SUA EXCELÊNCIA O ELEITOR

Hoje é dia de festa – festa cívica, festa da cidadania; festa da democracia,
enfim, cujo protagonista, o mais reluzente, o mais destacado e para o qual devem ser
dispensadas todas as atenções, é o eleitor, que, com o título nas mãos, consciência e
informação, pode, sim, pela sua soberana vontade, decidir os destinos do nosso país.
Importa consignar, a propósito, que a evolução dos costumes políticos, em
benefício do nosso país, só será possível, como todos almejamos, se o eleitor votar
livremente, sem deixar-se levar por qualquer tipo de pressão que possa
macular/desvirtuar a sua liberdade de escolha.

A Justiça Eleitoral, por seus intrépidos juízes e servidores, contando com a
união de forças das demais agências de controle, está fazendo a sua parte, com
dedicação integral, para que o pleito se realize sob a égide da mais escorreita e estrita
legalidade, como, aliás, tem sido a marca dessa justiça especializada, que a cada dia
mais se esmera, mais se qualifica na consecução do seu mister, fruto de sua natural
vocação para fazer o correto.

Escolher o melhor candidato dentre os players, depois de avaliar com apuro
as suas propostas – sem descurar da sua história, claro -, pode, sim, fazer a diferença e,
no mesmo passo, representar uma boa perspectiva de solução de muitos dos problemas
que nos afligem, na medida em que, como de sabença comezinha, das nossas escolhas
resultam consequências – boas ou más – para o conjunto da sociedade, inclusive quanto
ao enfrentamento da nossa maior chaga – a corrupção -, em face da qual muitos dos
nossos problemas têm se eternizado, sem perspectiva de solução, nos condenando a ser
o país do futuro, para usar o título do livro do judeu-austríaco Stefan Zweig, no qual
expôs, em plena era Vargas, a sua visão, ufanista e romântica, de um país cujo futuro
ainda parece distante.

A história registra que quando erramos nas nossas escolhas, quando não
temos a dimensão do que representa o voto, todos pagamos, indistintamente, pelos
equívocos cometidos, daí a necessidade de que façamos um juízo crítico na hora de
votar, sem nos deixar contaminar por falsas promessas e muitos menos pela paixão
política que, forçoso reconhecer, oblitera a capacidade de discernimento do eleitor.
O voto, tem-se dito amiúde, é uma arma poderosa – e quanto a isso não
tenho dúvidas; arma que, no entanto, pelo poder que encerra, deve ser usada com
equilíbrio e sensatez, mirando, sempre, o interesse público, sabido que, quando o eleitor e
o candidato voltam os seus olhos na direção dos seus próprios interesses, acabam por
desvirtuar o sentido da escolha feita, subvertendo, nesse passo, o próprio alvitre da
democracia representativa.

O voto é, sim, um direito do cidadão, uma manifestação de vontade que não
pode ser arrostada, pois é a partir dele que escolhemos os nossos mandatários, os quais,
dependendo das nossas opções, podem se traduzir num mau ou num bom representante,
sendo este, aquele que se despe dos seus interesses pessoais e age consciente de que
os limites de sua atuação são impostos pelos compromissos assumidos e pela decência
no desempenho da outorga que lhe é feita, e aquele, o que age sem consciência cívica,
sublimando os seus interesses em detrimento do interesse coletivo.

É preciso ter presente, nesse momento tão relevante da vida do nosso país,
que, numa democracia, a soberania é do povo, que apenas delega parte dela aos seus
representantes, os quais, ante a outorga, devem se esmerar no cumprimento de suas
promessas de campanha, para que não se desvirtue o sentido da representatividade.

Na condição de Vice-Presidente do TRE/MA, e seu Corregedor-Geral,
almejo que o dia de hoje seja um marco para a nossa democracia e que os
eventualmente eleitos tenham plena consciência e dimensão da representatividade
conferida, em tributo à confiança depositada por sua excelência, o eleitor.

É isso.

O USO MALSÃO DAS PALAVRAS

A nossa comunicação, como regra, se dá pela palavra – falada ou escrita. Da comunicação
pela palavra, como sabido, podem advir múltiplas consequências, na medida em que ela pode ser usada
para incontáveis finalidades. Nesse sentido, se é verdade que serve para externar, por exemplo, um bom
sentimento, uma mensagem positiva, pode ser utilizada – e, não raro, é – também, para desonrar o
semelhante, disso resultando a necessidade de proteção estatal, a considerar que o direito à honra é um
dos mais destacados direitos da personalidade, acompanhando o indivíduo desde o seu nascimento até
depois de sua morte.

Numa sociedade civilizada, o que se espera é que a palavra cumpra o seu papel de
facilitadora da comunicação entre os humanos, pois quando desborda dessa finalidade, quando ela é usada
para finalidade escusa – para disseminar inverdades, por exemplo – , as relações interpessoais tendem a se
fragilizar, a exigir a intervenção do Estado, por suas agências de controle, afinal, como diz o adágio
popular, “o homem é dono do que cala e escravo do que fala”, razão pela qual deve ser responsabilizado
– civil e penalmente – ,sempre que extrapola, com a palavra, os limites impostos pela ordem jurídica, a
quem deve, sim, rigorosa vassalagem.

Mentir, através da palavra, escrita ou falada, assacar inverdades contra a pessoa (face cruel
do seu uso), significa grave violação ao respeito que se deve ter ao próximo, ainda que o próximo seja um
oponente, disso inferindo-se que, sobretudo no processo eleitoral (alvitre dessas reflexões), é necessário
especial atenção para que o uso da palavra não se afaste dos seus objetivos precípuos, para que não se dê
vazão à lógica de um espetáculo macabro que pode, sim, impor sofrimento injustificável à pessoa,
máxime quando resulta ofensa à sua dignidade, reconhecida como valor-guia, não apenas dos direitos
fundamentais, mas de toda ordem jurídica – constitucional e infraconstitucional.

Tenho testemunhado, desde sempre, nas pelejas eleitorais, o uso malsão da palavra, do que
resulta o desvirtuamento do sentido da propaganda eleitoral, na medida em que, em vez de ser usada para
apresentação de propostas, tem servido, aqui e alhures, para desacreditar, desluzir, conspurcar a imagem
do adversário, transformando as pugnas numa guerra declarada ao opositor, cujo afã é constrangê-lo
moralmente, com a exposição, até, de sua vida privada.

Nesse panorama desalentador, é preciso que unamos forças para que as pugnas eleitorais
não se transformem num vale tudo, e que o uso da palavra se faça em face dos seus reais objetivos, qual
seja, de orientar, de definir propostas, de exposição de ideias, e não para o achincalhe, para enxovalhar,
desdourar a honra do adversário, com o abespinhamento, no mesmo passo, a ordem jurídica.

Em arremate, consigno, na esteira da linha de raciocínio aqui desenvolvida, que a primeira
condição para que a palavra cumpra a sua função é que ela exprima a verdade, pois a vida em comum se
transformará em algo insuportável se as nossas relações não estiverem apoiadas na veracidade, convindo
destacar que o que vale para as relações interpessoais vale, da mesma forma e em igual ou maior medida,
para as pelejas eleitorais, na medida em que a palavra desvirtuada da sua mais escorreita finalidade tanto

serve para atingir o oponente como para desqualificar quem faz mau uso dela, pois, a partir dela, revela-
se, a toda evidência, o lado mais perverso da personalidade do sujeito mendaz.

É isso.

DIAS DE FÚRIA

Trago a lume, para ilustrar, dois fatos assustadores, dentre os
muitos que têm sido noticiados nos últimos dias, fruto das paixões políticas
mais extremadas, que, para mim, homem médio, são injustificáveis; isso sem
falar dos atos antidemocráticos que se espalham pelo país.

O primeiro condiz com a notícia veiculada na imprensa
nacional dando conta do enforcamento de um menor de 7 (sete) anos, por
um policial civil, em face de ter mencionado o nome de um determinado
candidato à presidência da República.

O segundo fato restou traduzido, assustadoramente, numa
pesquisa do Datafolha, segundo a qual sete entre dez brasileiros têm medo
de ser agredido por causa de política, fruto de eventos da natureza do fato
antes destacado.

Os fatos em comento, aos quais se somam tantos outros de
igual matiz, mostram-nos, a toda evidência, que estamos diante de uma
situação de quase descalabro, vivendo dias de fúria, vendo famílias, até
então unidas, fragmentadas, cindidas, divididas, em face de posições
políticas.

Nesse cenário, li, dia desses, fruto do bom humor dos que
ainda guardam alguma lucidez, que, depois das eleições, as reuniões
familiares se transmudariam em verdadeiras audiências de conciliação,
tamanha as divergências que decorrem das paixões políticas mais
exacerbadas.

Pelo que tenho testemunhado, nada obstante, as dissenções,
em alguns casos, são tão graves que conciliação não haverá, fruto da
toxidade que impregnou a alma de alguns fanatizados.

O que todos temos visto, em face dessa irracional paixão
política, são verdadeiras “guerras” – guerras fratricidas mesmo – travadas em
ambientes outrora cordatos, a contaminar as relações mais comezinhas, em
detrimento mesmo, numa visão holística, da paz social, na medida em que as
dissenções alcançaram, para minha estupefação, até, as casas religiosas,
outrora relevante instância de controle social.

Confesso-me estarrecido e desalentado com atitudes que
beiram à irracionalidade, em face das querelas que decorrem do alinhamento
político de parcela relevante da sociedade; atitudes que, consigno, nada tem
a ver com o exercício da cidadania, que não se confunde com o alinhamento
político acrítico, asséptico, insensato e radical dos que, vivendo numa
realidade paralela, se deixam levar pelo fanatismo; fanatismo que esgarça as
relações sociais, nelas inclusas as relações familiares, que deveriam, ao
reverso, ser sublimadas e enaltecidas, mas que têm cedido às dissenções
acerbas, cuja consequência mais cintilante é o soterramento da paz social.
Indago-me, sem encontrar resposta, como pode alguém, com
o mínimo de bom senso e descortino, defender, sem restrição, sem exame
racional e crítico, determinados agentes políticos, sobretudo se dessa falta de
cuidado resultar prejuízo às suas relações pessoais e familiares?

Compreendo, sim, que as preferências políticas devam, sim,
ser exaltadas. Todavia, compreendo, no mesmo passo, que essa sublimação
precisa ser ponderada – não fanatizada, enfim – pois a adesão radical e sem

discernimento crítico pode levar – e tem levado – à conclusão de que quem
pensa diferente do que pensamos pode ser tratado como inimigo, e, não,
como deve ser, como parceiro na consolidação de uma sociedade plural,
pluralidade que deve ser enaltecida como algo natural numa sociedade
democrática.
É isso.

SABER OUVIR


“Temos de tirar o chapéu para a vida, em homenagem às técnicas de
que ela dispõe para despojar um homem de toda a sua relevância e
esvaziá-lo completamente do seu orgulho” (CASEI COM UM
COMUNISTA, de Philip Roth).
Faço a ilustração para que nos lembremos, sempre, que nenhum orgulho
resiste às vicissitudes da vida, daí a necessidade, ante essa certeza
indiscutível, que o homem se despoje do seu orgulho, tirando o chapéu
para a vida, para a sedimentação das boas relações, sem radicalismo,
ante a certeza, que alguns obscurecem, de que a verdade não tem dono
e que o orgulho exacerbado não contribui para a sedimentação das
relações sociais.
Nesse sentido, conviver com os contrários, com quem pensa e age
diferente de nós, é um aprendizado que requer paciência e exige de
todos nós uma certa dose de perseverança e, sobretudo, humildade.
Todavia, tenho constatado, não tem sido fácil, por arrogância e vaidade,
sobretudo nos dias presentes, contemporizar as posições antípodas, que
tendem, por óbvio, a ser mais frequentes, quanto mais plural for a
sociedade.
No mundo plural em que vivemos, portanto, é preciso saber ouvir,
refletir, com respeito e humildade, o que dizem aqueles que pensam
diferente de nós.
Qualquer pessoa minimamente atenta já deve ter percebido que
habitamos num mundo onde pontificam, infelizmente, os que não
sabem ouvir, os intolerantes, os que desprezam os argumentos do
interlocutor, como se fossem senhores absolutos da razão, a reclamar,
urgentemente, uma revisão de conceitos, pois, muito provavelmente,
quando se derem conta de que a verdade não tem dono, e que talvez
tenham se apropriado de uma mentira, sentir-se-ão como aquele sujeito
que, apesar do poder que tinha, apesar de toda a sua arrogância, não
podia mudar a cor da luz do semáforo, se submetendo, nesse cenário, às
mesmas restrições impostas a todos, indistintamente, como de resto
acontece em várias passagens da vida.
Não é democrático, nem razoável, definitivamente, não saber ouvir,
não tolerar a adversidade.
O pensamento único e a verdade absoluta não habitam o mundo da
relatividade, que não tolera os que só o veem de acordo com as cores
da sua lente, conforme as suas idiossincrasias, com os valores que
incorporou e a partir dos quais forjou a sua personalidade.
Viver, conviver, compartilhar as inquietações, as angústias com os que

pensam de modo diferente, com os que têm visão de mundo oposta à
nossa, é um exercício de humildade que todos nós deveríamos cultivar.
Nesse sentido, importa destacar, também à guisa de ilustração, que o
médico Dráuzio Varela, em “Carcereiros”, lamenta ter perdido contato
com o mundo marginal, destacando que essa situação deixava a sua
vida mais pobre, vez que não suportava ter que conviver
exclusivamente com pessoas da mesma classe social e valores
semelhantes aos dele, sem a oportunidade de se deparar com o
contraditório, com o avesso da vida que levava.
Essa, sim, é uma lição de vida para os que só querem ouvir a sua
própria voz, para os que abominam a diversidade, a pluralidade de
ideias.
É isso.

AQUI SE FAZ, AQUI SE PAGA?

Aqui se faz, aqui se paga?

Minha mãe costuma repetir, para não perder a esperança  que “aqui se faz, aqui se paga. Esse aforismo traduz a certeza que ela tem, desde sempre, de que os que fazem maldades, paguem por elas ainda em vida, aqui na terra, para que todos nós testemunhemos, e para que sirva de exemplo.

A vida nos tem ensinado, minha mãe, que não é bem assim, pois que, por tudo que temos testemunhado,  há muitos que fazem maldades e, ainda assim, vivem uma vida plena  ostentando e afrontando, como se fossem proprietários do mundo, o que me autoriza a concluir não ser verdade, sob uma perspectiva terrena, que aqui se faz e que aqui se paga, pois, afinal, se aqui se faz e aqui se paga, no sentido que empresto à locução, então quem não faz aqui, aqui não deveria pagar. E não é isso que tenho testemunhado, por exemplo, com as vítimas da Covid -19, muitas  delas reconhecidamente boas, e que, ainda assim, depois de intenso sofrimento, tiveram a vida subtraída, muitas delas, inclusive, sufocadas, sem ar, fruto da irresponsabilidade de alguns dos nossos representantes.

Aqui e acolá, é verdade, testemunhamos, só para não perder a fé, a queda de um  bandalho. Mas, confesso, desalentado, que, quase nos estertores da vida, vi poucos calhordas padecerem aqui na terra, seja pelo beneplácito da própria natureza, seja pela omissão das instâncias de controle, cujas ações, todos nós sabemos, se destinam a uma clientela específica, sobre a qual derramam, preferencialmente, toda a sua energia, deixando à ilharga parcela relevante de malfeitores do colarinho branco.

A verdade é que poucos são os que pagam sob os nossos olhares pelas maldades que fizeram em vida, como se deu, por exemplo, com Mem de Sá, cujo fato histórico narro a seguir, à guisa de ilustração.

Pois bem. Durante dez anos, Mem de Sá, escolhido, cuidadosamente, pelo rei D. João III, de quem era amigo, para substituir o desastrado Duarte da Costa, exterminou milhares de indígenas, dizimou centenas de aldeias e estimulou o tráfico de escravos, ao tempo em que amealhava uma enorme fortuna pessoal, em razão do tráfico negreiro, de suas fazendas de gado, dos seus engenhos de açúcar e da exportação do pau-brasil.

Todavia, pagou um preço alto: numa expedição enviada ao Espírito Santo, em abril de 1558, para combater os Aimorés, foi morto seu filho Fernão, sendo que, nove anos mais tarde, morreria também, vítima de uma flechada, seu sobrinho Estácio de Sá, na luta contra os franceses e Tamoios pela conquista do Rio de Janeiro.

A filha Beatriz, de 12 anos, e a mulher, Guiomar, também estavam mortas,  tornando-o mais solitário e soturno ainda, solidão que sintetizou, em 1569, numa carta enviada ao rei, com a seguinte expressão: “Sou um homem só.”

Mas o que mais o atormentava acabou acontecendo: morreu aqui, e aqui foi enterrado, sozinho, esquecido pela corte.

Antes, em 1568, quase aos 70 anos de idade, há mais de uma década como governador-geral, Mem de Sá escreveu uma carta ao rei de Portugal. Nela, dentre outras coisas, implorava para que fosse mandado outro governador, pois que tinha receio de morrer em terras nas quais se julgava degredado.

De nada adiantou. Morreu, triste e solitário, por essas bandas; rico, sim, porém infeliz.

É isso.

É PRECISO ASSUMIR POSIÇÃO COM CLAREZA

Uma das maiores dificuldades que constato nas relações que travamos com o semelhante – sejam colegas, amigos, filhos ou mesmo consorte – decorre da nossa incapacidade de compreender e de ser compreendidos..

Nesse cenário, não é rara uma desinteligência em face de uma incompreensão, que pode, dependendo da relevância, levar a relação ao paroxismo, disso resultando a reafirmação do óbvio, ou seja, de que, nas nossas relações, precisamos ser, além de compreensivos, tolerantes.

A verdade é que as pessoas não conseguem – ou não querem –  definitivamente, compreender as outras – por má-fé, maldade ou incapacidade mesmo; incapacidade que, desde o meu olhar, é muito mais significativa quando se tratam das relações que se travam no âmbito das corporações.

Mas as incompreensões são, até, irrelevantes, se levarmos em conta que, no mundo que habitamos, competindo com a mesma tenacidade com as incompreensões, viceja, ademais, com efeitos muito mais danosos, o mais deletério e nefasto de todos os sentimentos que é a inveja, sentimento repugnante e sobre o qual já me detive em outras reflexões.

Se é verdade, como antecipei algures, que temos enormes dificuldades para compreender o semelhante, maiores serão as dificuldades se o semelhante é dissimulado, do tipo que não diz coisa com coisa, que afirma negando e que nega afirmando, que diz hoje o que nega amanhã, que sublima a farsa e o embuste como armas argumentativas.

 Só para ilustrar, lembro que, antes do desfecho da revolução de 30, Getúlio Vargas, aluno aplicado da escola do caudilho Borges de Medeiros, dissimuladamente, fazia juras de fidelidade eterna a Washington Luis, então presidente da República, de quem tinha sido ministro da fazenda, enquanto que João Neves, por determinação do mesmo Getúlio Vargas, por trás, prosseguia costurando a aproximação com Minas Gerais, dificultando, assim, a real compreensão de sua posição política, que só terminou por se revelar com o desfecho da Revolução que o levou à presidência da República, cumprindo destacar que, quando insinuado o flerte com Minas, João Neves se limitou a dizer que o Rio Grande tinha olhos para todos os lados, à direita e à esquerda, como o fazem os jacarés.

Ainda a guisa de ilustração. Quando sondado por Assis Chateaubriand sobre a possibilidade de um candidato do Rio Grande do Sul, terceira força eleitoral do país à época, para se contrapor ao candidato de Washington Luis, no caso Júlio Prestes, Getúlio encarregou o oficial de gabinete a providenciar uma resposta imediata. Mas advertiu: era preciso mostrar-se receptivo à ideia de um acordo com Minas, para não denotar desprezo pelo caso, mas também com cuidado para não demonstrar entusiasmo excessivo, a fim de não transparecer avidez pessoal. É dizer: era preciso, segundo orientação de Getúlio, não se fazer entender, não ser compreendido, pois, afinal, no mundo da política, é assim mesmo que as coisas funcionam.

Mas no mundo do simples mortais as coisas deveriam fluir de outra forma. É preciso ter clareza nas ideais, como é necessário, ademais, predisposição para o entendimento. É preciso ter ciência que nas relações pessoais não se pode viver de tergiversações, de aparências, a partir de frases dúbias, feitas para não ser entendidas, pois isso pode denotar uma esperteza que não se coaduna com o que se espera nas relações das pessoas que se amam, se prezam e se respeitam.

É isso.

JUIZ ANALÓGICO X JUIZ DIGITAL

Principio essas reflexões com uma advertência de Yuval Noah Harari, que serve bem aos que não movem uma palha para ajudar a mudar o mundo, caso, por exemplo, dos juízes que, por comodidade, preferem o conforto da interpretação literal dos textos normativos, ainda que se saiba que o direito pode não estar integralmente contido na lei: “Se o futuro da humanidade for decidido em sua ausência, porque você está ocupado demais alimentando e vestindo seus filhos – você e eles não estarão eximidos das consequências”. (Trechos do ebook “21 Lições para o século 21”, Companhia das Letras. Apple Books).Feito o registro, digo, agora, que todos nós, magistrados, temos, por dever de ofício, que refletir acerca da nossa atuação em face das expectativas da sociedade, o que nem sempre ocorre, porque há, sim, como exceção danosa, os que não dão importância para o nosso deficit de credibilidade.

À luz dessa constatação e tendo em vista que vivemos tempos de inovações tecnológicas que estão revolucionando a prestação jurisdicional, decidi, nessa oportunidade, tecer considerações em face dos juízes que chamo, para fins de comparação, de “digitais” (contemporâneos) e dos que denomino “analógicos” (atrasados).

Devo advertir, nessa linha de reflexão, que nenhum avanço tecnológico reverterá o quadro atual de descrença, se não houver sincronia entre esses avanços e uma mudança de rumo de alguns magistrados, para os quais o tempo parece não ter passado, razão pela qual continuam, mesmo diante das inovações tecnológicas, com uma mentalidade, digamos, analógica, ou seja, atrasada.

O Poder Judiciário avança, a olhos vistos, com a perspectiva de, nos próximos anos, possibilitar a todos os brasileiros acesso amplo, irrestrito e em tempo real aos nossos serviços. Mas essa será uma conquista que tende a ser debalde se não houver uma mudança de atitude do próprio magistrado, de quem se espera, cada vez mais, comprometimento com o seu desempenho, integridade e previsibilidade em suas decisões.

Faço a advertência porque, nos dias atuais, ainda há juízes que teimam em decidir, por exemplo, contra os precedentes, olvidando-se que eles, os precedentes, conferem “segurança jurídica, isonomia e eficiência às decisões” (Luís Roberto Barroso), agindo, com efeito, na era digital como se vivessem no mundo analógico.

Nesse cenário, importa redizer, noutro giro, que “Juiz digital”, sendo juiz do seu tempo, é aquele que, além de não surpreender a cada decisão, não tem medo de processo; e decide contramajoritariamente, se necessário, ainda que, decidindo, tenha que enfrentar os dissabores propiciados pelas incompreensões.

O “Juiz digital”, lado outro, age sempre, no dia a dia, como qualquer cidadão, sem explorar prestígio ou traficar influência, e sem ousar bradar o odiento “sabes com quem estás falando”, porque tem ciência e consciência de que todos são (ou deveriam ser) iguais perante a lei.

O “Juiz digital” tem consciência de que, algumas vezes, tem que se transformar num gladiador (para lembrar Dworkin e o juiz Hércules), para bem decidir, sem permitir, jamais, a instrumentalização da sua razão, que, sabe-se, não liberta; antes, oprime ( Marilena Chauí).

Nessa linha de intelecção, importa concluir que o “Juiz digital” é aquele que, diante de um pleito judicial para o qual não exista regra específica (dogma da subsunção), não se furta de decidir, de uma maneira ou de outra, objetivando a satisfação dos direitos vindicados, que, afinal, é o seu, é o nosso compromisso.

Finalmente, “Juiz digital” é aquele que sabe que não existe intérprete neutro e que o ponto de observação do julgador faz a diferença, razão pela qual toda interpretação contém um grau considerável de subjetividade, que deverá, sempre, ser sopesada, para não deixar transparecer que não tenha sido imparcial.

É isso.

ESTADO DE DIREITO E A NAU DOS INSENSATOS

Diante de uma decisão judicial impactante há um grita natural da sociedade. Nesse cenário, todos nós magistrados, indistintamente, somos tratados como se fôssemos insensíveis, com as costas viradas para o interesse público, perspectiva em razão da qual se pode inferir o quanto é difícil a missão de julgar os atos do semelhante numa sociedade que democratizou, pela internet, a emissão de juízo de valor sobre qualquer tema.

Mas não é bem assim. Logo, é preciso ter muita cautela – e responsabilidade, sobretudo – nessa generalização absurda, que, na minha forma de compreender, até se justifica, aqui e acolá, em face da ação descomprometida de alguns poucos.

Da mesma forma, é imprescindível levar em conta que não somos os seres frios e calculistas que muitos pensam, sem compromisso com o combate à criminalidade, uma vez que ela atinge a todos nós, sem distinção de posição hierárquica.

Ao magistrado, tenho dito, reiteradas vezes, não é dado o direito de fazer cortesia com o direito alheio, ainda que as suas decisões possam ser incompreendidas por parcela significativa da sociedade, sabido que, na maioria das vezes, elas são gestadas em face de um direito individual, em contraposição com o interesse coletivo.

A verdade é que o magistrado não pode deixar de conceder, por exemplo, uma liberdade provisória ou relaxar uma prisão ilegal, temendo uma provável incompreensão de parcela da população, o que não quer dizer que não existam os que prolatem decisões com argumentos marcadamente heterodoxos, a propiciar alguma inquietação.

É de relevo que se diga, no entanto, que não se constrói uma sociedade minimamente justa quando aquele que tem a missão de decidir uma demanda o faça temeroso e acovardado, ante a iminência de uma reação dos jurisdicionados e da imprensa.

Quando um magistrado decide-se pela liberdade de um acusado, em face de uma ilegalidade, está dizendo, no mesmo passo, que qualquer pessoa que se veja em situação similar poderá se socorrer desse mesmo expediente, que é próprio das sociedades civilizadas, que não se confundem, definitivamente, com os estados tirânicos que uns poucos inconsequentes e radicais almejam.

A verdade é que não se pode manter preso, provisória e ilegalmente, quem eventualmente tenha tangenciado as leis do Estado, apenas porque vivenciamos uma verdadeira guerra de informações e contrainformações que viceja numa sociedade marcadamente amargurada pela ação/inação/ falta de compromisso de alguns homens públicos.

Nossa geração testemunhou o desconforto, para dizer o mínimo, de viver num Estado totalitário, onde os fins justificavam os meios e no qual testemunhamos, estupefatos, o abespinhamento de muitas garantias constitucionais que é, ao que parece, o que desejam os mais empedernidos haters que habitam o mundo descontrolado e nefando das redes sociais, que, para o bem e para o mal, têm dado voz e espaço a todos, inclusive aos imbecis  

Dito isso, importa consignar, por oportuno, não podemos, agora, com as instituições funcionando com regularidade, embarcar na nau dos insensatos/radicias, para os quais juiz bom é tão somente o que decide de acordo com os seus interesses.

Da mesma forma, não pode um magistrado, num Estado de Direito, ser acossado, desrespeitado, atacado, às vezes de forma vil e covarde, apenas porque cumpriu a lei, quando, por exemplo, tenha reparado uma prisão ilegal, cumprindo destacar, com ênfase, que aqui não absolvo os togados que, sem compromisso, decidem marginalmente.

O Estado, é de sabença, tem por finalidade a realização do bem comum, que, convém assinalar, jamais será alcançado sem a preservação dos direitos dos cidadãos, sabido que, mesmo quando ele intervém com o jus puniendi, deve, por seus agentes, respeitar o direito dos acusados, por mais grave que tenha sido a transgressão praticada.

Nessa senda, reafirmo que, diante de uma prisão ilegal, o Estado, por seus agentes, não pode se omitir, ainda que o preço seja a incompreensão, o que não quer dizer, repito, que não existam os que, mal-intencionados, concedam liberdade a perigosos meliantes sem atentar para o princípio da proibição da proteção deficiente que, conforme se sabe, autoriza o juiz, em determinadas hipóteses, a sacrificar o direito individual em benefício do coletivo.

É isso.