Antecipo a crônica que encaminhei há pouco ao Jornal Pequeno, para ser publicada na edição do próximo domingo
Viver é enfrentar, necessariamente, dissabores, intempéries, injustiças, traições, bonança, borrascas. Viver é sorrir, ser feliz, ser infeliz, cantar, chorar, sofrer, amar. Essa é uma realidade da qual não podemos fugir. Portanto, nada mais elementar. É por isso que, diante de uma dificuldade, de um infortúnio, à falta de outra justificativa, nos limitamos a dizer: “é a vida” ou “a vida é mesmo assim”.
Os dissabores, os maus momentos, a dor, a insônia, a fome e a sede, por exemplo, existem para que valorizemos a água que sacia a nossa sede, as noites bem dormidas, os momentos de felicidade e de prazer que a vida nos proporciona, porque só mesmo vivendo e convivendo podemos nos defrontar com duas realidades tão díspares, para delas, com o mínimo de inteligência, sorver, apreender – e aprender – os ensinamentos. É a escola da vida em toda a sua plenitude.
Viver sempre foi assim, e assim sempre o será, já que não poderia ser diferente. Para não enfrentarmos as inquietações e os desgostos que nos afligem ao longo da nossa existência e em face da convivência com os nossos semelhantes, só há uma solução: deixar de existir. Todavia, essa é a solução que ninguém almeja, visto que, por pior que sejam os momentos vividos, todos nós preferimos estar vivos para enfrentá-los. E, a cada desafio, nós, alunos diletos da escola da vida, tendemos a nos fortalecer, a nos credenciar para novas batalhas, para novos embates, para novas conquistas, para novas derrotas. Afinal, no jogo da vida, podemos perder ou ganhar.
Mas, por que as pessoas nunca estão preparadas para essa realidade, se sabem que a vida não é feita só de sonhos, que a felicidade pode ser algo efêmero, e que, mais dia, menos dia, terão que enfrentar problemas de especial magnitude? Como seres dotados de inteligência, o que nos falta para compreendermos que a vida não é só prazer, não é só felicidade?
O mundo é um moinho e pode triturar os nossos sonhos mais mesquinhos, dizia Cartola. Digo eu, parafraseando o poeta, a vida é um moinho e, muitas vezes, tritura os nossos sonhos, mesmo os não mesquinhos.
Quantos dos meus, dos nossos sonhos esse moinho inclemente e impiedoso já destruiu? Cá do meu lado, sem muito esforço, respondo que já perdi a conta dos sonhos que vi destruídos. Mas, ainda assim, não me desesperei, não me apequenei diante da intempérie, não molifiquei, não baixei a guarda, não sucumbi, não me autoflagelei. Continuo de pé! Altivo, corajoso, destemido, voluntarioso, sonhador. Às vezes, bobo é verdade. Mas bobo todos somos, afinal. E daí?
Sonhando, vou vivendo; e vivendo, vou sonhando. Caio aqui; levanto acolá. Mas vou indo. Assim vou seguindo, sem me abater diante dos dissabores, conseguindo ficar mais forte a cada intempérie. É a vida! Cheia de altos e baixos. Mas como é bom viver, como é bom poder ter a capacidade de pensar e de dizer o que se pensa.
Viver e sonhar com uma sociedade mais justa e igualitária é a minha obsessão. É que sou assim mesmo. Sou meio bobo, meio boboca, quase parvo, um pouco palerma – um sonhador incorrigível. Idiota? Tolo? Ficcional? Utópico? Sei lá! Sou sei que sou assim.
O que tenho visto ao longo dos anos dedicados à causa pública daria para desanimar, para depor as armas, jogar a toalha, entregar os pontos – deixar as coisas acontecerem, enfim, já que, solitário, com uma migalha quase insignificante de poder, quase nada posso fazer para mudar o curso dos acontecimentos. Mas não vou ceder! Não arredo o pé! Sou todo esperança! Sou a fé materializada! Vou em frente! Um dia, como diz minha mãe, a casa cai e a coisa muda.
Ao longo da minha vida, tenho testemunhado muitas injustiças, às vezes protagonizadas exatamente por quem tinha o dever de ser justo. Mas eu não deixo, ainda assim, que essa triste realidade reduza a pó as minhas ilusões. Sou duro no embate e vou continuar dando uma pequena, diminuta, quase insignificante contribuição para reverter esse quadro. Nem que essa luta se traduza apenas em palavras, como o faço aqui e agora. Sem ódio, sem rancor, sem sentimento de vingança – apenas refletindo e levando adiante a minha mensagem.
Desde que ingressei na magistratura, sonho com o dia em que todos serão tratados da mesma forma. E o que tenho visto, ao longo de tantos anos de dedicação integral à magistratura do meu Estado, dolorosamente, é muita discriminação.
A nossa sociedade, essa é a verdade, é seletiva, no pior sentido que possa ter a palavra. Discrimina-se o igual (?) em face da cor, em face da roupa que veste, em face do bairro em que mora, em face da bebida que bebe, em face dos amigos que tem, em face dos lugares que frequenta.
No caso específico da Justiça Criminal, onde milito há mais 20 (vinte) anos, a discriminação é mais odiosa, visto que a Justiça Criminal tem os olhos voltados apenas para as camadas mais carentes da sociedade e, ignominiosamente, os agentes responsáveis pela persecução criminal têm os tentáculos voltados – de forma inclemente até – somente para a população mais carente.
Mas nós não podemos dar um tiro na cabeça por isso. Nós temos que ter a capacidade de, diante dessa inefável realidade, superar os problemas que são superáveis, administrar os que forem administráveis e engolir os que devem ser “sorvidos” e, até, “degustá-los”, se possível for.
A verdade é que, pior que viver sem esperança é não ter esperança de viver para assistir ao porvir.
Por isso, enquanto vida tivermos, devemos lutar para mudar essa realidade, sempre movidos pela esperança e pela fé.
E, sempre que vierem os dissabores, a borrasca, as injustiças, eu vou estar armado contra eles com a minha sofreguidão, com a minha pertinácia, com a minha obsessão, com a minha dignidade, e ninguém vai conseguir me impedir de continuar sonhando. E vivendo. Vivendo a vida intensamente, sempre esperando que, um dia, o sol, definitivamente, nasça para todos.