de acordo com o bem, o bom e o justo. Os desonestos são sempre os outros; os honestos são só os que se imaginam mocinhos, pois só estes têm pudor, agem com acerto. E os outros? Bom, os outros, até prova em contrário, são de honestidade duvidosa, a menos, repito, que se aliem ao pensamento dos mocinhos, que cerrem fileiras na defesa dos interesses dos que, imaginando-se mocinhos, são impiedosos com os que elegem bandidos.

No mundo dividido entre mocinhos e bandidos, a tendência é de os primeiros fecharem os olhos para os erros dos seus congêneres – e os seus próprios – e dos que pensam e agem da mesma forma que eles, para, noutro giro, permanecem com os olhos bem abertos e censuradores para os erros dos que elegeram como bandidos.

E assim, nos mais diversos ambientes, o que se ouve é sempre crítica aos outros; sempre aos outros. Nada de autocrítica, uma vez que os erros estão sempre nos outros, assim como os desvios de conduta são sempre protagonizados por estes. Por isso, as redes sociais parecem abrigar um exército de arcanjos, onde vicejam as críticas acerbas e as infâmias assacadas contra os que não rezam pela cartilha dos que se julgam donos da verdade. E tomem críticas e aleivosias, sobretudo aos homens públicos, muitas das quais assacadas por quem, na vida privada, vive protagonizando deslizes morais que só consegue perceber e condenar nos outros.

É isso.

NEURAS

“[…]Fatos como esse que acabo de narrar apenas reafirmam o óbvio, ou seja, que somos todos diferentes, que cada um de nós tem uma percepção diferente, singular, diante das coisas do mundo, motivo pelo qual é muito difícil julgar as atitudes do semelhante, o que não nos impede de continuar julgando o próximo, muitas vezes impiedosamente.
Fatos dessa natureza reafirmam, ademais, ser embalde qualquer tentativa de levar alguém a pensar ou agir como pensamos ou agimos. Cada qual, portanto, no seu cada qual. Cada um é cada um, e suas neuras. Nisso ninguém pode interferir, pois o que me atormenta pode até ser algo prazeroso para outrem{…]”

 

Rica Reinisch, da antiga República Democrática Alemã, a Alemanha comunista, foi uma atleta de ponta, que ganhou uma medalha de ouro, nos 100 metros nado costas na Olimpíada de Moscou, em 1980. Ganhou, depois, quatro medalhas de ouro nos 200 metros nado costa e bateu, duas vezes, o próprio recorde mundial em provas de revezamento.
Como se vê, a atleta tinha tudo para ser feliz, vaidosa, orgulhosa de suas conquistas. Qualquer pessoa, no seu lugar, sentir-se-ia, até, realizada. Contudo, não é isso que se vê, no entanto. Vou explicar.
Em face dos esteróides usados nos treinamentos durante a puberdade, pouco tempo depois ela foi hospitalizada com inflamação crônica nos ovários, vindo a se aposentar aos 16 anos, com o risco de ficar estéril.
Em 1994, foi uma das primeiras atletas a prestar depoimento no processo instaurado para apurar a política de doping da antiga RDA. Mas a neura da atleta, diferente do que se pode imaginar, não foi a possibilidade de ficar estéril. O que a deixa sem chão, o que a torna infeliz, segundo relatou, é que jamais saberá se poderia ter sido a nadadora excepcional que foi se não tivesse se submetido à maquina de fabricar campeões da Alemanha comunista.
Narro esse fato, buscado aleatoriamente na mente e confirmado depois de alguma pesquisa, apenas para dizer que cada um de nós tem as suas próprias neuras, muitas das quais, de rigor, parecem até ilógicas para quem não as tem, daí por que, algumas vezes, não compreendemos como alguém que, tendo tudo para ser feliz, feliz não é, em face de um detalhe, de uma obsessão, algo que, de rigor, não causaria em outras pessoas a menor preocupação, o menor desconforto, a corroborar o quão complexo e complicado é o ser humano.
Fatos como esse que acabo de narrar apenas reafirmam o óbvio, ou seja, que somos todos diferentes, que cada um de nós tem uma percepção diferente, singular, diante das coisas do mundo, motivo pelo qual é muito difícil julgar as atitudes do semelhante, o que não nos impede de continuar julgando o próximo, muitas vezes impiedosamente.
Fatos dessa natureza reafirmam, ademais, ser embalde qualquer tentativa de levar alguém a pensar ou agir como pensamos ou agimos. Cada qual, portanto, no seu cada qual. Cada um é cada um, e suas neuras. Nisso ninguém pode interferir, pois o que me atormenta pode até ser algo prazeroso para outrem.
O mundo, reafirmo o óbvio, é habitado por uma variedade infinita de personalidades, cada uma delas administrando as suas neuras, à sua maneira. Por isso, o que me apraz pode ser o que o vizinho abomine. Daí a razão pela qual deixamos de nos identificar com umas pessoas para nos derretermos de simpatia por outras.
Em face das nossas neuras, pessoas que abominamos são, muitas vezes, adoradas por outras, dado que nos causa, sem espanto, até uma certa inquietação, própria de quem não conhece o ser humano, se é que é possível conhecer essa máquina tão complexa.
Eu, como qualquer ser humano, também tenho as minhas neuras, algumas das quais creio que jamais incomodariam qualquer pessoa minimamente sã; mas a mim me incomodam, sem que eu permita – tento, pelo menos – que saiam da minha esfera individual para incomodar as pessoas que estão no meu entorno.
Mas as minhas neuras, antecipo em dizer, não me fazem um ser de difícil convivência, como podem atestar os que me conhecem como efetivamente sou. Procuro, sim, não me infelicitar – e nem infelicitar as outras pessoas – em face delas, pois com elas não travo nenhuma batalha; simplesmente não me permito dar a elas liberdade de ação para me dominarem.
Para administrar as minhas neuras, procuro não ir além e nem ficar aquém. Procuro, sempre, um ponto de equilíbrio, conquanto admita não ser algo muito fácil de alcançar. Nesse afã, não antecipo derrotas e nem vibro com a vitória que ainda não veio.
Quando cuidamos de neuras, a verdade é que somos todos incompreendidos. O que me irrita, o que me causa estupor e, até, revolta – sem me infelicitar, repito -, pode não ser capaz de irritar o mais irritadiço dos homens, a reafirmar, também por isso, as nossas diferenças, a reafirmar que cada um de nós é único.
É isso.