DISCRICIONARIEDADE VINCULADA

marteloTem sido uma quase rotina: em quase todas as apelações a defesa questiona, prevalentemente, a (falta de) fundamentação da qual resultou a fixação da pena ou a fundamentação gestada com termos que retratam a próprio tipicidade, tipo “o réu agiu com violência e emprego de arma”, no caso do crime de roubo, por exemplo.
De nossa parte, no segundo grau, temos sido compelidos, em tributo à Carta Magna, a dar provimento às apelações, com a consequente modificação das penas, quase sempre em favor do acusado e em detrimento do interesse público e da sociedade, que, como já consignei em artigo anterior, deve, sim ser protegida pelos órgãos de controle; proteção que, inobstante, não se faz ao arrepio da lei, que não se faz a qualquer custo, vilipendiando, malferindo o direito dos réus.
Os magistrados, lamentável dizer – sem deslembrar das exceções -, no trabalho de individualização da pena, olvidam-se que a discricionariedade na aplicação da pena é vinculada e que essa operação mental só pode ser controlada, evitando-se que descambe para o arbítrio, que seria a negação do próprio Estado de Direito, se for devidamente fundamentada, por força do que contempla a nossa Carta Magna, como, de resto, é do conhecimento de todos os operadores do Direito.
Para nós – julgadores do segundo grau, em particular, e para sociedade em geral – essa é uma situação grave, porque dela resulta que as penas terminam por ser fixadas aquém da resposta penal que deveria ser infligida, em vista da quadra fática delineada, com o que se afronta o principio da proporcionalidade, sabido que a resposta penal deve ser a suficiente à reprovação do delito e, noutra giro, para a prevenção de novas infrações penais.
O mais grave, nessa constatação, é que o órgão acusador só excepcionalmente recorre das decisões de primeiro grau, ainda que sejam flagrantes os equívocos operados na dosimetria da pena, o que, evidentemente, impossibilita que, em sede recursal, a pena seja revista em desfavor do acusado, que, assim, vai se beneficiando, a mais não poder, da fundamentação descuidada na aplicação da pena, disse inferindo-se ofensa aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, como antecipei acima, pois as penas terminam ficando, quase sempre, em patamares inferiores ao recomendável em face da ação reprochável.
Disso decorre que, aplicada a pena, inferior a necessária à reprovação do delito, introduz-se no espírito da população, já calejada e descrente de tudo, à toda evidencia, um malsã sentimento de impunidade que, temos constatado, pode fomentar – e tem fomentado, aqui e algures – o exercício da justiça com as próprias mãos, própria das sociedades primitivas ou nas quais o Estado não se mostra merecedor da sua confiança.
O legislador, todos sabem, estabelece, abstratamente, os limites mínimos e máximos para os delitos. O juiz trafega dentro desses limites, elegendo o quantum ideal, valendo-se, claro, do seu livre convencimento. Mas não deve fazê-lo de forma arbitrária, desmotivadamente, como tem ocorrido, infelizmente, com regular frequência, impingindo às decisões máculas que devem ser expungidas no juízo recursal, em tributo mesmo ao Estado de Direito, e ante a certeza de que o réu, antes de ser objeto, é sujeito de direito, ou de que se as coisas têm preço, o ser humano, ainda que acusado da prática de um crime, tem dignidade, e sob essa perspectiva deve ser tratado.
O juiz, conquanto tenha uma margem de liberdade para fixação da pena ao autor de um crime, está preso, além dos parâmetros estabelecidos no preceito secundário do tipo penal malferido, à vinculação da sua decisão, sabido que, em face da individualização judiciária da sanção penal, está-se diante de uma discricionariedade que é vinculada (Luiz Luisi).
É dizer: o juiz não trafega entre o mínimo e o máximo da pena de acordo com seu bom ou mau humor, de acordo com os seus sentimentos pessoais, com a sua formação moral, com as suas pré-compreensões, com os valores que eventualmente tenham sido incorporados em sua personalidade. Não. O juiz, longe disso, está vinculado a uma obrigação que não comporta tergiversação, isto é, tem que motivar a sua decisão, tem que dizer porque decidiu-se pela pena além do mínimo legal ou porque decidiu-se, no mesmo passo, por regime mais gravoso para início de cumprimento da pena.
O juiz, todos sabem, ou deveriam saber e lembrar, não pode fixar uma pena além do mínimo legal, um dia sequer, ainda que o faça dentro dos limites mínimo e máximo fixados pelo legislador, se não o fizer motivadamente, afinal, “o estabelecimento da sanção penal é uma operação lógica pautada pelo principio da individualização da pena e do dever de motivação das decisões judiciais.” (STJ. HC 73470)
Essa é uma lição elementar que todos já tiveram mas que muitos se esquecem quando se decidem pela aplicação da pena, razão pela qual, repito, temos modificado tantas decisões, sempre em favor do acusado, sobretudo, repito, em face de os recursos serem manejados, quase sempre, pela defesa, a impedir as revisões das decisões em favor da sociedade, em face do impeditivo do ne reformatio in pejus.
Ainda que admitamos, com sói ocorrer, o caráter criador das decisões judiciais, coeficiente criador muitas vezes até irracional, não se pode deslembrar, ainda o que o faço à exaustão, do caráter vinculado da criatividade do juiz, que não pode, como se fosse num jogo de dados, decidir acerca da pena a ser aplicada, a qual, muito ao contrário, deve ser, sempre, concebida à luz do caso concreto, atento o togado, ademais, às suas singularidades.
A força argumentativa de uma decisão penal condenatória deve ir além da força criadora do Poder Legislativo (individualização legislativa), que fixa os parâmetros, que traçam os contornos, que fixa os mínimos e máximos, mas que não desobriga o julgador, sob qualquer perspectiva, de argumentar, fundamentadamente, as razões pelas quais fixou a pena nesse ou naquele quantum, decorrência lógica da vinculação da sua decisão aos preceitos legais, com realce para a Constituição Federal, que exige, como sabemos, a fundamentação de todas as decisões judiciais, a partir da qual o réu poderá, numa outra perspectiva, exercer com maior amplitude a sua defesa.
O tipo penal delineia os parâmetros. Mas esses parâmetros, isoladamente, não são um passaporte para que o juiz fixe a pena sem qualquer fundamentação, à luz tão somente de suas intimas convicções, com frases do tipo “o crime é grave exige resposta consentânea do estado” ou do tipo “o réu almejava com o crime o lucro fácil”, que, de rigor não dizem nada, ou melhor, apenas traduzem o que já contemplado no tipo penal, daí que o magistrado, ao reverso, deve, ir além, examinando, com o máximo e inexcedível desvelo, todos os elementos que digam respeito ao fato, para, só então, em face das diretrizes legais (cf. artigo 59 do CP), de forma justa e fundamentada, fixar a reprimenda que seja necessária e suficiente para reprovação do crime, estando, nesse sentido, desautorizado a valer-se de expressões “vagas, genéricas, desprovidas de fundamentação objetiva para justificar a exasperação” (STJ, HC 81949), como tem ocorrido, repetidas vezes, lamentavelmente.

Não se deve iludir o povo com falsas pregações

imagesTodos têm conhecimento das tentativas de flexibilização do Estatuto do Desarmamento que estão em curso no Congresso Nacional, sob o argumento, dentre outros, de que, em face do quadro de violência que se descortina sob os nossos olhos, o prudente, o correto mesmo é armar a população para que ela, pelos seus próprios meios, cuide de sua defesa, o que, adianto, é um rematado equívoco, como demonstrarei a seguir, o fazendo apenas sob uma perspectiva, já que é inviável, num pequeno espaço, esgrimir todas as razões pelas quais entendo que não se deva armar a população.

Antes convém anotar que nos Estados Unidos, maior democracia do mundo, país onde as desigualdades sociais são infinitamente inferiores ao Brasil e onde o Estado se faz presente na vida do cidadão com muito mais proficiência, o presidente Barack Obama lidera um movimento, no seu último ano de governo, visando exatamente o oposto do que se pretende no Brasil, ou seja, ampliar ainda mais o controle sobre a venda de armas.

O controle, no caso americano, busca, precipuamente, a ampliação das exigências de licença para vendedores e maiores exigências para os compradores, o que pode parecer, numa primeira análise, um contra-senso, num país cuja Constituição garante a todos os cidadãos o direito de ter armas.

Mas eu antecipei acima que armar a população, desde a minha percepção, fruto da minha longa experiência na área criminal, quer como promotor de justiça, quer como magistrado, não é o caminho, não é a panacéia que alguns oportunistas tentam vender aos descrentes e ávidos pela solução mágica dos seus problemas, sobretudo no que diz respeito à violência.

A verdade é que o cidadão armado pode, até, se sentir confortável psicologicamente, imaginando poder, estando de posse de uma arma de fogo, reagir com eficácia em face de uma agressão iminente ou atual a bem jurídico seu ou de outrem, o que, desde o meu ponto de observação, é uma visão equivocada, de quem conhece minimamente os abalos psicológicos que decorrem de um quadro dessa envergadura.

Explico.

Quando se trata de criminalidade, de violência, enfim, há alguns aspectos – não exaustivamente esgrimidos nessas breves reflexões – que não podem ser descurados quando se projeta, por exemplo, a perspectiva de flexibilizar o uso de arma de fogo, daí a minha convicção de que é falsa a pregação de que, estando armado, tal qual o meliante, o cidadão de bem terá reais condições de por si só enfrentar a violência, suprindo, assim, a omissão do Estado.

As coisas não são tão simples assim. Quando se busca analisar questões desse jaez, não se pode perder de vista aspectos relevantes que estão em seu entorno, questões que subjazem e que são propositadamente esquecidas, mas que não podem ser abespinhadas, porque vão muito além dos interesses puramente comerciais.

É que, diferente do assaltante, para destacar o crime (roubo) que mais nos aflige no dia a dia, nenhum cidadão de bem sai de casa disposto a matar ou morrer; e isso faz toda a diferença no momento da ação e da reação.

Nos corações e mentes do cidadão de bem, daquele que sai, por exemplo, para levar seu filho à escola, não está sedimentado o sentimento de defesa ou de ataque, para os quais devemos estar preparados psicologicamente. É como, guardadas as particularidades, colocar um soldado no campo de batalha sem ter sido antes treinado para a guerra.

É bobagem, falácia, engodo, irresponsabilidade armar a população para uma guerra para a qual ela não está preparada.

Não é dessa forma, definitivamente, que se enfrenta a violência.

É preciso parar de enganar as pessoas.

Armar a população, definitivamente, não é a solução. É muito bom para o comércio de armas. Mas é péssimo para o cidadão, que, mais uma vez, está-se deixando levar por uma propaganda enganosa, suscetível que está em face da violência que bate à sua porta.

É necessário ter presente que quem sai para assaltar, com emprego de arma fogo, por exemplo, o faz disposto a matar ou morrer, o que, convenhamos, é muito, mas muito diferente mesmo, de quem sai para trabalhar, para levar a mãe ou o pai ao médico ou o filho para escola.

Esse estado psicológico, não nos iludamos, faz toda diferença. Por isso é relevante que se pense essas questões antes de se liberar o uso de arma.

Nenhum de nós, como regra, está preparado para reagir a um assalto, por isso a quase totalidade dos que reagem sucumbe.
Definitivamente, quem tem que se armar contra o crime não é o cidadão. Quem deve se arma e combater a criminalidade é o Estado. Amar a população é o mesmo que iludi-la, transferir a ela uma responsabilidade que não é sua.

Experimente, estando armado, a reagir a um assalto. Enquanto tendemos a nos acovardar, diante de um criminoso, também armado, mas desenvolto porque preparado psicologicamente para o embate, ele, de seu turno, tende a agir, como sói ocorrer, com frieza e discernimento diante da situação.

É claro que, na população, há exceções. Há, sim, os que estão preparados para o exercício da autodefesa. Mas são exceções que confirmam a regra.

Por tudo isso, armar a população é um despautério, uma irresponsabilidade. É, mais uma vez, iludi-la, dando a ela a falsa percepção de poder exercer a sua defesa física em face da criminalidade, o que só ocorre excepcionalmente, daí o sentido da obrigação afeta ao Estado de cuidar da nossa integridade física.

É preciso assumir posições com clareza

tjmaUma das maiores dificuldades que vislumbro nas relações que travamos com o semelhante, sejam colegas, amigos, filhos ou mesmo consorte, são as incompreensões, a nossa incapacidade de compreender e de ser compreendidos.

Nesse cenário, não é rara uma desinteligência em face de uma incompreensão, que pode, dependendo da relevância, levar a relação ao paroxismo, disso resultando a reafirmação do óbvio, ou seja, de que, nas nossas relações precisamos ser tolerantes e compreensíveis.

A verdade é que, fácil constatar, as pessoas não conseguem, definitivamente, compreender as outras – por má-fé, maldade ou incapacidade mesmo, incapacidade que, desde o meu olhar, é muito mais significativa quando se tratam das relações que se travam no âmbito das corporações, porque nelas parece não existir predisposição para a compreensão.

Mas as incompreensões, nessa perspectiva, são, até, irrelevantes, se levarmos em conta que, nessas mesmas agremiações, ao lado delas (das incompreensões), competindo com a mesma tenacidade, viceja, com efeitos muito mais danosos, o mais deletério e nefasto de todos os sentimentos que é a inveja, sentimento menor que, claro, só impregna a alma despossuída de amor e de senso de companheirismo, mas que não é objeto dessas reflexões, pois que sobre ela já refleti em outras oportunidades.

Todavia não custa reafirmar, por ser oportuno, que a incompreensão, desde o meu campo de observação, decorre da cegueira de algumas pessoas, exatamente porque impregnadas desse sentimento menor e danoso chamado inveja, que tantos malefícios trazem às relações e ao desenvolvimento dos próprios trabalhos dos que se predispõem a entrar nessa luta fratricida de disputa de egos.

Mas eu dizia que as pessoas têm uma proverbial “incapacidade” de compreender o semelhante, cuja incompreensão, muitas vezes, decorre mesmo das tentativas do próprio interlocutor de dificultar o entendimento, por interesses muitas vezes inconfessáveis, como se faz, por exemplo, no mundo da política, quando se diz uma coisa pretendendo dizer outra, exatamente para dificultar a compreensão, para não assumir compromisso, para não ser cobrado depois.

O certo e recerto é que, nas relações que desenvolvemos com o semelhante em sociedade, o ideal mesmo era que não se tergiversasse, que se falasse às claras, sem titubeio, sem meias palavras, objetivamente, claramente, de modo que todos entendessem a mensagem que se pretende seja assimilada.

Se é verdade, como antecipei algures, que temos dificuldades enormes de compreender o semelhante – e aqui me refiro aos que não fazem do subterfúgio uma arma -, maiores serão as dificuldades se o semelhante é daqueles de personalidade marcadamente dissimulada, que não dizem coisa com coisa, que afirmam negando e que negam afirmando, o fazendo por via obliqua, sinuosamente, sem expor com clareza as suas ideais, objetivando exatamente confundir, dificultar a absorção da mensagem, com receio do compromisso, de empenhar a palavra.

Só para ilustrar, lembro que, antes da desfecho da revolução de 30, Getúlio Vargas, aluno dileto da escola do caudilho Borges de Medeiros, dissimuladamente, fazia juras de fidelidade eterna a Washington Luis, então presidente da República, de quem tinha sido ministro da fazenda, enquanto que João Neves, por sua determinação, por trás, prosseguia costurando a aproximação com Minas Gerais, dificultando, assim, a real compreensão de sua posição política, que só terminou por se revelar com o desfecho da Revolução que o levou à presidência da República, cumprindo destacar que, quando insinuado o flerte com Minas, João Neves se limitou a dizer que o Rio Grande tinha olhos para todos os lados, à direita e à esquerda, como o fazem os jacarés.

Quando sondado por Chatô sobre a possibilidade de um candidato do Rio Grande do Sul, terceira força eleitoral do país à época, para se contrapor ao candidato de Washington Luis, no caso Júlio Prestes, Getúlio encarregou o oficial de gabinete a providenciar uma resposta imediata. Mas advertiu: era preciso mostrar-se receptivo à ideia de um acordo com Minas, para não denotar desprezo pelo caso, mas também seria temerário demonstrar entusiasmo excessivo, afim de não transparecer avidez pessoal. É dizer: era preciso, segundo orientação de Getúlio, não se fazer entender, não ser compreendido, pois, afinal, no mundo da política, o que, muitas vezes, é até justificável, é assim mesmo que as coisas funcionam.

Mas no mundo do simples mortais as coisas deveriam fluir de outra forma. É preciso ter clareza nas ideais. É preciso ter ciência que nas relações pessoais não se pode viver de tergiversações, de aparências, a partir de frases dúbias, feitas para não ser entendidas, pois isso pode denotar uma esperteza que não se coaduna com o que se espera nas relações das pessoas que se amam e que se prezam.

É chato, é horrível, enfadonho, desgastante, a gente conviver com o semelhante sem perceber nele clareza de posições, objetividade nas colocações, firmeza e determinação, capacidade, enfim, de se fazer compreender.
Tenho procurado ser claro, objetivo e direto nas minhas reflexões. O mundo já não comporta tanta dissimulação. Ninguém gosta do dissimulado, do que não tem posição, de quem não se pode crer no que diz.

Como um ouriço

 

Nas relações sociais e na vida, não se deve agir como faz o ouriço, que se fecha, expondo apenas os seus espinhos, como a se defender de um ataque iminente, conquanto eu tenha que admitir que, nos dias presentes, vivemos em estado de defesa quase permanente, sempre na expectativa de que possamos ser vítimas de um assalto, de uma vendeta ou de qualquer outra maldade, dessas que permeiam a vida em sociedade e das quais, mais dia, menos dia, poderemos ser alvos.

Ainda assim, apesar de tudo o que tenho testemunhado, compreendo que, nas relações com as pessoas que amamos, que nos são caras, que representam muito para nós, e que estão, por isso mesmo, muito próximas, não vale a pena apontar os espinhos na direção delas, numa patética e desnecessária demonstração de defesa, como se as pessoas que estão próximas fossem o próprio inimigo, a justificar um estado de alerta permanente.

Nas nossas relações com as pessoas que amamos e que são a nossa própria razão de viver, é preciso abrir a guarda, se expor, se mostrar por inteiro, exibir o lado bom, sem receio, sem peias, sem enleio, sem rodeios, vez que as amarras e os obstáculos opostos só dificultam o relacionamento.

Logo, é necessário que nas nossas relações familiares, por exemplo, nos revelemos, sem tergiversar, para que as pessoas da nossa mais estreita relação saibam, definitivamente, com quem estão lidando, já que não é fácil para as relações, sobretudo as familiares, as surpresas do caráter, do bom ou mau humor, uma novidade a cada dia, uma inusitada manifestação, um reação diversa ou adversa, uma ação súbita, um rompante.

Nós não temos o direito – ou, no mínimo, devemos evitar, na medida do possível – de surpreender, com ações e/ou reações heterodoxas, as pessoas que amamos, que nos cercam, que estão em nosso entorno, pois um rompante, uma surpresa negativa ou uma conduta inusitada dificulta a convivência com o semelhante, como sói ocorrer.

Nas minhas relações pessoais – e profissionais, até -, me revelo por inteiro, me entrego, me mostro, às escâncaras, sem titubeios e sem disfarce, procurando preservar apenas e tão somente o campo restrito das minhas intimidades, sobre as quais mantenho um rígido, um rigoroso e necessário controle, não permitindo, sob qualquer pretexto, que sobre elas se faça qualquer incursão; incursão que só permito das pessoas da minha mais absoluta e restrita intimidade. É dizer: minha mulher e meus filhos.

Nesse diapasão, posso afirmar que todos que convivem comigo sabem quem sou e não correm o perigo de serem flagrados desprevenidos em face de alguma ação – ou reação – inusitada vinda de mim; nesse campo, sou absolutamente previsível, como, de resto, imagino ser previsível nas minhas atividades profissionais.

Nas minhas relações pessoais e profissionais, não surpreendo, em face do humor ou de alguma ação inusitada, uma vez que meu estado de humor é sempre o mesmo, pois sou incapaz de mudar ao sabor das circunstâncias. Não sou do tipo que dorme bem humorado e acorda, como dizem os mais antigos, “com o diabo no couro”.

É preciso ter presente que não é fácil conviver com um plurifacial, com pessoas de múltiplas reações, de ações inopinadas, marcadas pelo enigma, pela dissimulação, pela intempestividade, pelas surpresas de caráter.

Tenho pavor das pessoas que usam de subterfúgios, que gostam de atalhos, que não olham de frente, que surpreendem a cada momento, que negam afirmando e afirmam, negando, que não assumem compromissos, que vão na base do deixa a vida me levar.

Definitivamente, não sou dissimulado, não sei usar de evasivas, Só sei ser claro e objetivo, direto, sem rodeios e sem escusas que possam parecer covardia, de modo que as pessoas que convivem comigo sabem efetivamente com quem estão lidando.

Impressiona-me, causa-me até certa estranheza, estupefação mesmo, a conduta dos que vivem do embuste, da pantomima, do ludibrio, do engodo e da desfaçatez. Tenho sérias restrições aos que tentam parecer o que efetivamente não são, os que vivem em função do marketing pessoal e profissional, que pousam de honestos, conquanto tenham um histórico de deslizes que, muitas vezes, são do conhecimento público, mas continuam acobertados pelo manto de impunidade que os protegem.

Tenho aversão ao tipo que abraça, beija e deseja boa sorte, quando, na verdade, guarda no recôndito da alma uma porção de veneno destinado às pessoas que elegem como inimigas. Não existe nada mais intrigante do que conviver com pessoas que vivem da desfaçatez, que fazem da mentira uma arma, um instrumento para destruir os seus desafetos.

Tem sido quase uma obsessão as reflexões que faço em face das pessoas que pensam e agem com subterfúgios, malandramente, mentirosamente, nas quais não se pode acreditar, as quais, para o mesmo fato, dependendo das circunstâncias, apresentam versões diferentes.

Nada pior que o homem – seja ele público ou não – no qual ninguém acredita, que diz uma coisa e faz outra, que se fantasia de santo, mas vive de maquinação e engodo o tempo inteiro, buscando, incessantemente, destruir a qualquer preço os que elege como inimigo.

Tenho verdadeira ojeriza aos que não são capazes de reconhecer as virtudes do semelhante, que vivem à procura dos defeitos do congênere, na ânsia de desqualificá-lo. Ademais, entendo que aquele que não se mostra capaz de reconhecer as Tvirtudes do semelhante é porque reconhece, muito embora contrafeito, não ser possuidor dessas mesmas virtudes.

Imagino, cá com meus botões, que se alguém não é capaz de reconhecer os seus próprios erros, mas se mostra atilado quando tem que apontar os do semelhante, está fadado a permanecer neles e a repeti-los, efetivamente,

Para encerrar, um lembrete, tomado de empréstimo: “Quem não pratica a autocrítica está impossibilitado de aprender. Quem acha que tudo sabe não evolui. Quem não olha as lições da História está fadado a cometer os mesmos equívocos.” (Rodrigo Constantino, economista e presidente do Instituto Liberal).

 

Até onde o Poder Judiciário pode suportar a condição de protagonista?

 

Sabe-se que o Poder Judiciário, à frente o Supremo Tribunal Federal, tem desempenhado, nos últimos anos, um papel mais do que relevante na vida institucional brasileira. O STF, com efeito, em várias oportunidades, tem exercido um papel central em questões de interesse nacional, tendo agido, muitas vezes, em face da omissão do Poder Legislativo, fenômeno não se restringe ao Brasil, pois, noutras partes do mundo, em várias nações democráticas, o Poder Judiciário também tem se destacado em razão de questões políticas relevantes, decorrentes de temas controvertidos.
Com as novas delações, especialmente dos diretores da Andrade Gutierrez, que prometem retroceder até a inacabada ferrovia Norte/Sul, passando por Belo Monte, Angra III e estádios da Copa do Mundo, a tendência natural é que mais e mais congressistas sejam denunciados, do que resultará inevitável fragilização (ainda mais) daquele que, entre os poderes da República, é o mais representativo, sem deslembrar as agruras pelas quais passa o Poder Executivo, disso resultando o inevitável e consequente fortalecimento do Poder Judiciário, que, nesse cenário, verá se fortalecer, ainda mais, o seu protagonismo.
Diante dessa perspectiva, fico a perscrutar, cá com meus botões, diante do que tenho testemunhado, se o Poder Judiciário estaria preparado para essa missão, ou seja, para exercer um poder quase absoluto, em virtude da fragilidade dos demais poderes, cujos membros (do Poder Judiciário) não são eleitos e, na maioria das vezes, agem sem peias, sem amarras, como se não tivessem a quem prestar contas.
Fico me indagando, ademais, diante da quase inevitabilidade de o Poder Judiciário assumir tamanha relevância na vida nacional, o que isso representará para a nossa democracia, e se é possível dimensionar as consequências dessa plenitude de poder nas mãos dos magistrados, a considerar que nós, juízes, não somos eleitos, e que, como um dado complicador adicional, os desvios de conduta dos magistrados só raramente são apurados por quem deveria fazê-lo (sistemas de controle interno), apesar do CNJ que, nos últimos anos, parece estar passando por um lamentável e preocupante estado de letargia.
Questiono, ainda, se é recomendável dar poder quase absoluto a uma instituição na qual ainda há membros que não respeitam os limites da lei e que são capazes de, por exemplo, colocar em liberdade traficantes presos com toneladas de drogas, determinar saques de milhões de reais em face de instituições financeiras ou – pasmem! – de anular um processo em andamento, com sentença prolatada, para ficar apenas nos três exemplos que me ocorrem agora, sem qualquer receio ou escrúpulo, num plantão judicial pensado e criado para resolver problemas marcados pela urgência e excepcionalidade, em sede de liminar, com cognição rarefeita, exorbitando do poder,
Diante dessa triste e preocupante realidade, resta indagar: o que o fortalecimento do Poder Judiciário representa para os jurisdicionados que não têm poder de ingerência, cuja capacidade postulatória – quando não se lhe a nega a capacidade financeira – se materializa apenas e tão somente numa petição inicial, que pode, sim, diante da ação malsã dos que estão a serviço dos amigos e não do direito, nada representar?
Em face da indiscutível e reconhecida má conduta de alguns togados, que não hesitam em exorbitar o poder, como nos exemplos que acima citei, para dele se servir ou para servir aos seus protegidos ou protegidos dos amigos influentes, até aonde podemos chegar com tanto poder, sem abespinhar a nossa própria imagem e sem desgastar a instituição, que é uma das poucas que ainda tem alguma credibilidade?
E nós, do Poder Judiciário, diante das questões que coloco para reflexão, a considerar que não somos um exército de querubins, estamos preparados para ser o alvo das atenções, para ser vidraças, para nos expor, para ser eficazmente fiscalizados e denunciados, a considerar que a mesma crise moral que se abateu sobre o Poder Legislativo pode vir a se abater sobre a instituição, pelas ações – e omissões – pouco republicanas de alguns dos seus membros?
O que serão capazes de revelar os holofotes quando eles se voltarem, com sofreguidão e com mais intensidade, para o Poder Judiciário, se viermos a assumir, definitivamente, o papel de protagonistas, como vem assumindo a nossa Suprema Corte?
Em razão de tudo o que expus, cabe reproduzir aqui uma frase de Paulo Guedes, em editorial publicado no jornal o Globo, do dia 30 do corrente, para, a partir dela, prosseguir perscrutando. “O despertar do Poder Judiciário anuncia novos tempos”, afirmou o articulista.
Indago, preocupado, ante a iminência do despertar do Poder Judiciário para os novos tempos: esse Poder da República está preparado, definitivamente, para assumir um papel ainda mais destacado na história do nosso país, no momento em que uma crise moral, de proporções amazônicas, se abateu sobre as nossas instituições, e a considerar que nós mesmos, pelas ações descomprometidas de alguns, tendemos, da mesma forma, à fragilização, sobretudo se os nossos desvios de conduta forem colocados na ribalta?
Ficam as indagações para refletir. Eu, de minha parte, sou um pouco cético. Tenho a perturbadora sensação de que os episódios que citei acima, à guisa de exemplo, podem ser uma prática mais comum do que se imagina, lamentando que, nas instituições, as ações nefastas e irresponsáveis dos que não têm compromisso com a lei e com a moral, terminam por resvalar na sobre a correta maioria, que não trabalha para abespinhá-las, como o faz quem delas (das instituições) se servem apenas para defender os seus próprios interesses e os interesses dos que, sob os seus olhos, devam ser favorecidos, convindo anotar que não se condena quem defende os seus interesses ou de terceiros, mas os que os defendem usando a força do poder que têm sob as mãos para sobrepujar as leis, as mesmas que um dia jurou cumprir e fazer cumprir.

Despronúncia

tjmaEstou disponibilizando, no meu blog (joseluizalmeida.com), o inteiro teor do voto que apresentei em face do recurso em sentido estrito manejado por Shirliano Graciano de Oliveira, pronunciado como um dos acusados pela prática do crime de homicídio contra o blogueiro Décio Sá.

 

SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL
SESSÃO DO DIA 18 DE NOVEMBRO DE 2015.
Nº ÚNICO: 0020550-43.2012.8.10.0001
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 010286/2014 – SÃO LUÍS (MA)
RECORRENTE : Shirliano Graciano de Oliveira
ADVOGADO : José Berilo de Freitas Leite Filho
RECORRIDO : Ministério Público Estadual
INCIDÊNCIA PENAL : Art. 121, § 2º, I, IV e V, c/c art. 29, e art. 288, todos do CPB
RELATOR : Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

RELATÓRIO – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Trata-se de recurso em sentido estrito interposto por Shirliano Graciano de Oliveira, vulgo “Balão”, através do advogado José Berilo de Freitas Leite Filho, irresignado com a decisão oriunda da 1ª Vara do Tribunal do Júri do termo judiciário de São Luís, da comarca da Ilha de São Luís/MA, que o pronunciou para ser submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri Popular, pela prática delitiva encartada no art. 121, § 2º, incisos I, IV e V, c/c art. 29, e art. 288, todos do Código Penal .
A persecução criminal teve início com o inquérito policial nº 022/2012 – DHC e, com base em elementos colhidos nessa fase pré-processual, o Ministério Público do Estado do Maranhão ofertou denúncia em desfavor do ora recorrente, juntamente com os corréus Jhonathan de Sousa Silva, Marcos Bruno Silva de Oliveira, vulgo “Amaral Negão” , Gláucio Alencar Pontes Carvalho , José de Alencar Miranda Carvalho, vulgo “Miranda”, Alcides Nunes da Silva, Joel Durans Medeiros, José Raimundo Sales Chaves Júnior, vulgo “Júnior Bolinha”, Fábio Aurélio Saraiva Silva, vulgo “Capitão Fábio” ou “Fábio Capita”, Fábio Aurélio do Lago e Silva, vulgo “Buchecha”, Elker Farias Veloso e Ronaldo Henrique Santos Ribeiro, vulgo “Advogado Ronaldo” .
Da inicial acusatória de fls. 03/54, extraio os seguintes excertos, in litteris:
[…]
DOS FATOS
[…] no dia 23/04/2012, por volta das 22h35min, chegou ao conhecimento da Autoridade Policial plantonista, do Plantão Central da Polícia Civil na Beira-Mar (PCBM), que por volta das 22h30min, aproximadamente, ocorrera um crime de homicídio no interior do Bar denominado “Estrela do Mar”, localizado na Avenida Litorânea, nesta Capital.
Investigações preliminares, realizadas no local do crime, deram conta que o jornalista e blogueiro ALDENÍSIO DÉCIO LEITE DE SÁ, conhecido como DÉCIO SÁ, foi executado por um indivíduo até então desconhecido e que citado executor depois identificado como Jhonathan, após consumação do ilícito, evadiu-se do local do crime em uma motocicleta, juntamente com um comparsa, que lhe aguardava num veículo, em via pública, no lado oposto ao bar.
[…].
Após descrever como se deu o início da persecução penal e apontar as provas periciais, bem como a materialidade delitiva, o Ministério Público individualizou a conduta do recorrente Shirliano Graciano de Oliveira, nos seguintes termos, in verbis: (fls. 45/47).
[…]
Citado logo no início das investigações como sendo a pessoa que teria conhecimento da trama de morte arquitetada por FÁBIO BRASIL com apoio financeiro de PACOVAN, e transmitiu sua versão para este episódio para os indiciados GLÁUCIO, ALCIDES e DURANS, na reunião que ocorrera no restaurante O BERRO, localizado no Olho d’água, no final do mês de agosto ou início de setembro do ano passado (2011).
Também citado nas mortes de FÁBIO BRASIL e de DÉCIO SÁ como sendo a pessoa responsável em trazer do interior do Pará criminosos para auxiliarem na execução destas pessoas.
Fato relevante e que merece ser destacado é que um dos telefones apreendidos em poder do JONATHAN, verificou-se através do IMEI do aparelho que no dia da morte do DÉCIO SÁ, ou seja, 23/04/2012, o citado aparelho que então era utilizado pelo executor JONATHAN, momentos antes do crime, e funcionando nas proximidades do local do fato, entra em contato com o ramal de nº […], o qual, segundo o cadastro da operadora, pertenceria a ADRIANA SILVA, que “coincidentemente” é companheira do indiciado SHIRLANIO OLIVEIRA, v. BALÃO.
Com a prisão temporária decretada por este Juízo, atualmente encontra-se foragido e diligências continuam a ser realizadas […].
Ressalta-se ter o ora acusado laços de parentesco com outro acusado, o nacional MARCOS BRUNO, seu cunhado, e ao que tudo indica, de acordo com as características físicas, teria sido ele o piloto da moto responsável por conduzir o executor JONATHAN, antes e depois do crime.
Ao contrário do que diz em seu depoimento, o indiciado BUCHECHA nega conhecer o indiciado BALÃO. Porém a primeira quebra de dados, implementada logo no início das investigações, demonstram que os dois se conhecem e se falam por telefone, sendo o ramal utilizado por BUCHECHA correspondendo ao número (98) 8170-2737 e o utilizado por BALÃO correspondendo ao ramal de número (98) 8194-0944.
A mentira latente possui apenas uma motivação: esconder a participação de ambos nos ilícitos cometidos pela organização criminosa.
[…].
(Sic)
Laudo de exame cadavérico da vítima Aldenísio Décio Leite de Sá (fls. 393 – autos principais), acompanhado de 06 (seis) tomadas fotográficas (fls. 394/399 – autos principais).
A denúncia foi recebida em 28 de agosto de 2012 (fls. 1992/1993 – autos principais).
O recorrente foi citado por edital, constituindo para a sua defesa, o advogado Altair Fonseca Pinto, OAB/MA 6496.
Infere-se dos autos que, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, foram ouvidas 32 (trinta e duas) testemunhas arroladas pelo órgão ministerial de 1º grau, a saber : Silvana Cardoso da Cruz (fls. 63), Lília Maria da Silva Gomes (fls. 64), Wesylla Frankiliana Silva Oliveira (fls. 65), Maria Lúcia Oliveira Gomes (fls. 73), Plínio Sousa França (fls. 74), Jonas Salomão Chaib (fls. 75), João Batista Silva de Jesus (fls. 76), Paulo Rocha Sousa (fls. 77), Adonivaldo Nunes Silva (fls. 78), Itevaldo Ribamar Soares Costa Jr. (fls. 83), Marcelo Augusto Gomes Vieira (fls. 84), Hostílio Caio Pereira da Costa (fls. 85), Marco Aurélio Nunes D’Eça (fls. 86), Luís Pablo Conceição Almeida (fls. 87), Fábio Rogério Barbosa Câmara (fls. 88), Airton Martins Moroe (fls. 89), Josival Cavalcanti da Silva, vulgo “Pacovan” (fls. 99), Mariana Amorim Mualem (fls. 100), Adriana Silva de Oliveira (fls. 101), Laércio Carlos Tavares Matos (fls. 102), Lucivalda Martins Carvalho (fls. 103), Kiane Fernandes Costa (fls. 104), Luis Jorge Santos (fls. 108), Aristides Milhomem de Sousa (fls. 109), Hilquias Araújo Caldas (fls. 110), Vagno Pereira, vulgo “Banga” (fls. 111), Adriano do Lago e Silva (fls. 112), Telmo Mendes da Silva Junior (fls. 113), Fernando da Silva (fls. 114), Pedro Roberto Meireles Lopes (fls. 115), Sebastiana Cantanhede Baldez (fls. 121) e José de Ribamar Rodrigues Júnior (fls. 122).
Foram também ouvidas 13 (treze) testemunhas, indicadas pelas defesas dos denunciados: Diógenes Cleon Barbosa Azevedo (fls. 127), Paulo Henrique Costa de Figueiredo (fls. 128), Luís Fernando Fonseca Soares (fls. 129), Maria de Lourdes Souza Silva (fls. 130), Eduardo Lira Correa (fls. 131), Irazilda de Jesus Lago Marques (fls. 135), Raimundo Nonato Vieira (fls. 136), José Gonçalo Pereira Mendes (fls. 137), Priscila Neiman Bogea (fls. 138), Silvana Belfort Costa (fls. 139), Paulo César Gama Ferreira (fls. 140), Raimundo Nonato Soares Cutrim (fls. 146) e Fernanda Teixeira Saldanha (fls. 147).
Todos os depoimentos acima foram colhidos através do sistema de gravação audiovisual, cujas mídias estão anexas às fls. 66, 90, 116 e 148.
Shirliano Graciano de Oliveira não foi interrogado, eis que desde o início da persecução, encontra-se foragido.
Apresentadas as alegações finais, sobreveio a decisão de fls. 203/228, que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na denúncia, e pronunciou o recorrente para que seja submetido a julgamento perante seus pares, pela prática, em tese, dos crimes tipificados no art. 121, § 2º, incisos I, IV e V, c/c art. 29, e art. 288, todos do Código Penal.
Foi mantida a prisão preventiva do recorrente Shirliano Graciano de Oliveira.
Consoante se vê, às fls. 229, o advogado do recorrente foi intimado da decisão de pronúncia em 30 de agosto de 2013.
Nos termos do art. 392, § 1º, do CPP , foi expedido edital de intimação ao recorrente (fls. 235), com prazo de 90 (noventa) dias, publicado no Diário da Justiça Eletrônico, no dia 07/10/2013 (fls. 238/239).
Inconformada, a defesa de Shirliano Graciano de Oliveira protocolou, em 10/02/2014 (fls. 247), o presente recurso em sentido estrito, em cujas razões, inclusas às fls. 249/264, requer a anulação da decisão de pronúncia, por violação ao art. 413, § 1º, do CPP e art. 93, IX, da CF/88 e, subsidiariamente, a despronúncia, nos termos do art. 414, do CPP .
Substabelecimento de procuração, às fls. 267, ao advogado José Berilo de Freitas Leite Filho, OAB/MA 8481.
Os autos foram encaminhados a este eg. Tribunal de Justiça, às fls. 268.
Termo de distribuição, às fls. 269.
Entendendo que o presente feito era prevento ao habeas corpus nº 05485/2013 , determinei, às fls. 276/277, que fossem observadas as regras de competência e distribuição.
A Coordenadoria de Distribuição, por sua vez, certificou, às fls. 278, que a sucessora do desembargador aposentado Raimundo Nonato de Souza era a desembargadora Angela Maria Moraes Salazar. Todavia, diante da permuta desta com a desembargadora Raimunda Santos Bezerra , encaminhou os autos ao Gabinete da Vice-Presidência, nos termos do art. 27, IV, do RITJMA .
Decisão da Vice-Presidência, às fls. 279/282.
Novamente conclusos à minha relatoria, entendi, às fls. 284/291, que, inobstante sua permuta, a desembargadora Angela Maria Moraes Salazar permanecia vinculada aos feitos já distribuídos, assim como os conexos, ainda que distribuídos a posteriori, cabendo, somente a ela, se o caso, suscitar o competente conflito negativo de competência.
Entendendo falecer de competência para a relatoria do presente recurso, a desembargadora Angela Maria Moraes Salazar suscitou, em 27/05/2014 (fls. 298/301), o “conflito negativo de jurisdição” (Sic – fls. 301).
O incidente foi distribuído ao desembargador Antonio Fernando Bayma Araújo (fls. 303) que, em despacho datado de 07/07/2014 (fls. 307), deu vista dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, que, por sua vez, emitiu, em 17/07/2014, o parecer de fls. 310/314, pela procedência do conflito.
Em sessão realizada no dia 22/08/2014, as Câmaras Criminais Reunidas conheceram do conflito, a fim de declarar competente a Segunda Câmara Criminal para processar e julgar este recurso em sentido estrito, bem como este signatário, o relator .
Certidão de trânsito em julgado do acórdão, às fls. 330.
Definida a competência e finalmente conclusos em 06/10/2014 (fls. 333v.), determinei, às fls. 334, o retorno dos autos ao juízo de 1º grau, ante a ausência de contrarrazões recursais.
Contrarrazões ministeriais, às fls. 339/351, pugnando pela manutenção da decisão de pronúncia, em sua totalidade, por entender que as provas colhidas no inquérito policial e na fase judicial são indícios suficientes da participação ativa do recorrente nos delitos imputados na inicial acusatória.
Após o juízo de retratação negativo (fls. 352/354), os autos foram remetidos a esta Corte.
A Procuradoria Geral de Justiça, em parecer da lavra do procurador Joaquim Henrique de Carvalho Lobato (fls. 360/367), opina pelo conhecimento e improvimento do recurso, com a manutenção da decisão de pronúncia.
Ressalta a PGJ que o objetivo da pronúncia é tão somente submeter o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri, não se fazendo necessária, nessa fase, prova plena da culpabilidade, bastando, segundo o art. 413, do CPP, a presença dos indícios de autoria e prova da materialidade delitiva.
Quanto à materialidade, demonstrada está pelo laudo de exame cadavérico constante às fls. 393/399, dos autos principais.
Em relação aos indícios de autoria, aponta a PGJ, em essência, que:
I – pesam em desfavor do recorrente, “as acusações de que seria o responsável por trazer assassinos do Pará para auxiliar na execução dos inimigos da quadrilha”, conforme registrado no depoimento judicial do investigador de polícia Joel Durans, que esteve com o recorrente em um restaurante, entre os meses de agosto e setembro de 2011, ocasião em que narrou uma trama para assassinar o acusado Gláucio Alencar, arquitetada por Fábio Brasil, posteriormente morto “em um crime que, ao que tudo indica, foi praticado pela mesma quadrilha que assassinou o jornalista Décio Sá” (fls. 364);
II – outro indício de autoria estaria no telefone apreendido com o assassino confesso Jhonathan de Sousa Silva, uma vez que “constava uma ligação feita momentos antes e nas proximidades do crime para o telefone de Adriana Silva, então companheira do ora recorrente” (fls. 364); e
III – embora o acusado Fábio Aurélio do Lago e Silva, vulgo “Buchecha”, tenha negado conhecer o ora recorrente, “as primeiras quebras de dados durante as investigações criminais demonstraram que os dois não só se conheciam como se falavam por telefone constantemente” (fls. 364).
É o relatório.

VOTO – O Sr. Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida (relator): Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do presente recurso em sentido estrito, eis que atendidos os pressupostos objetivos e subjetivos.
Conforme relatado, o réu Shirliano Graciano de Oliveira, vulgo “Balão”, foi pronunciado pelo juízo de direito da 1ª Vara do Tribunal do Júri do termo judiciário de São Luís/MA, por formação de quadrilha e por participação no homicídio que vitimou o jornalista e blogueiro Aldenísio Leite Décio de Sá, fato ocorrido no dia 23/04/2012, no restaurante “Estrela do Mar”, localizado na Av. Litorânea, nesta Capital.
Irresignado, o acusado recorreu em sentido estrito, pleiteando a nulidade da decisão de pronúncia, por violação ao art. 413, § 1º, do CPP e art. 93, IX, da CF/88 e, subsidiariamente, a despronúncia, nos termos do art. 414, do CPP .
Antes de enfrentarmos os argumentos defensivos, algumas ponderações mostram-se necessárias, à guisa de premissas argumentativas para a presente análise.
1. Das premissas dogmáticas
1.1 Da natureza da decisão de pronúncia
É consabido que a decisão de pronúncia consubstancia-se num juízo de admissibilidade da acusação , com o qual se encerra a primeira fase do procedimento bifásico do júri, para, em seguida, submeter o réu a julgamento perante o juízo natural constitucionalmente estabelecido, o Tribunal do Júri Popular.
Nesta fase de cognição prelibatória, não custa reafirmar, basta ao magistrado convencer-se da existência do crime, e que haja indícios suficientes de autoria, cabendo ao Conselho de Sentença, na ocasião do julgamento em plenário, decidir, soberanamente, acerca da responsabilidade penal do acusado .
Sobre o tema, sublinham Eugênio Pacelli e Douglas Fischer que:
A pronúncia é a decisão pela qual o juízo monocrático (ainda na fase do denominado judicium accusationis) verifica a existência de um juízo de probabilidade – e não de certeza – acerca da autoria ou participação do delito e de provas suficientes acerca da materialidade.
Trata-se de uma decisão interlocutória mista, tendo como efeito o encerramento da fase procedimental delimitada, que ainda é passível de impugnação mediante recurso em sentido estrito .
Nesse diapasão, cito a doutrina de Aury Lopes Jr:
[…] A decisão de pronúncia marca o acolhimento provisório, por parte do juiz, da pretensão acusatória, determinando que o réu seja submetido ao julgamento do Tribunal do Júri. Preclusa a via recursal para impugnar a pronúncia, inicia-se a segunda fase (plenário). Trata-se de uma decisão interlocutória mista, não terminativa, que deve preencher os requisitos do art. 381 do CPP […] .
(Sem destaques nos originais)
Nesse norte, o Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. PRONÚNCIA. INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. INAPTIDÃO DA ARMA UTILIZADA NO DELITO QUE NÃO AFASTA A POSSIBILIDADE DE CONCLUSÃO NO SENTIDO DO ENVOLVIMENTO DO AGENTE. AUSÊNCIA DE VÍNCULO SUBJETIVO. REEXAME DE PROVA. SÚMULA N. 7 DO STJ. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI.
1. Como se sabe, a decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da pretensão acusatória, não sendo exigida certeza quanto à autoria do fato criminoso.
2. O Tribunal a quo afirmou a existência de indícios suficientes no tocante ao envolvimento do acusado no fato em julgamento, destacando, ademais, que para o reconhecimento da coautoria é irrelevante que o agente tenha, pessoalmente, desferido tiros contra as vítimas, bastando que se evidencie o liame subjetivo entre os participantes da tentativa de homicídio.
3. A revisão de tal entendimento, de modo a afirmar a ausência de indícios suficientes de autoria, exige o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, medida vedada na via especial.
4. O exame acerca da incidência do princípio da consunção do delito de porte de arma pelo de tentativa de homicídio encontra impedimento na competência absoluta do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida e os a eles conexos, nos termos da jurisprudência sedimentada do STJ.
5. Agravo regimental a que se nega provimento .
(Destaques não constam no original)
É de ver-se, portanto, que somente de forma excepcional é possível afastar a competência constitucional do júri, mediante um juízo de absoluta certeza da ocorrência de alguma excludente de ilicitude, v.g., ou diante da constatação de absoluta ausência de provas de autoria delitiva, ou mesmo inocorrência das qualificadoras.
Disso decorre que eventuais dúvidas acerca da autoria ou participação, na fase do judicium accusationis, não deve ensejar, necessariamente, a impronúncia, pois esta sede não é a adequada para dirimir tais controvérsias, consoante entendimento já cristalizado na jurisprudência:
[…] 3. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que a “decisão de pronúncia é mero juízo de admissibilidade da acusação, motivo por que nela não se exige a prova plena, tal como exigido nas sentenças condenatórias em ações penais que não são da competência do júri” (HC 70.488, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 29.9.1995), não sendo, portanto, “necessária a prova incontroversa da existência do crime para que o acusado seja pronunciado. Basta, para tanto, que o juiz se convença daquela existência” (RE 72.801, Rel. Min. Bilac Pinto, RTJ 63/476), o que induz a conclusão de que “as dúvidas quanto à certeza do crime e da autoria deverão ser dirimidas durante o julgamento pelo Tribunal do Júri” (HC 73.522, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 26.4.1996), já que a sentença de pronúncia não faz juízo definitivo sobre o mérito das imputações e sobre a eventual controvérsia do conjunto probatório. 4. Ordem denegada .
(Sem destaques no original)
É nesse contexto que avulta em importância a adequada compreensão do brocado regente do procedimento do júri, in dubio pro societate, alvo de críticas por parte de alguns doutrinadores, a exemplo de Eugênio Pacelli:
[…] É costume doutrinário e mesmo jurisprudencial o entendimento segundo o qual, nessa fase de pronúncia, o juiz deveria (e deve) orientar-se pelo princípio do in dubio pro societate, o que significa que, diante de dúvida quanto à existência do fato e da respectiva autoria, a lei estaria a lhe impor a remessa dos autos ao Tribunal do Júri (pela pronúncia). Na essência, é mesmo assim. Mas acreditamos que por outras razões. Parece-nos que tal não se deve ao in dubio pro societate, até porque não vemos como aceitar semelhante princípio (ou regra) em uma ordem processual garantista.
Não se pode perder de vista que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, conforme exigência e garantia constitucional. Por isso, só excepcionalmente é que tal competência poderá ser afastada. Na fase de pronúncia, o que se faz é unicamente o encaminhamento regular do processo ao órgão jurisdicional competente, pela inexistência das hipóteses de absolvição sumária e de desclassificação. Essas duas decisões, como visto, exigem a afirmação judicial de certeza total quanto aos fatos e à autoria – por isso são excepcionais.
Não se pede, na pronúncia (nem se poderia) o convencimento absoluto do juiz da instrução, quanto à materialidade e à autoria. Não é essa a tarefa que lhe reserva a lei. O que se espera dele é o exame do material probatório ali produzido, especialmente para a comprovação da inexistência de quaisquer das possibilidades legais de afastamento da competência do Tribunal do Júri, e esse afastamento, como visto, somente é possível por meio de convencimento judicial pleno, ou seja, por meio de juízo de certeza, sempre excepcional nessa fase. Mesmo na impronúncia, que é fundada na ausência de provas, o juiz deve realizar exame aprofundado de todo o material ali produzido para atestar a sua insuficiência, já que, em princípio, não é ele o competente para a valoração do fato .
A controvérsia em torno do in dubio pro societate, um dos pilares da decisão de pronúncia, merece, como todo instituto jurídico, uma abordagem com os olhos focados na Constituição Federal, o que não implica, concessa venia, sua absoluta desconsideração, em face de princípios de igual envergadura, como presunção de inocência e contraditório e ampla defesa, sempre invocados como preponderantes.
Nesse sentido, o juízo de certeza para a impronúncia (ou despronúncia, em sede recursal) é o único mecanismo capaz de preservar a competência constitucional do júri. Não fosse assim, a dúvida que enseja a absolvição, nas causas de competência do juiz singular, poderia servir, também, de justificativa para impronunciar o réu, retirando do Tribunal Popular a possibilidade de examinar a causa. Tal exegese implicaria, em última análise, afronta à própria Constituição Federal, esvaziando sua força normativa nessa questão específica.
Com efeito, a atividade cognitiva sobre os elementos probatórios aptos a ensejarem a pronúncia deve ser exercida pelo juiz togado com extrema cautela e sobriedade, com emprego de linguagem moderada, comedida, evitando-se qualquer antecipação valorativa sobre o mérito da causa, já que não lhe compete tal mister, e sim, aos juízes leigos. Evidentemente, deve fundamentar sua decisão, apontando a prova da existência material do fato, bem como os indícios suficientes de autoria, sem emitir, contudo, juízo de certeza, i.e., se o réu deve ser condenado ou absolvido.
Portanto, sendo o Tribunal Popular soberano na apreciação da matéria fático-probatória, cujo veredicto é baseado na íntima convicção, sendo-lhe dispensado o dever de motivar sua decisão, que pode se embasar em qualquer elemento de prova, a cognição judicial das provas ensejadoras da pronúncia deve sempre ter em perspectiva que tais aspectos do Tribunal do Júri estão entrincheirados na matriz pétrea da Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXVIII) .
Ou seja, o status constitucional do júri confere-lhe primazia no exame das causas de sua competência, e tal peculiaridade deve circunstanciar a atividade do juiz togado, ao examinar as provas aptas a ensejarem a decisão de pronúncia.
É nesse específico contexto que residem as questões fulcrais sobre avaliação do conjunto probatório apto a sustentar a decisão de pronúncia, de que me detenho doravante.
1.2 Dos indícios no processo penal. Breves considerações no âmbito da decisão de pronúncia
O art. 413, caput, do Código de Processo Penal, estatui que “o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.” (grifo nosso).
Por sua vez, o art. 239, do mesmo Codex, traz a seguinte definição legal de indício: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.
A ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça, ao discorrer sobre o tema, preleciona, de forma didática: “indício é todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido, devidamente provado, suscetível de conduzir ao conhecimento de fato desconhecido, a ele relacionado, por meio de um raciocínio indutivo-dedutivo ”.
A prova indiciária, portanto, não corresponde exatamente com o fato que se deseja provar, mas com este estabelece um plexo de correlação através de outros elementos que o circundam, i.e., aspectos que gravitam a prática delitiva. Ou seja, “há de existir uma conexão lógica entre os dois fatos e uma relação de causalidade, a permitir o conhecimento do fato ignorado ”.
No mesmo sentido:
[…] não pode haver uma sentença de pronúncia prolatada com base em indícios leves, vagos, imprecisos, meras presunções ou suspeitas remotas, simples desconfianças.
Meras presunções, ligeiras desconfianças ou indícios leves de autoria podem dar margem a uma denúncia, porém, jamais, tecnicamente, juridicamente, a uma pronúncia, da mesma maneira que indícios por mais concludentes ou veementes que sejam não podem fundamentar uma sentença condenatória.
[…] .
(Sem destaques no original)
Estabelecidas tais premissas, pertinentes ao debate algumas considerações sobre a valoração da prova indiciária para lastrear, validamente, a decisão de pronúncia.
É consabido que o devido processo legal informa e conforma o modelo constitucional de processo, e seus consectários, os princípios do contraditório e da ampla defesa, além das garantias constitucionais inerentes à prestação jurisdicional, tais como a imparcialidade, o princípio do juiz natural e a exigência indelével de motivação das decisões, compõem um núcleo de prerrogativas inafastáveis do imputado.
A legitimação da persecução criminal, tendo como norte tais vetores axiológicos, típicos de um Estado democrático de direito, fincados na concepção substancial do due process of law, pressupõe, ainda, uma precisa delimitação entre as funções de acusar, investigar e julgar.
A partir dessas premissas, a doutrina processual penal traça os caracteres distintivos entre os sistemas inquisitório e acusatório. A esse respeito, preleciona Eugênio Paceli de Oliveira, verbis:
[…] De um modo geral, a doutrina costuma separar o sistema processual inquisitório do modelo acusatório pela titularidade atribuída ao órgão da acusação: inquisitorial seria o sistema em que as funções de acusação e de julgamento estariam reunidas em uma só pessoa (ou órgão), enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas (ou órgãos) distintos. A par disso, outras características do modelo inquisitório, diante de sua inteira superação no tempo, ao menos em nosso ordenamento, não oferecem maior interesse, caso do processo verbal e em segredo, sem contraditório e sem direito de defesa, no qual o acusado era tratado como objeto do processo.
As principais características dos aludidos modelos processuais penais seriam as seguintes: a) no sistema acusatório, além de se atribuírem a órgãos diferentes as funções de acusação (e investigação) e de julgamento, o processo, rigorosamente falando, somente teria início com o oferecimento da acusação;b) já no sistema inquisitório, como o juiz atua também na fase de investigação, o processo se iniciaria com a notitia criminis, seguindo-se a investigação, acusação e julgamento. […] .
O Código de Processo Penal de 1941, desde sua concepção originária, marcadamente inquisitória, até os dias atuais, sofreu diversas reformas, visando incorporar o modelo de processo acusatório, e, por conseguinte, amoldá-lo à nova ordem constitucional pós 1988.
A despeito das inúmeras mudanças salutares nessa direção, a doutrina aponta a existência de alguns resquícios inquisitórios no Código de Processo Penal, notadamente, quando o legislador permite a atuação ex officio do julgador.
Nesse sentido, Aury Lopes Jr. tece duras críticas a esse respeito, tachando o sistema brasileiro de “(neo)inquisitório”, em razão de sua feição mista:
[…] É lugar-comum na doutrino processual penal a classificação de “sistema misto”, com a afirmação de que os sistemas puros seriam modelos históricos sem correspondência com os atuais. Ademais, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o caráter “misto”.
Outros preferem afirmar que o processo penal brasileiro é “acusatório formal”, incorrendo no mesmo erro dos defensores do sistema misto. BINDER, corretamente, afirma que “o acusatório formal é o novo nome do sistema inquisitivo que chega até nossos dias”.
Nós preferimos fugir da maquiagem conceitual, para afirmar que o modelo brasileiro é (neo)inquisitório, para não induzir ninguém a erro.
Historicamente, o primeiro ordenamento jurídico que adotou esse sistema misto foi o francês, no Code d’instruction Criminalle de 1808, pois foi pioneiro na cisão das fases de investigação e juízo. Posteriormente, difundiu-se por todo o mundo e na atualidade é o mais utilizado.
Nessa linha, o critério definidor de um sistema ou outro seria a “separação das funções de acusar e julgar”, presente apenas no modelo acusatório.
Para GIMENO SENDRA, o simples fato de estar o processo divido em duas fases (pré-processual e processual em sentido próprio ou estrito) e que se encomende cada uma a um juiz distinto (juiz que instrui não julga) bastaria para afirmar que o processo está regido pelo sistema acusatório. No mesmo sentido, ARMENTA DEU entende que em determinado sentido bastaria afirmar que o processo acusatório se caracteriza pelo fato de ser imprescindível uma acusação levada a cabo por um órgão ou agente distinto do julgador (ne procedat iudex ex officio).
A classificação de sistema misto peca por insuficiência em dois aspectos:
Considerando que os sistemas realmente puros são tipos históricos, sem correspondência com os atuais, a classificação de “sistema misto” não enfrenta o ponto nevrálgico da questão: a identificação do núcleo fundante.
A separação (inicial) das atividades de acusar e julgar não é o núcleo fundante dos sistemas e, por si só, é insuficiente para sua caracterização.
Não se pode desconsiderar a complexa fenomenologia do processo, de modo que a separação das funções impõe, como decorrência lógica, que a gestão/iniciativa probatória seja atribuída às partes (e não ao juiz, por elementar, pois isso romperia com a separação de funções). Mais do que isso, somente com essa separação de papéis mantém-se o juiz afastado da arena das partes e, portanto, é a clara delimitação das esferas de atuação que cria as condições de possibilidade para termos um juiz imparcial.
Portanto, é reducionismo pensar que basta ter uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável, que a iniciativa probatória esteja (sempre) nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz. […] .
Com efeito, resta claro que o Processo Penal pátrio é predominantemente acusatório, com alguns resquícios inquisitivos que permitem, em situações excepcionais, a atuação ex officio do magistrado. Concessa venia às respeitáveis críticas, trata-se do modelo adotado no ordenamento pátrio.
Especificamente no campo da atividade probatória, é consabido que os elementos informativos produzidos no inquérito policial servem, primordialmente, para subsidiar a formação da opinio delicti do órgão acusador, pois nessa fase preliminar de investigação não há efetivo exercício do contraditório e ampla defesa, e quanto às provas cautelares ou irrepetíveis, este é diferido.
Nesse sentido, a dicção do art. 155, do Código de Processo Penal estabelece que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” .
Noutros termos, uma condenação não pode ser lastreada, apenas e tão somente, em provas inquisitivas. Podem, no entanto, ser trazidas para compor o arcabouço probatório, desde que haja, por certo, provas franqueadas pelas garantias do contraditório e ampla defesa.
Contudo, no rito bifásico do Júri, a perspectiva de análise da prova assume feições próprias, em virtude das peculiaridades do procedimento, já explanadas linhas acima, e, sobretudo, porque a pronúncia, como já dito, não encerra julgamento definitivo da quaestio.
Nessa direção, o Superior Tribunal de Justiça já assentou:
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. INDÍCIOS DE AUTORIA BASEADOS EM PROVAS COLHIDAS DURANTE INQUÉRITO POLICIAL. POSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO AO ART.
155 DO CPP. INOCORRÊNCIA.
1. O legislador pátio vedou expressamente a condenação baseada exclusivamente em elementos colhidos na investigação criminal, nos termos do art. 155 do Código de Processo Penal. No que se refere à sentença de pronúncia, tal dispositivo deve ser visto com reserva.
2. A sentença de pronúncia não encerra condenação, limitando-se tão somente a pronunciar o agente quando presente prova segura da materialidade e elementos indicativos de autoria, pois compete exclusivamente ao Tribunal do Júri, nos crimes dolosos contra a vida, apreciar o mérito da ação penal ou proceder ao exame aprofundado das provas, decidindo, por fim, pela procedência ou não da denúncia.
3. Hipótese em que a pronúncia não foi baseada exclusivamente em elementos produzidos na fase pré-processual.
4. Agravo regimental desprovido .
Por conseguinte, se é verdade que o juízo de admissibilidade da pronúncia deve ter como horizonte a preservação da competência constitucional do júri, também é certo que seu foco imediato é a observância das garantias constitucionais que informam o processo acusatório, de modo a evitar que imputações absolutamente sem lastro sejam levadas a julgamento pelo Conselho de Sentença.
O magistrado pronunciante, então, deve analisar a prova para constatar se a acusação é, ou não, plausível, mas com os olhos voltados para o Tribunal do Júri, a quem competirá o julgamento de mérito da causa.
Essa análise em perspectiva do juiz togado funda-se numa afirmação comum na doutrina, segundo a qual o Conselho de Sentença julga “de capa a capa”.
A expressão refere-se às amplas margens de escolha da prova que irá sustentar o veredicto dos juízes leigos, que, de rigor, sequer será possível identificar face à íntima convicção que permeia o julgamento. A esse propósito, salutar a transcrição de paradigmático aresto do STJ, da lavra do ministro Jorge Mussi, que delineia, com precisão, tais especificidades das decisões tomadas pelo Tribunal Popular:
[…] 1. Interposto recurso de apelação contra a sentença proferida pelo Tribunal do Júri sob o fundamento desta ter sido manifestamente contrária à prova dos autos, ao órgão recursal se permite apenas a realização de um juízo de constatação acerca da existência ou não de suporte probatório para a decisão tomada pelos jurados integrantes do Conselho de Sentença, somente se admitindo a cassação do veredicto caso este seja flagrantemente desprovido de elementos mínimos de prova capazes de sustentá-lo.
2. Na hipótese, o Tribunal de origem, ao analisar a insurgência manifestada pela defesa, negou provimento ao reclamo, considerando que o veredicto do Conselho de Sentença encontrou arrimo no conjunto probatório produzido nos autos, concluindo, por esta razão, pela manutenção do julgamento realizado pela Corte Popular.
3. O fato do voto condutor do acórdão objurgado ter desconsiderado o depoimento de uma das testemunhas prestado em juízo, invocando a sua contrariedade com as declarações externadas na fase inquisitorial não autoriza, por si só, a conclusão de que a condenação do paciente deu-se exclusivamente com base em prova não admissível para tanto, tendo em vista que, conquanto seja pacífica a orientação segundo a qual nenhuma condenação pode estar fundamentada exclusivamente em provas colhidas no inquérito, tal entendimento deve ser visto com reservas no âmbito do procedimento dos crimes dolosos contra a vida.
4. A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXVIII, alíneas “b” e “c”, conferiu ao Tribunal do Júri a soberania dos seus veredictos e o sigilo das votações, tratando-se de exceção à regra contida no inciso IX do art. 93, razão pela qual não se exige motivação ou fundamentação das decisões do Conselho de Sentença, fazendo prevalecer, portanto, como sistema de avaliação das provas produzidas a íntima convicção dos jurados.
5. Após a produção das provas pela defesa e pela acusação na sessão plenária, a Corte Popular tão somente responde sim ou não aos quesitos formulados de acordo com a livre valoração das teses apresentadas pelas partes. Por esta razão, não havendo uma exposição dos fundamentos utilizados pelo Conselho de Sentença para se chegar à decisão proferida no caso, é impossível a identificação de quais provas foram utilizadas pelos jurados para entender pela condenação ou absolvição do acusado, o que torna inviável a constatação se a decisão baseou-se exclusivamente em elementos colhidos durante o inquérito policial ou nas provas produzidas em juízo, conforme requerido na impetração.
6. O habeas corpus não é a via adequada ao juízo de constatação acerca da existência de suporte probatório para a decisão tomada pelos jurados integrantes da Corte Popular, pois demandaria análise aprofundada do conjunto fático-probatório formado nos autos, vedada na via estreita do remédio constitucional.
7. Ordem denegada.
(Sem destaques no original).
A palavra “prova”, no âmbito do Tribunal do Júri, tem ampla acepção, podendo ter sido produzida em qualquer fase da persecução, com a única exigência (óbvia) de que esteja carreada aos autos, nisso consistindo uma das hipóteses que autoriza sindicar a decisão dos jurados, i.e., quando o veredicto popular for totalmente dissociado de todo e qualquer elemento probatório. Havendo provas inquisitivas que deem suporte à tese abraçada pelo Conselho de Sentença, não há que cogitar, nessa perspectiva, decisão manifestamente contrária à prova dos autos.
Com isto quero dizer que não se afigura possível, concessa venia aos argumentos defensivos, desprezar a prova inquisitorial, ou, em outros termos, dar absoluta prevalência à prova judicial em detrimento daquela, mesmo neste exame prévio, de admissibilidade da acusação.
Caso assim o fizesse, estaria o juiz togado subtraindo da apreciação do júri a possibilidade de examinar todo o arcabouço probatório, pois, consoante já registramos, é lícito ao Conselho de Sentença proferir seu veredicto com base em qualquer prova produzida nos autos, pois, repito, julgam “de capa a capa”, podendo decidir com base em qualquer prova, inclusive, as inquisitivas.
Questão tormentosa, no entanto, reside na utilização exclusiva de provas administrativas para lastrear a pronúncia.
Sem embargo, entendo que, face mesmo às garantias constitucionais inerentes ao modelo de processo acusatório, é indispensável que no curso da persecução criminal, os autos revelem algum dado probatório judicializado, mínimo que seja, para autorizar a pronúncia. Não fosse assim, bastaria o mero indiciamento para que o agente fosse submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri, esvaziando-se, por completo, a fase preliminar do judicium accusationis, verdadeira reserva de jurisdição que visa resguardar os direitos do imputado e a estrita observância do devido processo legal e seus consectários.
Evidentemente, com isto, não se está a exigir prova plena e conclusiva sobre a autoria do crime, e subverter a função do juízo de admissibilidade da acusação. O que se requer para a pronúncia, insisto em repisar, é a existência de indícios de autoria, na concepção já demarcada pela dicção do art. 239, do CPP .
Os argumentos defensivos em sede de pronúncia, quase sempre, giram em torno do discurso de “insuficiência probatória”, calcada na parêmia in dubio pro reo, fomentando um debate sobre “certezas” não demonstradas, em momento processual absolutamente inadequado para esta análise.
Ao largo dessas questões, olvida-se da relevância dos indícios, que, em verdade, situam-se no eixo central do debate acerca das provas em sede de pronúncia, mormente na individualização da autoria ou participação.
A propósito do tema (prova indiciária), transcrevo lapidar lição extraída de fragmento do voto do ministro Luiz Fux, proferido nos autos da Ação Penal nº 470, in verbis:
[…] Com efeito, a atividade probatória sempre foi tradicionalmente ligada ao conceito de verdade, como se constatava na summa divisio que por séculos separou o processo civil e o processo penal, relacionando-os, respectivamente, às noções de verdade formal e de verdade material. Na filosofia do conhecimento, adotava-se a concepção de verdade como correspondência.
Nesse contexto, a função da prova no processo era bem definida. Seu papel seria o de transportar para o processo a verdade absoluta que ocorrera na vida dos litigantes. Daí dizer-se que a prova era concebida apenas em sua função demonstrativa (cf. TARUFFO, Michele. “Funzione della prova: la funzione dimostrativa”, in Rivista di Diritto Processuale, 1997). O apego ferrenho a esta concepção gera a compreensão de que uma condenação no processo só pode decorrer da verdade dita “real” e da (pretensa) certeza absoluta do juiz a respeito dos fatos. Com essa tendência, veio também o correlato desprestígio da prova indiciária, a circumstantial evidence de que falam os anglo-americanos, embora, como será exposto a seguir, o Supremo Tribunal Federal possua há décadas jurisprudência consolidada no sentido de que os indícios, como meio de provas que são, podem levar a uma condenação criminal.
Contemporaneamente, chegou-se à generalizada aceitação de que a verdade (indevidamente qualificada como “absoluta”, “material” ou “real”) é algo inatingível pela compreensão humana, por isso que, no afã de se obter a solução jurídica concreta, o aplicador do Direito deve guiar-se pelo foco na argumentação, na persuasão, e nas inúmeras interações que o contraditório atual, compreendido como direito de influir eficazmente no resultado final do processo, permite aos litigantes, com se depreende da doutrina de Antonio do Passo Cabral (Il principio del contraddittorio come diritto d’influenza e dovere di dibattito. Rivista di Diritto Processuale, Anno LX, Nº2, aprilegiugno, 2005, passim). Assim, a prova deve ser, atualmente, concebida em sua função persuasiva, de permitir, através do debate, a argumentação em torno dos elementos probatórios trazidos aos autos, e o incentivo a um debate franco para a formação do convencimento dos sujeitos do processo. O que importa para o juízo é a denominada verdade suficiente constante dos autos; na esteira da velha parêmia quod non est in actis, non est in mundo. Resgata-se a importância que sempre tiveram, no contexto das provas produzidas, os indícios, que podem, sim, pela argumentação das partes e do juízo em torno das circunstâncias fáticas comprovadas, apontarem para uma conclusão segura e correta.
Essa função persuasiva da prova é a que mais bem se coaduna com o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, previsto no art. 155 do CPP e no art. 93, IX, da Carta Magna, pelo qual o magistrado avalia livremente os elementos probatórios colhidos na instrução, mas tem a obrigação de fundamentar sua decisão, indicando expressamente suas razões de decidir. Aliás, o Código de Processo Penal prevê expressamente a prova indiciária, assim a definindo no art. 239: Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Sobre esse elemento de convicção, Giovanni Leone nos brinda com magistral explicação:
[…]
Assim é que, através de um fato devidamente provado que não constitui elemento do tipo penal, o julgador pode, mediante raciocínio engendrado com supedâneo nas suas experiências empíricas, concluir pela ocorrência de circunstância relevante para a qualificação penal da conduta.
Aliás, a força instrutória dos indícios é bastante para a elucidação de fatos, podendo, inclusive, por si próprios, o que não é apenas o caso dos autos, conduzir à prolação de decreto de índole condenatória. (cf. PEDROSO, Fernando de Almeida. Prova penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 90-91) […].
(Sem destaques no original).
Se é possível, pois, no panorama da “função persuasiva da prova”, que os indícios alberguem validamente uma condenação, evidentemente também podem dar sustentação à pronúncia, que materializa mera admissibilidade da acusação, sem cunho definitivo.
A argumentação das partes em contraditório judicial a respeito da prova concebida em sua integralidade (desde o nascedouro da persecução) é que ditará os rumos da presente decisão, ao nos debruçarmos sobre o vasto arcabouço probatório coligido nos autos.
É o que passo a fazer adiante.
2. Do inconformismo recursal no caso concreto
2.1 Da fundamentação contida na decisão de pronúncia
A decisão de pronúncia (fls. 203/228) apontou a existência de indícios suficientes de autoria em relação ao ora recorrente nos seguintes moldes:
[…] SHIRLLIANO GRACIANO DE OLIVEIRA, v. “BALÃO”, atualmente foragido, sua participação foi de relevância para o sucesso da empreitada criminosa, pois além de ser indicado como a pessoa que teve conhecimento do plano de morte arquitetada por Fábio Brasil em face de Gláucio Alencar, é tido como o responsável pelo deslocamento dos pistoleiros para prestar auxílio nas tramas de morte.
Analisando os depoimentos dos acusados observa-se que o réu Shirliano não fora reconhecido inicialmente pelo acusado Alcides, conforme declaração em Juízo, porém em seu interrogatório neste Juízo o réu Joel Durans o reconheceu como a pessoa que se fez presente no encontro ocorrido no local “O Berro II” juntamente com Alcides, Durans, Gláucio, Ricardinho e Elson (depoimento judicial, mídia à fl. 5038 do Vol. 21 dos autos).
Outrossim, compulsando os autos da interceptação telefônica resta demonstrado o contado que o acusado Jhonathan fez ao ligar para o ramal de Adriana Silva, esposa do acusado Shirliano, embora a defesa levante a fragilidade desta prova, certo é que a quebra de dados comprova a ligação; demonstrou-se ainda, a ligação realizada no dia do crime, exatamente às 22:12:05, pelos telefones dos acusado Shirliano e Marcos Bruno (seu cunhado), este último a quem atribuído ser o piloto da moto que conduziu o executor.
Cabe asseverar, que ainda que houvesse dúvidas, como cita em suas alegações finais, certo é que, dúvidas advindas no decorrer da instrução devem ser elididas sob o manto do princípio do in dubio pro societate, tornando cabível a pronúncia, razão pela qual não merece prosperar a alegação de negativa de autoria, inexistência de suporte probatório mínimo para obter a sua impronúncia.
[…]
(Destaques constam no texto original)
2.2 Das razões contidas no recurso de Shirliano Graciano de Oliveira
Hostilizando os fundamentos contidos na decisão de pronúncia, a defesa do recorrente, no arrazoado de fls. 248/264, alega, em essência, que:
I – não existem, nos autos, elementos suficientes aptos a comprovar qualquer participação do recorrente no evento criminoso;
II – a denúncia está baseada em meras ilações, meras conjecturas, sendo lacônica, vazia e débil de elementos mínimos a formar uma convicção acerca do seu envolvimento;
III – as provas produzidas na fase policial não foram confirmadas em juízo, mas sim, contrariadas e desqualificadas, tornando inconsistente a acusação quanto ao recorrente Shirliano Graciano de Oliveira, não cabendo, no caso, a aplicação do brocardo do in dubio pro societate, diante da ausência de qualquer dúvida razoável da participação do recorrente no crime de homicídio;
IV – a decisão de pronúncia deve ser no mínimo razoável, bem como fundamentada, nos termos do art. 413, do CPP, em respeito ao dispositivo contido no inciso IX, do art. 93, da CF/88;
V – a decisão de pronúncia desatende a sua própria essência, não especificando qual a conduta do réu Shirliano Graciano de Oliveira e as circunstâncias do fato que lhe envolve na execução da vítima Aldenísio Décio Leite de Sá;
VI – a pronúncia é “tão genérica que poderia ser utilizada para qualquer caso a qualquer pessoa. Tão enigmática que caso o recorrente seja submetido ao júri, teremos que advinhar (Sic) qual participação dele na morte do Décio. Qual fora sua conduta. Qual a relação do réu com a suposta quadrilha” (fls. 260).
Na sequência, a defesa indaga, in verbis:
1 – Que auxílio foi esse? Em qual fato concreto, real, objetivamente provado, baseou-se o magistrado a quo para se convencer dessa acusação, já que afirma tal auxílio?
2 – Esse suposto auxílio, faz o autor, co-autor ou partícipe?
3 – Se ele saiu com JHONATHAN pela manhã no dia do crime foi para onde? Fazer o quê? Pilotou a moto do JHONATHAN? Seguiu a vítima?
4 – O ACUSADO fez emboscada para vítima? Dificultou a defesa da vítima? Procurou localizar a vítima? Deu arma para o executor? Deu fuga para o executor?
(Grifos constam no texto original)
Com estes fundamentos, pede a defesa do recorrente Shirliano Graciano de Oliveira, a nulidade da decisão de pronúncia por ofensa ao art. 413, § 1º, do CPP , e art. 93, IX, da CF e, subsidiariamente, a sua despronúncia, nos termos do art. 414, do CPP , por não haver indícios firmes, seguros de participação do recorrente na morte do jornalista e blogueiro Décio Sá.
Fixados os pontos de inconformação, passo a examiná-los nas linhas seguintes.
2.3 Do exame das razões contidas no presente recurso em sentido estrito
No início deste decisum, tratamos, à guisa de premissas dogmáticas, com a profundidade que o caso requer, sobre a natureza da decisão de pronúncia e os contornos jurídicos sobre os indícios suficientes de autoria ou participação para legitimá-la. Reputo, pois, desnecessário reavivar o debate em torno desta temática.
Todavia, me parece indispensável trazer a lume singelas reflexões sobre individualização da conduta delitiva.
É lição comezinha que a autoria ou participação do agente deve ser minimamente delimitada, i.e., individualizada, desde a peça inaugural da acusação.
Não obstante os contornos mais precisos da autoria ou participação, eventualmente, não venham explicitados na inicial acusatória, seja pela natureza do delito, seja por circunstâncias fáticas, a definição mais precisa deve eclodir das provas a serem colhidas durante a instrução criminal. Se não se sabe ao certo o que o agente fez, impossível condená-lo, pois a dúvida o beneficia.
Evidentemente, em sede de crimes dolosos contra a vida, a dúvida resolve-se em favor da sociedade (in dubio pro societate), conforme já assentado em linhas pretéritas.
Mas a questão fulcral é a seguinte: para que a dúvida autorize, legitimamente, a pronúncia do imputado, é imprescindível que esta dúvida, esta incerteza, gravite em torno de algo concreto, algo claramente definido.
In casu, em relação ao recorrente Shirliano Graciano de Oliveira, sou compelido a reconhecer a absoluta falência acusatória, que, equivocadamente, concessa venia, foi agasalhada na decisão de pronúncia ora objurgada.
Não há, desde a denúncia, até a pronúncia, individualização da conduta imputada ao recorrente Shirliano Graciano de Oliveira, consistente no suposto auxílio prestado à Jhonathan de Sousa Silva, executor do homicídio que ceifou a vida da vítima Aldenísio Décio Leite de Sá.
De fato, são pertinentes as indagações da defesa do recorrente. Em que consistiu tal auxílio ao homicida confesso de Décio Sá? O recorrente pilotou a moto que deu fuga ao executor? Emboscou a vítima ou a seguiu? Procurou localizar a vítima? Dificultou a defesa da vítima? Forneceu a arma utilizada no crime?
O desrespeito ao princípio do contraditório e ampla defesa é flagrante, pois o recorrente sequer pôde se defender, já que, de rigor, não sabia ao certo do que estava sendo acusado.
A despeito da vagueza acusatória, procedendo, doravante, ao detido exame do material probatório, não foi possível extrair dos autos elementos mínimos de participação do recorrente no delito, consoante será demonstrado nas linhas que seguem.
A respeito da valoração da prova, impende registrar que, ao contrário do que afirma o juízo pronunciante, não há qualquer elemento judicializado apto a corroborar, minimamente, a participação do recorrente no crime, nem mesmo aspectos circunstanciais que autorizassem, por indução, sua suposta ligação com o homicídio de Décio Sá.
Consta na decisão de pronúncia que o recorrente “é tido como o responsável pelo deslocamento dos pistoleiros para prestar auxílio nas tramas de morte” (fls. 219). Noutras palavras, o recorrente foi o responsável em trazer Jhonathan de Sousa Silva do Estado do Pará para executar Fábio Brasil (em Teresina) e Décio Sá (em São Luís).
Nota-se que essa conclusão produzida pelo magistrado pronunciante deve-se, exclusivamente , pelo fato de o recorrente ter participado de um encontro ocorrido no restaurante “O Berro II”, localizado no retorno do bairro Olho D’Água, nesta Capital, onde estavam presentes Gláucio Alencar, “Ricardinho Carioca”, Hélcio Amorim e os policiais civis Alcides Nunes e Joel Durans.
Na oportunidade, o recorrente foi chamado por “Ricardinho Carioca” para o referido restaurante, onde narrou aos presentes, que tinha conhecimento de um “plano de morte arquitetada (Sic) por Fábio Brasil em face de Gláucio Alencar” (fls. 219).
Data venia, mas o fato de o recorrente ter conhecimento de um suposto “plano de morte”, não o torna, necessariamente, responsável por agenciar pessoas para o cometimento de crimes por encomenda.
Em momento algum dos autos Jhonathan de Sousa Silva relatou que veio do Pará para o Maranhão, por intermédio do recorrente.
Tanto na fase inquisitiva, quanto judicial, Jhonathan de Sousa Silva disse que chegou ao Maranhão, em junho de 2010, e instalou-se na cidade de Santa Inês, onde conheceu, tempos depois, o indivíduo conhecido pela alcunha de “Neguinho”, este sim, que o trouxe para São Luís, onde, a princípio, residiu no bairro Coroadinho, depois, numa casa localizada no bairro Parque dos Nobres, e, por fim, no Miritiua , onde foi preso .
Em seu depoimento, prestado sob o crivo do contraditório e ampla defesa, Jhonathan de Sousa Silva afirma que sua relação com o recorrente Shirliano Graciano de Oliveira era apenas de amizade e que o conheceu através de Elker Farias Veloso, que o levou, certa vez, ao aniversário do recorrente, ocorrido no sítio deste, localizado na Estrada da Maioba. Disse, ainda, que o recorrente não teve qualquer participação na morte do jornalista e blogueiro Décio Sá .
Outrossim, não é possível extrair das demais provas orais, quer na fase inquisitiva, quiçá em juízo, qualquer indicativo de que o ora recorrente teria sido a pessoa responsável por ter trazido o pistoleiro Jhonathan de Sousa Silva para esta cidade.
Prosseguindo no exame dos autos, o segundo e derradeiro argumento que o magistrado pronunciante utilizou como indício suficiente de autoria foi o fato de o aparelho celular de Jhonathan de Sousa Silva possuir uma chamada efetuada, nas proximidades e momentos antes do crime que vitimou Décio Sá, para o telefone de Adriana Silva de Oliveira, na época, companheira do recorrente.
Na perspectiva do juiz de base, a ligação telefônica efetuada por Jhonathan de Sousa Silva, no dia 23/04/2012, às 22h12’05”, para o telefone registrado em nome de Adriana Silva de Oliveira, igualmente revela indícios suficientes de que o recorrente participou da empreitada criminosa.
Compulsando os autos, observo que Adriana Silva de Oliveira foi arrolada como testemunha pelo Ministério Público Estadual.
Ouvida em 08/05/2013 (DVD – fls. 116), em depoimento de pouco mais de 06 (seis) minutos, observo que o Ministério Público não se desincumbiu do seu ônus de provar, ou mesmo de esclarecer, o que Jhonathan de Sousa Silva queria ou tratou, no dia do homicídio de Décio Sá, com a testemunha Adriana Silva de Oliveira.
O MPE não fez sequer uma pergunta a respeito dessa aludida ligação telefônica que a testemunha recebeu do réu confesso Jhonathan de Sousa Silva na noite que vitimou o jornalista e blogueiro Décio Sá.
Logo, essa ligação telefônica não agrega valor probatório algum ao frágil suporte de convicção da pronúncia guerreada.
Compreendo que poder-se-ia até cogitar da participação do recorrente no delito, se o suposto auxílio material que ele prestou ao executor Jhonathan de Sousa Silva estivesse minimamente delineado nos autos, e suficientemente demonstrado através de indícios, já que a relação de amizade entre eles é fato inconteste.
Ou seja, há provas suficientes da ligação entre o recorrente e o executor do crime; mas não há indícios suficientes de sua participação no delito de homicídio de Décio Sá, e a decisão de pronúncia se sustenta, nesse ponto, de certa forma, nessa relação de amizade entre ambos, e, também, na ligação telefônica realizada por Jhonathan de Sousa Silva para o telefone da ex-companheira do recorrente.
Sucede que, à míngua de individualização da participação do recorrente na empreitada criminosa, impossível inferir em que consistiu tal auxílio prestado, supostamente, ao executor do homicídio.
Assim, sou compelido a reconhecer que não há nos autos indícios mínimos de participação do recorrente no homicídio que vitimou Décio Sá.
Sobre o crime de formação quadrilha, não há, da mesma forma, qualquer elemento que permita inferir sua participação, a não ser sua relação de amizade com o corréu Jhonathan de Sousa Silva. A estabilidade associativa, com o ânimo de praticar crimes, não restou minimamente demonstrada nos autos, valendo anotar, ademais, que a decisão de pronúncia é completamente omissa na análise desta questão.
À guisa de reforço, registro que o recorrente não foi sequer denunciado, na comarca de Teresina/PI, como autor, coautor ou partícipe do crime de homicídio que vitimou Fábio Brasil .
Pelos elementos coligidos ao longo da persecução criminal, não é possível, ao contrário do que fundamentou o magistrado pronunciante, extrair os indícios suficientes capazes de imputar ao recorrente, sua participação no crime de homicídio, restando comprovado, tão somente, a sua presença no encontro do restaurante “O Berro II”, onde ratificou as afirmações de “Ricardinho Carioca” sobre uma suposta trama para assassinar Gláucio Alencar Pontes Carvalho, idealizada, supostamente, por Fábio Brasil, assim como, a notória relação de amizade com Jhonathan de Sousa Silva.
Nesta ordem de ideias, acresça-se, por oportuno, da impossibilidade de se proferir uma decisão de pronúncia tendo em conta apenas os elementos colhidos no curso do inquérito, por expressa vedação legal (art. 155, do CPP).
Ressalte-se que a decisão de pronúncia, embora provisória, deve ser proferida sob condições probatórias convincentes e idôneas para submeter o acusado ao processo criminal perante o Tribunal do Júri Popular, em face das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
Nesta fase de cognição prelibatória, não custa lembrar, vigora a regra do in dubio pro societate. No entanto, adverte a doutrina, que:
[…] o in dubio pro societate deve ser aplicado com prudência, para evitar que acusados sejam pronunciados sem um suporte probatório que viabilize o exame válido da causa pelos jurados […] .
(Sem destaques no original)
No mesmo diapasão:
[…]
É muito comum na doutrina a assertiva de que o princípio aplicável à decisão de pronúncia é o in dubio pro societate, ou seja, na dúvida quanto à existência do crime ou em relação à autoria ou participação, deve o juiz sumariante pronunciar o acusado.
A nosso juízo, referido entendimento interpreta o art. 413 do CPP de maneira equivocada. Referido dispositivo dispõe que, para que o acusado seja pronunciado, o juiz deve estar convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (CPP, art. 413, caput).
Referindo-se o art. 413, caput, do CPP ao convencimento da materialidade do fato, depreende-se que, em relação à materialidade do delito, deve haver prova plena de sua ocorrência, ou seja, deve o juiz ter certeza de que ocorreu um crime doloso contra a vida. Portanto, é inadmissível a pronúncia do acusado quando o juiz tiver dúvida em relação à existência material do crime, sendo descabida a invocação do in dubio pro societate na dúvida quanto à existência do crime.
Por sua vez, quando a lei impõe a presença de indícios suficientes de autoria ou de participação, de modo algum está dizendo que o juiz deve pronunciar o acusado quando tiver dúvida acerca de sua concorrência para a prática delituosa. Na verdade, ao fazer uso da expressão indícios, referiu-se o legislador à prova semiplena, ou seja, àquela prova de valor mais tênue, de menor valor persuasivo. Dessa forma, conquanto não se exija certeza quanto à autoria para a pronúncia, tal qual se exige em relação à materialidade do crime, é necessário um conjunto de provas que autorizem um juízo de probabilidade de autoria ou de participação.
[…] .
(Sem destaques no texto original)
E ainda:
[…] não devem seguir a júri os casos rasos em provas, fadados ao insucesso, merecedores de um fim, desde logo, antes que se possa lançar a injustiça nas mãos dos jurados; merecem ir a júri os feitos que contenham provas suficientes tanto para condenar como para absolver, dependendo da avaliação que se faça do conjunto probatório. Essa é a dúvida razoável.
Exemplo: uma testemunha afirma que o réu matou a vítima; outra nega veementemente. Qual é a mais crível versão? Essa dúvida deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença e não pelo magistrado togado. Entretanto, se as provas são fracas, não há testemunhas presenciais e somente existe uma confissão extrajudicial do réu, por evidente, consagra-se a carência absoluta para sustentar qualquer condenação, sendo o caso de impronúncia.
[…] .
Endossando essa conclusão, a expressão “indícios suficientes de autoria”, contida no art. 409, do CPP, deve ser interpretada como exigência de suporte probatório convincente e idôneo, não bastando para a decisão de pronúncia, a simples existência de suposições, conjecturas ou presunções. Nesse norte:
[…] 2. Para a pronúncia é suficiente a suspeita jurídica derivada de um concurso de indícios, contudo, não é menos verdade que estes indícios devem ser idôneos, convincentes, concludentes no sentido de quem foi o autor do fato. 3.A expressão “indícios suficientes” deve ser interpretada como exigência de suporte probatório idôneo, não sendo suficiente para submeter ao julgamento pelo Tribunal do Júri a simples probabilidade. Deste modo, se ao analisar o conjunto probatório o juiz se convencer de que este não possibilita, de modo algum, o acolhimento da acusação pelo Júri, a impronúncia se impõe.
[…] .
Desta feita, em não se vislumbrando nos autos nenhuma prova judicial apta para viabilizar um juízo de admissibilidade da acusação em relação ao recorrente Shirliano Graciano de Oliveira, vulgo “Balão”, a despronúncia é medida que se impõe, nos termos do art. 414 do CPP , sem prejuízo da formulação de nova denúncia, caso, no futuro, sobrevenham provas novas, conforme dispõe o parágrafo único do aludido dispositivo .
3. Do dispositivo
Com essas considerações, conheço do presente recursos, para, em discordância com o parecer ministerial , despronunciar o recorrente Shirliano Graciano de Oliveira das imputações descritas no art. 121, § 2º, I, IV e V, c/c art. 29, e art. 288, todos do Código Penal.
Expeça-se contramandado de prisão em favor do recorrente, ou alvará de soltura, se for o caso.
Comunique-se o inteiro teor desta decisão aos familiares da vítima, em conformidade com as disposições contidas no art. 201, § 2º, do Código de Processo Penal .
É como voto.
Sala das Sessões da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, ___ de novembro de 2015.

DESEMBARGADOR José Luiz Oliveira de Almeida
RELATOR

Ainda falta muito a ser revelado

Menina-de-12-anos-esta-presa-em-cadeia-publica-em-MSLi, no jornal o Globo, do dia 02/11 do corrente, a matéria sob o título “Detentos impõe ‘código penal’ próprio em presídios”, com a reafirmação, com tintas fortes, mas não definitivas, do que eu já denunciei reiteradas vezes, aqui mesmo, neste mesmo espaço.

A matéria em comento traz informações que não podem passar sem uma detida e responsável reflexão, a concitar a todos nós a nos unirmos para tentar, se não reverter, pelo menos amenizar essa grave situação, a nos envergonhar como nação; a nos conduzir, definitivamente, à conclusão de que não há mesmo, nessas condições, como reeducar, reinserir, preparar o detento para o retorno à sociedade, em face da sua submissão a tratamento cruel e degradante, com o abespinhamento da sua dignidade.

A matéria em comento traz informações mais do que estupefacientes a propósito de canibalismo, esquartejamento, estupro coletivo, decapitação, jogo de bola com cabeças, sevícia com cabo de vassouros, olhos vazados, ida para cela sem luz e com escorpião, que seriam exemplos de punições previstas numa espécie de “Código Penal” dos criminosos, conclusões que decorrem de denúncias da Justiça Global, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça.

Ao lado desse “Código Penal” tem-se, a potencializar a situação degradante que decorre da “Lei Penal dos Encarcerados”, a superlotação, a má alimentação, insalubridade, assistência médica precária, a evidenciar, definitivamente, a incapacidade do Estado em relação ao seu sistema prisional, a exigir de todos nós a adoção de providências tendentes a reverter essa situação que a todos nós nos envergonham.

O mais grave é que essas revelações não esgotam as mazelas do sistema. Novas revelações, tão estupefacientes quanto, decerto chegarão ao conhecimento público. Mas providências mesmo, para reverter essa grave situação, somente no dia em que a prisão tiver por destinatário todo e qualquer brasileiro; quando, enfim, todos forem iguais perante a lei. Nesse sentido, acho que Sérgio Moro dará uma grande contribuição para reverter essa situação. É só esperar para ver.

Há alguns anos refleti, aqui mesmo, neste mesmo espaço, acerca da falência das chamadas instituições totais. Em alguns dos excertos do meu artigo, anotei, dentre outras coisas, que era necessário admitir que as instituições denominadas de totais, como são os estabelecimentos criminais, funcionam, no Brasil, apenas como um depósito de gente, embora sejam apresentadas aos olhos do povo como locais eficientes e aptos a atenderem os seus fins. Disse, demais, que essas instituições são, em verdade, verdadeiras masmorras, por isso mesmo fracassaram; por isso não ressocializam; são uma fábrica de reincidência, de estatísticas estarrecedoras.

Recordo que, na oportunidade, reflexionei com as palavras de Evandro Lins e Silva, segundo o qual não se podia  ignorar que a prisão, nos moldes da brasileira, com todas as suas mazelas, não regenera nem ressocializa ninguém; antes, perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece,funcionando como uma fábrica de reincidência, uma universidade às avessas onde se diploma o profissional do crime.

No mesmo diapasão, lembrei as lições do não menos saudoso Heleno Fragoso, jurista de nomeada, segundo o como instituição total a prisão necessariamente deforma a personalidade, ajustando-a à subcultura prisional, para, noutro excerto, concluir que o problema da prisão é a própria prisão.

Barbero Santo, na sua obra, Marginalidade Social e Direito Repressivo, diagnosticou, na mesma balada, que a prisão é aterrorizadoramente opressora e seus muros separam o interno da sociedade e a sociedade do interno. Esse, prossegue, não apenas perde o direito à liberdade de deslocar-se, mas praticamente todos os seus direitos: de expressão, reunião, associação, sindicalização, escolher trabalho, receber um salário semelhante ao do trabalhador livre, assistência social, etc e até de desenvolver normalmente a sua sexualidade”.

Goffman, citado por Cervine, de seu lado, anotou ser impossível descrever esse ambiente com poucas palavras, pois que, privados da maioria de seus direitos de expressão e de ação por um regulamento meticuloso, os detentos encontram-se em estado de compressão psicológica como um gás sob pressão dentro de um recipiente fechado. Tendem, prossegue, continuamente a romper essa resistência e tal tendência manifesta-se às vezes de uma maneira dramática, por evasões, ataques e motins.

Diante do que se tem noticiado, repetidas vezes, sobre a falência do nosso sistema penitenciário, concluo, na esteira do que tenho reiterado, repetidas vezes, que a questão do preso se deve exatamente porque no Brasil a prisão é destinada apenas aos mais pobres.

Nesse cenário, imagino que no dia que as ações do sistema penal de dirigirem, indistintamente,  a todos os autores das condutas típicas e antijurídicas, passar-se-á a investir com mais responsabilidade para resolução do gravíssimo problema penitenciário brasileiro, sem que o legislador perca de vista que é preciso, sem mais delongas, modernizar, o quanto baste,  a nossa legislação penal, descriminalizando condutas, despenalizando, quando possível, para evitar-se, ao máximo, a carcerização”.

Diante desse quadro, me permito repetir o óbvio, ou seja, que o encarceramento, em nosso sistema prisional fracassado, não melhora o detido, não o corrige para o mundo exterior, não o recupera para o retorno à sociedade que perturbou com sua ação criminosa, razão pela qual muito mais cautela deve ter o julgador, quando se decidir pela condenação de alguém e pelo cumprimento de penas nas chamadas instituições totais.

Pode-se concluir, a par do exposto, que a dignidade da pessoa humana, quando o assunto é prisão, tem sido muito pouco pensada, quer pelos legisladores, quer pelos executores das leis, preponderando, com efeito, o desrespeito ao princípio da humanidade da pena.

Mas não se iludam com o que foi revelado na reportagem que mencionei no início deste artigo. Muito mais ainda será revelado a propósito do nosso falido e desumano sistema penitenciário. É só esperar para ver. À proporção que os envolvidos nas operações – Lava Jato, Zelotes, etc – em curso no Brasil forem sendo presos, as mazelas serão sendo aos poucos reveladas, sendo certo que a prisão, quando finalmente dor destinada, também, a um classe que sempre se julgou imune a ela, terá o poder de proporcionar uma revolução.

 

Propostas para racionalizar os julgamentos no Tribunal de Justiça

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Passados quase dois anos e eis que o órgão Especial do Tribunal de Justiça resulta “extinto” (depende agora de providências legislativas), por votação unânime dos desembargadores presentes na sessão administrativa extraordinária do Pleno do Tribunal de Justiça do Maranhão, realizada no dia 21 do mês de outubro próximo passado, resultado da mobilização de muitos colegas que, como eu, não viam com bons olhos a divisão que se operou na Corte em face da sua implantação.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Maranhão, é preciso admitir, foi instituído sem nenhuma discussão prévia, daí as razões pelas quais, depois, em face das efeitos constatados a posterori, deixou de ser bem visto por muitos de nós, convindo anotar, por honestidade moral, que eu mesmo fui um dos que dei o meu aval à sua criação, sem perscrutar as consequências da sua instalação, sobretudo para o jurisdicionado.
O certo é que, por quase dois anos, o Órgão Especial do TJ esteve em funcionamento, convindo fazer, em face desse tempo, e em vista dos efeitos práticos da sua instalação, algumas ponderações que decerto conduzirão essas reflexões ao seu real objetivo, que é apresentar, para debate, algumas propostas que julgo fundamentais para a racionalização dos julgamentos futuros do Pleno do Tribunal de Justiça do nosso Estado.
Hoje, depois de amadurecida reflexão, posso afirmar, em face do que salta aos olhos de qualquer observador minimamente atento, que, em face do número reduzido de julgadores, as sessões, nesse período, como sói ocorrer, fluíram com mais rapidez, o que não significa dizer que, por isso, o Órgão Especial tenha cumprido o seu desiderato, a considerar que não é meta a ser perseguida por um colegiado a brevidade dos seus julgamentos, sobretudo quando o tema sob análise guardar especial complexidade, a exigir cognição verticalizada.
Sob essa perspectiva é muito pouco provável, desde a minha compreensão, que o Órgão Especial tenha atendido, como se almejava – de boa fé e bem-intencionados -, às expectativas de uma sociedade reconhecidamente plural, a exigir, sob essa singular perspectiva, que os julgamentos das demandas se façam a partir de discussões que envolvam o mais amplo espectro intelectivo, o que só é viável, importa reafirmar, se o exame, tão aprofundado quanto possível, se fizer à luz dos mais variados ponto de vista.
Dessa constatação resulta, por consequência, outra indagação que não pode deixar de ser feita, em vista do raciocínio que pretendendo desenvolver aqui e agora, mesmo antevendo o perigo de incursionar pelo mundo da obviedade, da tautologia, enfim.
Prossigo, pois, indagando se, para as decisões judiciais colegiadas, caracterizadas pela diversidade de interpretação, é melhor que sejam poucos a refletir sobre a matéria, para abreviar os julgamentos, e assim proporcionar conforto pessoal aos julgadores, ou, em sentido antípoda, é melhor que o debate se faça com maior número possível de julgadores, a proporcionar exame mais aprofundado das questões jurídicas, mesmo que os julgamentos se prolonguem no tempo ?
Indago, ademais, sempre na mesma linha de pensar, mas agora de forma instigante e provocativa: se a legitimidade do Poder Judiciário está visceralmente ligada ao interesse do jurisdicionado, que não se confunde com os interesses pessoais dos julgadores, em que o órgão especial aprimorou os julgamentos colegiados, nesses dois anos, a legitimar e justificar a sua existência, se, de certa forma, alijando dos debates e das decisões um número relevante de magistrados, abespinhou uma das mais relevantes marcas dos órgãos colegiados que é a pluralidade interpretativa que decorre dos mais variados pontos de observação dos intérpretes?
Às indagações que aqui formulei, apenas para instigar, provocar, trazer luz ao debate, respondo eu mesmo dizendo, pretensiosamente, sob a visão de quem não possa perceber o alcance dessas reflexões, que, desde o meu olhar, sob a perspectiva do aprimoramento dos julgados, o Órgão Especial não trouxe qualquer benefício, bastando, para dar alento a essa afirmação, a constatação de que, em face dele, como antes anotei, os debates restaram menos aprofundados, se considerarmos, como antecipei alhures, a finalidade, o espírito, enfim, dos órgãos de composição multifacetada.
Ainda que tenha convicção de que só um Tribunal, pela totalidade dos seus membros – claro que me reporto aos Tribunais de porte médio como o nosso – tem condições de prolatar decisões que resultem de discussões mais aprofundadas, como efetivamente todos nós desejamos, reconheço que, em face delas, os debates tendem a ser mais acalorados e as sessões mais demoradas. Mas discussões acalorados e demoradas, com maior verticalização, só podem mesmo ser promovidas por Tribunais cuja composição, por força da natureza humana, seja o mais heterogênea possível, como de resto ocorre em todas as corporações.
Compreendo, inobstante, que, se formos capazes de racionalizar os julgamentos – e aqui está o busílis dessas reflexões -, poderemos, sim, dar celeridade aos mesmos, sem afrontar o principio da colegialidade, e sem alijar nenhum colega dos debates, como pretendo demonstrar a seguir.
A primeira e principal providência é o cumprimento rigoroso do nosso Regimento Interno, sobretudo no que se refere às intervenções, que não podem ser sem razão e sem limites, como tem ocorrido na prática, fomentando discussões paralelas e intermináveis, quebrantando, inclusive e na mesma balada, a formalidade e liturgia que deveriam presidir os julgamentos.
Convém, ademais e concomitantemente, por acordo, já que não existe norma escrita, fixarmos o tempo máximo para apresentação de um voto – salvo exceções que decorram da complexidade da matéria – , como fez o Supremo Tribunal Federal, que fixou o tempo máximo em 30 minutos, e cujos votos, ademais, são distribuídos com antecedência, providência de especial relevância, em face dos benefícios que trará à celeridade dos julgamentos, pois que possibilitará a antecipação do exame da quaestio iuris, com os consectários daí decorrentes, inclusive com a redução considerável dos pedidos de vista.
Por fim, é de relevo que seja fixada uma hora para o encerramento das sessões, ainda que não se tenha cumprido a pauta inteira, sabido que, depois de certo tempo, tendemos a descurar das nossas atenções, que decorrem, naturalmente, do desgaste emocional que a quebra de rotina acarreta, do que resultará mais conforto a todos os julgadores, que, assim, poderão compatibilizar as sua agenda pessoal com a agenda profissional, sem prejuízo de uma ou de outra.
Com essas quatro providências, creio que daremos celeridade aos julgamentos e conforto emocional aos julgadores, convindo anotar que nenhum colega está obrigado a aceitar a fixação do tempo mínimo para apresentação do voto e nem tampouco distribuí-lo com antecedência, conquanto tenha o dever de agir sob a égide do Regimento Interno, maltratado, reiteradas vezes, em detrimento da celeridade dos julgamentos, e da solenidade que deve presidir os julgamentos nas Cortes de Justiça.