COM OS PÉS NO ATRASO

A inspiração para essa crônica veio da obra monumental de Lilian Schwarcz Moritz e Heloisa M. Starling, Brasil: Uma Biografia.

Segundo as mencionadas autoras, em passagem que entendi inspiradora, o viajante Louis-Albert Gaffre contava que, após a abolição, as negras, de posse de pequenas economias, compravam calçados, acessórios que lhes eram até então interditados.

Segundo o mencionado viajante, a procura desses verdadeiros ícones da liberdade se revelou uma decepção. É que os pés outrora descalços, calejados, acostumados ao contato direto com o chão, não aguentaram “tanta modernidade”.

Noticiam as autoras que as testemunhas da época relatam ter observado, tanto nas ruas da cidade quanto no campo, negras carregando pares de calçados não nos pés, mas apoiados nos ombros, como bolsas a tiracolo ou troféus. Mas a liberdade, de toda forma, significava o arbítrio de poder comprar e o usar o que se quisesse, e de ter nome e identidade.

Em face do funcionamento absolutamente discriminatório e seletivo – irritantemente seletivo e discriminador -, das instâncias persecutórios brasileiras e das ações dos nossos representantes no Congresso Nacional, é possível estabelecer um paralelo dos dias presentes com a situação fática acima descrita, para dizer que, em terras brasileiras, estamos condenados a viver no atraso, condenados a carregar sobre os ombros os maiores sintomas desse subdesenvolvimento, em face da nossa proverbial tendência a privilegiar as classes mais favorecidas, punindo-as apenas excepcionalmente, contaminadas que estão as instâncias de controle e de investigação pelos vícios do passado que as impedem de cumprir bem os seus objetivos, contando, lamentável dizer, com o beneplácito da maioria dos nossos representantes.

É dizer, em terras brasileiras, quando se trata de punição em face de um mal feito, as instituições persecutórias se apresentam, ainda nos dias presentes, com os mesmos vícios que as tornaram – e as tornam – desacreditas na sociedade; como os escravos libertos a que me reportei acima, as instâncias de controle têm os pés fincados num período que relutamos em ultrapassar.

A verdade é que ainda não evoluímos, ainda não alcançamos nenhuma maturidade nesse sentido. E pelo fato de ainda não termos ingressado na modernidade, vivemos com os pés fincados no passado de impunidade, atraso que pode ser potencializado em face da pretendida lei de Abuso de Autoridade no aguardo de manifestação do Poder Executivo.

Nesse cenário, as instituições persecutórias não evoluem, estabelecendo contato direto e exclusivo com a periferia criminosa, salvante um ou outra exceção, bastando, para confirmar o que digo, fazer um levantamento das ações penais em curso, dos encarcerados provisórios jogados em nossas masmorras e dos condenados mantidos segregados nas penitenciárias, com a consagração de um estado de coisas inconstitucional que a ninguém parece incomodar, muito menos aos graduados representantes do povo, cujo exemplo mais evidente de tentativa de perpetuação da impunidade da classe de cima é o projeto que tipifica os crimes de Abuso de Autoridade, ou Estatuto do Criminoso, como jocosamente tem sido chamado o mencionado projeto.

Aqui e acolá, admitamos, há uns poucos atores flertando com a modernidade, verdadeiros heróis – por isso mesmo abespinhados pelo sistema – que insistem na busca pela modernidade, para usar a mesma expressão do viajante Louis-Albert Gaffre; que sonham e lutam, quase sempre embalde, para que a lei seja destinada a todos.

Nesse panorama, é como se ainda andássemos com os pés no chão, como andavam os escravos de antanho. E sempre que tentamos evoluir, calçando os sapatos da modernidade, somos surpreendidos com um retrocesso, como se vê em face do Projeto de Lei antes mencionado, que, se sancionado, nos levará, inapelavelmente, a colocar, metaforicamente, os sapatos sobre os ombros, como a nos advertir que ainda não é chegada a hora da liberdade, do tratamento igualitário entre os destinatários da persecução criminal.

Definitivamente, as instâncias persecutórias só têm os olhos voltados para os mais pobres, para os quais destinam todo o seu rigor, na mesma medida com que demonstram, por seus agentes mais destacados, a sua parcimônia e leniência quando se trata dos mais aquinhoados, protegidos, por ação ou omissão, das ações de agentes públicos inescrupulosos e sem compromisso com o tratamento igualitário preconizado em nossa Carta Política.

Nós não nos libertamos – e nem temos perspectiva de nos libertar – de um sistema punitivo historicamente discriminador, situação que se agrava com o famigerado Projeto de Lei antes mencionado.

Nesse cenário, triste admitir, ainda trilharemos por muito tempo, em face de tudo que tenho testemunhado ao longo de mais de trinta anos nessa lida, com os pés descalços, calejados, sem perspectiva de alcançarmos a modernidade.

É isso.

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

A glória do mundo é passageira, como diz o brocardo latino que tomei de empréstimo para o título desse artigo. Nesse sentido, só um tolo – que não é meu caso – se ilude com o poder, pois o que se vive nele é absolutamente efêmero. Tenho dito isso, repetidas vezes, a reafirmar a minha convicção de que a salvação da alma está fora do poder.
Ou, noutro giro, a salvação da alma não está no exercício do poder, conquanto admita que haja os que, embevecidos em face do poder, imaginam que o seu exercício salvará a sua alma; e nessa perspectiva, perdem a noção e os limites de sua ação.
A verdade é que a vida acelera, e o tempo passa com uma rapidez que só não impressiona os que, por qualquer razão, perderam o rumo, a direção, o discernimento. A vida acelera, repito, e nós vamos juntos – sem opção, por não termos o poder de impedir a passagem inevitável do tempo. E assim, a vida se esvai, levada pelo tempo, inapelavelmente.
É preciso, pois, estar preparado para, inevitavelmente, deixar a ribalta para os novos atores; e que sejamos capazes de agir, nesse sentido, por vontade própria, antes que o façamos vergastados pelas leis da natureza, as quais, conforme sabemos, não fazem nenhuma concessão acerca dessa questão.
Logo, é preciso estar atentos e preparados para os efeitos que o tempo nos impõe a todos, pois aquele que não se preparar para essa realidade será surpreendido com a constatação de que só lhe restou, para ser curada, a ressaca que decorre do tempo que passou sem que se desse conta de que tudo passa, embriagado pelo exercício do poder.
O tempo, indomado, a(quase) tudo destrói; só não destrói a nossa história, o que edificamos – de bom ou de ruim. Logo, a única certeza que tenho é a de que, ao fim e ao cabo, só restará mesmo aquilo que construímos, que deixamos para as gerações futuras: o bom exemplo, a boa conduta, a retidão e o caráter.
E assim, a cada dia, a cada momento, aqueles que exercem o poder com aptidão, com abnegação, com devoção, com os olhos voltados apenas para as suas finalidades precípuas, vão construindo a sua história, sedimentando o seu legado para as gerações futuras.
Nesse sentido, a história que cada um de nós escreve pode ser uma boa ou má história. Tudo depende da maneira como exercemos o poder e se, nesse sentido, formos capazes de deixar bons exemplos nos quais as futuras gerações possam buscar inspiração.
Quero, sim, ser lembrado, no futuro, como um magistrado que pelos menos tentou ousar, romper os paradigmas, que abriu mão de nacos do poder, que a tantos fascinam, em defesa de suas convicções, na firme compreensão de que não vale o poder a qualquer custo.
Eu não quero ser lembrado como um magistrado capaz de qualquer ação ou omissão para angariar simpatias que possam ser usadas como moedas de troca para alcançar cargos relevantes.
Eu faço a minha história. E cada um, por óbvio, faz a sua. Umas mais e outras menos relevantes; algumas mais ou menos dignas. Mas, ainda assim, história, em razão da qual todos nós um dia seremos lembrados.
Triste daquele que passa pelo poder e não constrói uma história digna. Triste dos que pensam que o poder é apenas um instrumento de satisfação e realização pessoais.
O poder passa; a nossa história fica. Mesmo os ditadores, ainda que não creiam na finitude, um dia deixam o poder – ou pela morte ou pelo golpe.
Por tudo que acima expus é que reafirmo que o poder é a ilusão dos tolos, motivo pelo qual tenho dó dos que exercem o poder com os pés na cabeça, cultivando apenas o seu ego ou para dele se servir, sem espírito público e sem a dimensão do múnus.
Quem assim pensa e age, tende a, no futuro, quando o poder lhe escapar das mãos, ficar sozinho, num ostracismo que já matou de tédio muitos daqueles que, no poder, imaginavam-se super-homens, com superpoderes, acima do bem e do mal.
Quando digo que o poder não deve ser exercido a qualquer custo e que as pessoas encarapitadas nele devem ter a exata dimensão de até aonde podem ir, lembro de uma passagem interessante da história que vale a pena ser lembrada, à guisa de ilustração.
Pois bem. Graciliano Ramos, prefeito de Palmeira dos Índios, mandou recolher os animais que ficavam soltos na rua. O funcionário destacado para cumprir a ordem, depois de um dia exaustivo de trabalho, retornou para fazer um balanço de suas atividades.
Graciliano Ramos o indagou, então`:
-E ai, recolheu todos os cachorros?
Ao que respondeu, em tom bajulatório, o funcionário:
-Sim, excelência.
E observou, em seguida:
-Menos o do seu pai.
Graciliano o repreendeu, seca e duramente, traduzindo o que para ele representava o múnus público:
– Prefeito não tem pai.
É isso.

SOB O DOMÍNIO DAS PAIXÕES

Volto ao tema sobre o qual já refleti em outras oportunidades, em face da compreensão que tenho que, nos dias atuais, os debates de ideais descambaram para a insensatez e incivilidade. Dessa forma, está quase impossível “os de cá” sentarem com “os de lá” para uma discussão civilizada em torno de questões de interesse público, situação que, de resto, contaminou até os nossos pretórios, como todos nós testemunhamos, mesmo na nossa Suprema Corte.

A propósito do tema em questão, inicio lembrando, com os estoicos, que ser sábio é tomar a razão como guia, enquanto ser louco é deixar-se levar ao sabor das paixões.
À luz dessa lição, pode-se afirmar, em vista do que testemunhamos nos dias presentes, que somos um pouco loucos, pois, não raro, abdicamos da razão para agir movidos pela paixão; e, mesmo pagando um preço alto em face de uma atitude insensata, persistimos agindo, algumas vezes, sob o domínio das paixões.

Diante dessa realidade, tenho afirmado que o homem não deveria, sob qualquer pretexto, se orgulhar de vencer uma disputa – sobretudo no campo das ideias – que não fosse pela razão e pela inteligência, pela força dos seus argumentos, racionalmente esgrimidos, sem violência – verbal ou física -, sem agressão, sem baixaria, sem ataques covardes, sem estar dominado pela paixão, portanto.

Todos os que enfrentam argumentos contrários sob o domínio das paixões, esmurrando a mesa, agredindo verbalmente, parolando acima do tom civilizado, assim o fazem por lhes faltarem força argumentativa. Daí a opção pela estridência, pelo barulho e pela descortesia, pela falta de respeito, pela utilização de argumentos pobres e incivilizados, numa postura que só galvaniza a simpatia dos seus iguais.

A força física e os impropérios, os ataques grosseiros, enfim, não deveriam permear um debate de ideias entre pessoas civilizadas, motivo pelo qual me recuso a emprestar a minha lucidez a uma discussão incivilizada, ainda quando sou instado, mediante provocação, a fazê-lo, pois compreendo que participar desse tipo de discussão, que nada constrói, que nada edifica, seria emprestar a minha aquiescência à falta de compostura, que não me permito em face do poder que exerço, que exige de mim um comportamento altivo e digno.

Desde a minha compreensão, ou o opositor tem força argumentativa ou se cala e dá a contenda por perdida. Daí que, na minha avaliação e na de tantos quantos como eu optam pela racionalidade intelectual, não valem os argumentos laterais, os argumentos menores, o menoscabo, enfim, como linha argumentativa.

Ademais, não são o tom de voz alterado, o murro na mesa, a postura estridente e desequilibrada, enfim, que definem o vencedor numa pugna de ideais. Logo, não é agindo assim que fazemos prevalecer as nossas ideias.

Muitas vezes, é preferível sair “derrotado” que “vencer” um debate na base da lei do mais forte, do grito e do achincalhe, pois atitudes dessa ordem traduzem, em verdade, atos de pura covardia, permeada de pobreza de argumentos e de baixaria que, entre os racionais, não valem como argumentos e nem enaltecem o contendor; antes o diminuem aos olhos dos dotados de capacidade discernimento e de compreensão da realidade.

É inaceitável, de mais a mais, que o homem, como ser racional, não se dê conta quando, numa disputa, deixou de agir com a razão para agir movido pela paixão que oblitera a mente, que leva à irracionalidade, a qual leva aos desatinos e aos caminhos nos quais só trafegam os irracionais.

Na defesa de uma tese, de uma linha de argumentação, o debatedor que levanta a voz, que dá murro na mesa, que parte para agressão pessoal e para descompostura, na tentativa de sobrepujar os argumentos do oponente, o faz como agem os animais selvagens, ou seja, com o uso da força e da violência, justificáveis no mundo animal, mas intoleráveis nas relações entre pessoas civilizadas.
Nesse cenário, fico sempre com a sensação de que quem mais grita é quem menos argumentos tem para o debate, quem menos tem razão. Por isso, eleva a voz, gesticula, arregala os olhos, aponta o dedo, fica ruborizado, tem a sensação de desmaio, olha para os lados em busca de um aceno, de uma manifestação que seja, na vã tentativa de se convencer a si próprio de que está certo. Uma “vitória” nesses moldes, antes de orgulhar, deve, ao contrário, envergonhar o contendor.

Os leões, os ursos, os javalis, os tubarões, dentre outros, combatem com a força física, o que é muito natural; já o homem, inobstante, dotado de inteligência e discernimento, não deve usar da violência, nas suas mais diversas formas, para sobrepujar aquele que enfrenta eventualmente como oponente, se a pugna se dá apenas no campo das ideias.

Buscando força ilustrativa na obra ficcional de Thomas Morus (A utopia), anoto que os utopianos lamentavam e chegavam mesmo a se envergonhar com a informação de que, numa disputa, um dos contendores possa ter alcançado a vitória de forma sangrenta, considerando mesmo uma loucura alcançá-la por esse preço. Os mesmos utopianos se ufanavam quando a vitória era alcançada pela inteligência e pela astúcia, pela força dos argumentos.

E assim, quando numa discussão me virem deixar o “campo de luta”, não pensem que me deixei abater, que saí derrotado; é que, simplesmente, me recuso a discutir qualquer questão que não seja civilizadamente.

É isso.

SOBRE MENTIRAS

Nada é mais nefasto para as relações que travamos, seja em casa ou no trabalho, do que não acreditar no interlocutor. Daí porque é desalentador ouvir uma história e não poder confiar naquele que a conta, assim como é desanimador constatar que, dependendo do interlocutor, não é possível acreditar na desculpa que apresenta.

Decerto que, algumas vezes, é preciso apresentar uma desculpa, tergiversar aqui e acolá, no afã de preservar uma relação ou de evitar um aborrecimento. Mas isso não pode ser a regra, pois mentira deve ser sempre uma excepcionalidade.

A regra em face da qual não se pode fazer concessões é a verdade, uma vez que não convivemos bem com o tipo mendaz, aquele dado a conversa fiada, conversa para boi dormir, como se diz na minha terra.

Mas até aí, quando se tratam de relações interpessoais – privadas, portanto – não há maiores consequências. A gente pode, ou não, crer no interlocutor, e a vida segue, sem maiores consequências.
Todavia, quando o vetor da mendacidade serve a um processo, como testemunha, por exemplo, a situação exige redobradas cautelas, em face das consequências que decorrem de uma mentira formalizada nesse ambiente, o que pode, sim, levar à condenação um inocente ou à absolvição um culpado.

Aí, estimado leitor, o bicho pega, para usar uma linguagem coloquial. Por isso é que, diante de uma prova testemunhal, exige-se do magistrado algo que vai muito além da sua capacidade técnica.
Muitas vezes, precisamos penetrar na alma da testemunha, nas suas entranhas, sob pena de corrermos o risco, sempre presente, de prolatar uma decisão dissociada da realidade, posto que uma testemunha mendaz pode decidir, como dito acima, a vida de um acusado.

Logo, para acolher um depoimento que possa estar contaminado por algum interesse, o magistrado tem que agir com muito zelo e atenção. Nesse sentido, é necessário perscrutar, analisar com o necessário rigor, por exemplo, quais as forças exógenas e endógenas que possam ter desvirtuado esse ou aquele depoimento; desvirtuamento que pode levar uma testemunha a mentir para favorecer ou prejudicar um determinado acusado.

Não é tarefa fácil, nada obstante. Daí que, algumas vezes, apesar da íntima convicção que temos acerca da culpa de um determinado acusado, somos compelidos a absolvê-lo por falta de provas ou por insuficiência das provas produzidas.

Todos os juízes criminais já se defrontaram, incontáveis vezes, com esse dilema, ou seja, de ter que decidir, para absolver ou condenar, com base, primordialmente, em provas testemunhais, a mais falível, volúvel e perigosa das provas.

Diante desse quadro, o que se espera é que o juiz se esmere, até onde é possível em face dos comandos legais, no momento da produção da prova testemunhal e na sua avaliação.

Nesse sentido e a par dessa realidade, é que não se pode inquirir – e aqui me reporto especialmente às partes – testemunhas com o piloto automático ligado, com indiferença ou falta de disposição.

Nenhum juiz, nem o Ministério Público e nem a defesa podem sentar a uma mesa de audiência para inquirir uma testemunha sem antes ter analisado, com percuciência e vagar, o processo, para se cientificar, em profundidade, daquilo que convém indagar das testemunhas, sem o que não haverá condições de aferir, ao fim e ao cabo da instrução, quanto à veracidade do depoimento que está sendo tomado.

O que vi a minha vida inteira foi o total desprezo dos autos até o início da audiência – consideradas, claro, as exceções de praxe -, motivo pelo qual não foram poucos os que, nesse panorama, só tiveram conhecimento dos fatos ao tempo da realização da audiência, dando lugar a erros judiciários e injustiças.

Não dá bom exemplo o promotor, o juiz ou o advogado que só manuseia os autos no momento da audiência, pois, quem pretender fazer um trabalho minimamente escorreito, deve se antecipar às audiências, para saber acerca da prova a ser produzida.

O que têm a dizer as testemunhas em um processo não pode ser, como ensina Leandro Karnal, apenas uma explosão de som. Mas para que isso não ocorra, a responsabilidade é toda dos atores do processo, principalmente das partes, em face da vigente legislação, que relega a atividade do juiz a um segundo plano quanto a audição das testemunhas.

Em face de uma inquirição descuidada é que, muitas vezes, a despeito do estrépito do crime, a despeito das cobranças da sociedade, somos obrigados a absolver determinados acusados, à míngua de prova induvidosa acerca da sua participação na empreitada criminosa, a considerar, nessa perspectiva, a relevância da prova testemunhal.

Uma testemunha mendaz pode levar o acusado ao inferno ou ao paraíso. Por isso o zelo, a perseverança, a sofreguidão com que deve ser colhida a prova testemunhal, exigindo-se do MP e da defesa, que, antes das audiências – bem antes mesmo! – leiam os autos do processo, para terem firmeza sobre as questões que formularão, pois só assim é possível, com razoável probabilidade, saber se a testemunha falseia a verdade, para o bem ou para o mal.

É isso.

MELHOR INVESTIGAR

Tenho dito que se houver fundadas suspeitas da prática de ilícitos – penal ou administrativo – por um homem público, o melhor que se faz é investigar da forma mais ampla possível, para que todas as dúvidas sejam dissipadas.

É o preço que todos nós pagamos pela opção que fizemos, pois, sobre a honradez de um homem público, não devem existir dúvidas, ainda que razoáveis. Logo, é preciso deixar que as ações das instâncias de controle fluam naturalmente, porque é do interesse público que as suspeitas – eu disse suspeitas, das quais pode ou não haver indiciamento, que é ato posterior ao estado de suspeito – sejam esclarecidas.

O mais relevante patrimônio de um homem público, todos haverão de concordar, é a sua honorabilidade, que não deve estar sob questionamentos. Daí que, havendo razoável dúvida de desvios de conduta, não pega bem criar óbices às investigações.

Investigação em face de suspeitas razoáveis de má conduta do homem público é um imperativo impostergável e traduz o estágio de evolução de um povo, tanto que, em países civilizados, a simples suspeita impõe ao investigado o dever ético de sair da ribalta, renunciando ao cargo que eventualmente ocupe.

Dessa forma, o melhor que se faz, com todas as consequências que isso encerra, é deixar investigar, se colocar à disposição das instâncias de controle para quaisquer esclarecimentos, pois, afinal, se o indiciamento pressupõe um grau elevado de certeza da autoria, elas, a autoria e a materialidade do ilícito, só podem ser aferidas em face das investigações que forem levadas a cabo.

Desde a minha compreensão, não pega bem o uso de artifícios, mesmo os legais, para impedir que as investigações fluam. Tratando-se de homem público, sobretudo o que têm uma outorga popular, com muito mais razão deve se submeter, naturalmente, às eventuais investigações.

Eu, cá do meu canto, tenho sérias restrições aos que pregam inocência, mas que, no mesmo passo, mesmo ante veementes indícios da prática de algum ilícito, criam empecilhos às investigações, deixando uma amarga sensação de que podem, sim, ter alguma dívida a ser reparada, pois, respeitadas as balizas legais, nada justifica criar estorvas às investigações, máxime quando precedidas de fortes suspeitas de que possa ter havido mesmo algum desvio de conduta.

Ante fundadas suspeitas, por exemplo, de aumento patrimonial incompatível com os rendimentos auferidos por determinado homem público, o correto mesmo é investigar; e, nesse sentido, o maior interessado nas investigações deveria ser a pessoa suspeita, pois que somente em face delas pode-se dirimir eventuais dúvidas acerca de sua conduta, malgrado os dissabores que decorrem da condição de investigado.

Nada obstante os dissabores, todos – eu disse todos! – sobre os quais recai alguma suspeita de enriquecimento ilícito, ou qualquer outro desvio de conduta, devem suportar o desconforto de uma investigação, como todas as suas consequências.

Se, desde meu olhar, as coisas devem ser assim, tenho enorme dificuldades em compreender por que os investigados, de regra, mesmo ante a presença de fortes indícios do cometimento de um ilícito, ultrapassado umbral da mera suspeita, insistem em obstaculizar as investigações.

É preciso ter em conta que não se inicia, pelo menos não tenho notícias nesse sentido, nenhuma investigação, em face de um ilícito, seja penal, seja administrativo, sem que haja, no mínimo, suspeitas relevantes da prática de ilicitude. Se é assim, por que então as pessoas insistem nesse argumento pueril e ridículo de que tudo não passa de uma vindita, como se pretendessem dar à fumaça de gelo um efeito que ela não tem?

Ninguém sai por aí escolhendo, aleatoriamente, quem deva ser investigado; a menos que se trate de um insano, um perseguidor implacável, irresponsável e inconsequente. Da mesma forma, as instâncias de controle não saem por aí investigando à vista tão somente de uma elucubração.

Tentar obstaculizar uma investigação, presentes fortes suspeitas da prática de uma ilicitude, é, para mim, mera escamoteação; uma tentativa pueril de negar as evidências, escondendo-a sob uma cortina de fumaça, olvidando-se que a consciência culpada, ainda que consiga se proteger da persecução, como ocorre algumas vezes, não deixará de ver, em cada sombra, um policial a tirar-lhe a paz.

É isso.

HIERARQUIA DA CRUELDADE

Os livros Spotlight, Segredos Revelados, de uma equipe de investigadores do The Boston Globe, O Homem Inocente, de John Grisham; Diário de Guantánamo, de Mohamedou Slahim, preso no campo de detenção da Baia de Guantánamo, em Cuba; Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, do jornalista Mário Magalhães; Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros; O Livro Negro do Comunismo, Crimes, Terror, Repressão, editado por Stéphane Courtois; e Brasil: uma Biografia, de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, têm em comum o fato de estarem permeados de narrativas sobre a crueldade do homem, o que me induziu a essas reflexões, pois que, à medida que me aprofundava na leitura dos títulos acima citados, ia sendo tomado de desalento – e, algumas vezes, até revolta -, ante a constatação do que o homem, sobretudo em condições de superioridade, é capaz de fazer em detrimento do seu semelhante.

É claro que em nenhum desses manuais os seus autores pretenderam dar ênfase às crueldades do homem, pois, definitivamente, não elegeram essa questão como tema central das narrativas. Quanto a mim, à proporção que lia – e me envolvia emocionalmente -, fui sendo levado a analisá-los sob essa perspectiva, pois, a cada excerto tratando das maldades do homem, como, por exemplo, em face da escravidão e seus desdobramentos, narrados na monumental obra de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, me via tomado de indignação.

Por óbvio, não vou fornecer detalhes dos livros. Limitar-me-ei, com efeito, a refletir acerca do que há de comum entre eles, e que me motivou a escrever este artigo, como antecipei acima, ou seja, a crueldade do ser humano, vista e analisada aqui numa perspectiva de poder, não só o conferido pelo Estado – caso dos algozes de Diário de Guantánamo e de O Inocente, por exemplo -, mas também quando ele, o poder, é exercido em razão de uma liderança, caso de Carlos Marighella, de Lampião e Maria Bonita, dos padres pedófilos mencionados em Spotlight), dos ditadores citados no Livro Negro do Comunismo e dos escravizados de que cuidam Lilian Schwarcz e Heloísa Starling em sua obra.

Nos cenários descritos em todos os livros, o que mais estarrece, e sobre o que pretendo esgrimir nessas reflexões, é a constatação de que os protagonistas das injustiças, das violências, das crueldades perpetradas contra o semelhante detinham o poder de mando e, em face desse poder, exorbitaram, levando-me a concluir que a crueldade, muitas vezes, decorre de uma posição de poder, que a torna ainda mais nociva e abjeta, difícil de ser combatida, a reclamar, também por isso, uma atuação mais enérgica das instâncias de controle.

A posição hierarquizada dos algozes torna a crueldade ainda mais abominável, convém reafirmar, porque eles se valem dessa hierarquização para perpetrar as maldades e para, a partir da posição que ostentam, conseguirem se safar das ações dos órgãos de controle, protegidos, quando se trata de agentes do Estado, pelo próprio sistema, que apesar de tudo ver, se omite em face de quase tudo.

Para os que detêm o poder de decidir sobre a vida e a sorte das pessoas, o sistema punitivo, infelizmente, empresta a sua aquiescência, o que resulta na impotência das vítimas diante das ações dos seus algozes, uma vez que, de regra, não têm a quem recorrer, sobretudo quando são pessoas egressas das classes menos favorecidas, para as quais Justiça é apenas uma quimera, um sonho muitas vezes acalantado, mas nunca alcançado.

As crueldades retratadas nos manuais a que me reportei impactam sobremaneira, porque reafirmam aquilo que sempre tenho dito: dos animais que existem sobre a terra nenhum é mais perigoso que o homem; essa perigosidade se potencializa quando ele é detentor de algum poder de mando, seja por estar investido de alguma atribuição conferida pelo Estado, ou porque exerça o poder em decorrência da sua liderança.

A constatação de que crueldade do homem pode vir a ser hierarquizada em face do poder de mando o homem é, de certa forma, um desalento, sabido que, contra isso, a única certeza que temos é a de que todos somos impotentes. Daí por que não são poucos os que, em face de um agente estatal mal-intencionado, sucumbem, podendo, muitas vezes, até ser condenados, como temos testemunhado todos os dias, mesmo nas sociedades que se dizem evoluídas e democráticas como a americana, nas quais os erros judiciários e as injustiças estão presentes, sobretudo em face da população negra e hispânica.

Das narrativas contidas nos livros, restou definitivamente claro para mim que o Estado não protege, definitivamente, o mais débil. Ao contrário disso, se mostra pleno, poderoso, eficaz e altivo quando destina as suas ações para perseguir e punir, sem pena e sem dó, os egressos das classes menos favorecidas, eleitos como alvos preferenciais das vinditas estatais.

Causa estupor e revolta constatar, à luz do que li e do que testemunhado há mais de trinta anos como magistrado, a capacidade que o Estado tem de, ante os mais frágeis, se agigantar, sufocando-os de tal sorte e em tal medida, a ponto de não deixar outra alternativa aos desvalidos que não seja a sucumbência ante as forças persecutórias oficiais, as mesmas forças que são frouxas e lenientes quando se trata de punir os mais poderosos, para os quais as instâncias de controle parecem agir com o único afã de protegê-los, contando com o beneplácito de agentes incrustados na própria máquina estatal, encarregados de fazer o trabalho sujo.

É isso.

AFINAL, SOMOS TODOS FILHOS DE DEUS?

Nos dias presentes, quando testemunhamos alguns pecadores se assumindo como alvo das preferências divinas, convém indagar: somos todos filhos de Deus?

Sei que esse pode ser um tema controvertido se a essas reflexões for dado o alcance que ela não deve ter. E, por antever eventuais incompreensões é que me antecipo, dizendo que as minhas colocações não devem levar as pessoas a pensá-las numa dimensão maior do que o sentimento que me impulsiona a fazê-las, que é tão somente de instigar.

Para tentar responder à indagação do título desse artigo convém lembrar, à guisa de ilustração, de uma reunião do atual prefeito do Rio de Janeiro, com 200 pastores evangélicos, há meses ocorrida, na qual ele os orientou a usarem das estruturas do município para obtenção de vantagens para os fiéis – como exames e cirurgias prioritárias, dentre outras – e para as igrejas – isenção de impostos, por exemplo -, afinal, disse o bispo, temos que ser gratos a Deus por “ter nos colocado na Prefeitura”, e poder dar vantagens e prioridades ao povo evangélico.

Assim agindo, Sua Excelência deu a entender que teria feito um pacto com Deus, que, no seu entender, seria parceiro de ações que privilegiem uns em face de outros; como se ele tivesse sido eleito para governar em favor de uma minoria composta pelos escolhidos do Salvador, em detrimento da grande maioria.

Mesmo correndo o risco de ser mal-entendido, ainda assim, fruto da minha conhecida inquietação, resolvi expor algumas das minhas impressões a propósito da, digamos, paternidade celestial, instigado a fazê-lo, não só em razão das ações pouco republicanas de Sua Excelência o prefeito do Rio de Janeiro, mas, também, em face da postura de outros tantos viventes que, como o alcaide mencionado, se julgam escolhidos por Deus, ao tempo em que parecem negar a nós outros essa condição, conquanto, tal qual os outros cristãos que habitam a terra, também sejam igualmente pecadores.

A verdade é que, diante de alguns fatos e da postura de algumas pessoas que se julgam superiores espiritualmente, e, por isso, ungidas pelo Senhor – caso do prefeito do Rio de Janeiro e de outros viventes -, fico com a sensação de que há, sim, quem creia, por arrogância ou falta de descortino, que não somos todos filhos de Deus; que Deus, na visão dessas pretensiosas pessoas, já fez as suas escolhas, em detrimento dos demais mortais que habitam o universo. É como se, para ser filho de Deus, dependêssemos, apenas e tão somente, das escolhas arbitrárias do Pai, sem que fosse necessário que o escolhido fizesse por merecer a honraria, o privilégio da escolha.

Exemplos dessa natureza ocorrem nos campos de futebol. O jogador marca um gol e levanta as mãos para o céu em agradecimento a Deus, como se, dos 22 que estão em campo, apenas ele tivesse o privilégio de ser contemplado com a intromissão divina; é como se Deus estivesse com os olhos voltados para ele, e tão somente para ele, porque só ele, como filho do Homem, faz por merecer a dádiva, ainda que, como os demais jogadores, seja apenas mais um pecador.

Voltando ao Rio de Janeiro, lembro que o Prefeito, na famigerada reunião com vários representantes de igrejas evangélicas, conclamou os pares a aproveitarem o fato de Deus tê-lo colocado à frente da Prefeitura da Cidade Maravilhosa, para que fossem atendidos, prioritariamente, os fiéis das suas igrejas, pois, segundo ele, essa era uma oportunidade que Deus havia dado para que eles pudessem ser atendidos prioritariamente, bastando, para implementação das prioridades divinas, que falassem com Márcia, também escolhida por Deus, dentre tantos pecadores, cuja missão na terra seria favorecer as pessoas que eles entendiam ser filhas de Deus.

É dizer, traduzindo o episódio, os demais cidadãos que estão aguardando atendimento numa longa fila de espera – há meses, há anos -, mas que, por infelicidade, não tenham como contatar com Márcia, filha de Deus, não deveriam ser atendidos pelo sistema de saúde do município, pela singela razão de que, eles, diferentes dos fiéis das igrejas evangélicas, não são filhos de Deus, motivo pelo qual não lhes é dado o direito de furar a fila, de serem atendidos prioritariamente.

Na compreensão do Prefeito, Deus o colocou à frente da prefeitura exatamente para favorecer os filhos de Deus e, no mesmo passo, discriminar os que, na sua compreensão e segundo as bênçãos de Márcia, não têm o privilégio de fazer parte desse seleto grupo de ungidos.

O que Sua Excelência o prefeito talvez não saiba – e Deus, embora o tenha ungido, não lhe deu essa capacidade de discernimento – é que, segundo vaticinou Frei Beto, em artigo publicado em o Globo, “religiões que colocam seus interesses acima dos direitos da população não entendem a proposta do Evangelho” ( in o Uso do Estado pela Igreja).

É isso.

 

NÃO CUSTA NADA S0NHAR

Conheço, superficialmente, alguns países do primeiro mundo. E a sensação, ao chegar por lá, é que as instituições funcionam naturalmente, e a contento.

Todavia, pode ser apenas sensação mesmo, pois, em virtude de serem puro entretenimento, essas viagens não habilitam ninguém a falar com o necessário conhecimento sobre realidade do país visitado. Daí que, de rigor, não tenho parâmetros para fazer uma comparação consistente com o que acontece no Brasil. Sei, entrementes, fruto de informações, que há países onde as instituições funcionam de forma satisfatória, como deveria ser em qualquer lugar.

Conquanto não conheça o funcionamento das instituições alienígenas, posso dizer, por ciência própria, que as instituições por aqui não funcionam a contento, e muitas delas só vão na base do empurrão.

Os exemplos da ineficiência estatal no Brasil, nas suas mais diversas esferas, são tantos, que não teria como enumerá-los nesse espaço. Por isso, para ilustrar, vou me deter em apenas duas constatações que corroboram a nossa proverbial ineficiência, em face do mau funcionamento das instituições, muitas das quais, como anotei acima, só funcionam na base do empurrão, o que pode ser traduzido em qualquer tipo de vantagem pessoal ou patrimonial.

A primeira constatação nesse sentido condiz com a ineficiência do Poder Judiciário, como descrevo a seguir.

O cidadão procura o Poder Judiciário e apresenta uma demanda qualquer.

De rigor, se tudo funcionasse como se deseja e como preconiza a lei, o demandante deveria, tão somente, aguardar a decisão que lhe fosse favorável ou não; nesse sentido, tudo deveria fluir naturalmente. Formulado o pedido, portanto, ele não precisaria fazer mais nada senão aguardar que o processo fosse impulsionado até a decisão final.

Entretanto, não é o que ocorre, uma vez que os obstáculos são enormes, a configurar, algumas vezes, a negativa de acesso à jurisdição, estabelecendo um verdadeiro estado de desconforto constitucional.

Os empecilhos à entrega do provimento judicial vão desde o tratamento descortês, passando, outras vezes, pelo excesso de burocracia e, outras tantas, pela falta de empenho de quem tem o poder de decidir; óbices que, triste registrar, estimulam, com tudo que têm de trágico e danoso, o tráfico de influência e a exploração de prestígio, quando não o exercício arbitrário das próprias razões.
Nesse cenário, a sensação que todos têm é de que o Poder Judiciário não cumpre bem o seu desiderato. Daí que uma solução adjudicada é quase uma aventura da qual poucos se dispõem a participar, razão por que se tem estimulado as vias alternativas de composição de litígios.

A segunda constatação é, da mesma forma, inquietante, uma vez que também traduz o mau funcionamento das nossas instituições; aqui a solapar os nossos sonhos, a nos impingir desalento, como descrevo a seguir.

O Poder Legislativo, como sabido, tem como função precípua legislar. Mas, olhando os fatos de frente, parece que não é bem assim. Há como que um abismo entre as teorias em torno do funcionamento do poder legiferante e sua determinação para efetivamente cumprir o seu papel.

Explico.

O normal seria, na teoria, que, chegando uma proposta de reforma legislativa de iniciativa de outro Poder – reforma da previdência, por exemplo -, o Poder Legislativo fizesse naturalmente a sua parte, ou seja, examinasse a questão e sobre ela deliberasse, de forma a decidir o que fosse melhor para país. É dizer, no cenário por mim idealizado, cada legislador, no caso específico aqui tratado, deveria fazer a sua parte.

Simples assim?

Não é o que ocorre, inobstante, para o espanto dos que, assim como eu, imaginam que cada um deva apenas cumprir o seu papel institucional.

Em vez de o Poder Legislativo decidir acerca da questão a ele submetida, deliberando acerca do que seja melhor para o país – afinal os seus membros foram eleitos para isso -, o que vejo, no caso específico da reforma da previdência, são argumentos de alguns congressistas de que o autor da proposta de reforma, no caso o Poder Executivo, tem que construir uma base de apoio, tem que dialogar com os parlamentares, tem que conquistar os votos necessários à reforma, pois, caso contrário, ela não passa.

Como? E o interesse público, não conta? E se o Poder Executivo entender que não tem afago, não se vota a reforma? O que significa mesmo a construção de uma base de apoio? No que se traduz a afirmação de que o Executivo tem que conquistar os votos necessários à reforma? O que significa afagar os deputados? Como se dão essa conquista, esse afago, essa construção de uma base de apoio? Será que não causa desconforto moral aos eleitos para nos representar, condicionar o seu apoio aos afagos e às conquistas em face da ação do Executivo?

Indago: Eu, como magistrado, como homem público, enfim, preciso de algum afago, de ser conquistado para decidir? E se, porventura, recebo algum afago ou me submeto a alguma conquista, é possível traduzir em palavras o que significam, nesse caso, o afago e a conquista? E se eu não os receber, não decido? E se essa famigerada base parlamentar não for conquistada, como fica a reforma da previdência? Não passa? E o Brasil, como fica? E o brasileiro, não importa?

Quer dizer, então, que se essa base não for construída, se não houver mesuras aos deputados, se eles não forem aquinhoados com algum cargo para algum acólito no Executivo, a reforma, ainda que necessária ao país, vai para as calendas?

Confesso que não consigo compreender.

Dia desses ouvi um deputado dizendo que o Executivo começava a conversar com o Legislativo para construir uma base de apoio e que a reforma agora pode sair. Que conversa foi essa que tantas alvíssaras despertou em torno da reforma da previdência? Como eleitor, posso saber o teor dessa conversa?

Mas se dessa conversa não resultar nenhum entendimento que possa ser traduzido numa conquista, num afago, como ficam os treze milhões de desempregados? Só isso não seria suficientemente afagoso para conquistar, para sensibilizar um deputado? E se as emendas parlamentares não forem liberadas, também não haverá reforma?

Tento, mas, definitivamente, não entendo. Cá do meu canto, quiçá ingênuo, mesmo não compreendendo esse jogo político, porque não fui forjado nessa cultura, ainda espero que, mesmo sem afagos, sem conquistas, sem mesuras e sem trocas, a reforma da previdência, porque necessária, seja aprovada.

Essa reforma, dependendo do que dela resultar, pode ser, sim, um divisor de águas, estabelecendo uma necessária mudança de cultura, que, decerto, fará bem ao país.

E se, de repente, numa crise de sensatez, os nossos representantes concluírem que, com ou sem afagos, com ou sem conquistas, com ou sem a construção de uma base parlamentar, a reforma deva ser feita, pelo bem do país?

Poucos são os que acreditam nessa possibilidade.

Eu, do meu lado, ingênuo, mas otimista, ainda creio no discernimento dos nossos homens públicos. Afinal, como diz o poeta, sonhar não custa nada; não se paga para sonhar.

É isso.