Não lembro exatamente quando. Recordo, todavia, que, tendo estado em Fortaleza num desses feriados longos, vi coincidir a minha ida com a publicação de estatísticas que davam conta dos índices de criminalidade naquela capital.
Hospedado na Avenida Beira Mar, saí, num final de tarde, com a minha mulher, para caminhar no calçadão, como, aliás, costumam fazer os turistas que visitam aquela cidade.
Pois bem. Ao sair do hotel, uma senhora, muito simpática, se aproximou e nos aconselhou a deixar as bolsas e os relógios no hotel, advertindo-nos dos índices de violência e do perigo de andar pelas ruas de posse de bens materiais.
Despojados de bolsas, celulares, cordões, bijuterias e outras coisas mais, saímos pelo calçadão.
Confesso, todavia, que, apavorado, olhava para todos os lados, sempre com a sensação de que a qualquer momento poderia ser vítima de um assalto.
Curioso, fiquei observando o comportamento das pessoas. Vi várias comprando presentes na tradicional “Feirinha”; outras comprando sorvete, exibindo a carteira porta cédulas, celulares, vivendo naturalmente, como se estivessem numa cidade de primeiro mundo.
Pensei comigo: tem algum exagero nessa história.
Pensei, ademais: vejo todo mundo vivendo como se tudo estivesse na mais perfeita ordem (Caetano Veloso).
Pensei em seguida: tem alguma coisa errada.
A verdade é que o quadro não parecia tão feio como pintaram.
Entrementes, encafifado com a advertência, achei melhor procurar um lugar mais seguro.
Peguei um táxi e fui ao shopping, na certeza de estar, se não mais seguro, pelo menos mais confortável psicologicamente.
Entrei no táxi e puxei conversa com o motorista (analista urbano, segundo Roberto Carlos), cearense de Sobral, morando em Fortaleza há vinte anos, dos quais quinze dedicados ao serviço de táxi.
E como quem não quer nada fui puxando conversa.
Percebi logo que o “coleguinha” era do tipo falante, daqueles de quem se colhe uma informação com facilidade.
Comecei falando de futebol e, depois, de política.
No futebol fomos bem. Sem revolta, só alguma frustração.
Inobstante, quando passamos a falar de política…
Bem, imaginem o que ele disse dos nossos representantes.
Mas eu não queria falar de política; nem de futebol.
Queria mesmo era saber da violência.
De mansinho, cheguei aonde queria.
Travei com ele o seguinte diálogo:
-E aí, amigo? Li as últimas estatísticas dando conta de que Fortaleza é uma das capitais mais violentas do mundo. O que o amigo acha dessa informação?
Ele, sem titubeio, respondeu:
-Tudo mentira. Essas estatísticas não condizem com a realidade. Aqui não tem violência coisa nenhuma. A violência daqui é a que tem em todo lugar, arrematou.
Percebi que ele não gostou. Ficou exaltado com a minha indagação.
Pensei: meu Deus! Esse assunto não é do agrado do companheiro.
Fiquei preocupado e silenciei.
Depois de uma pausa, perguntou de onde eu vinha.
Respondi que era de São Luis do Maranhão.
Ele, galhofeiro, disse:
-Terra de Sarney, hein?
Como eu já esperava pela menção, respondi que sim, lembrando, no mesmo passo, outros maranhenses ilustres: Josué Monteles, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Aluisio de Azevedo, Agostinho Marques, Benedito Buzar, Ferreira Gullar, Joãsinho Trinta, Lourival Serejo, Milson Coutinho, Nauro Machado, Viriato Correa, Turibio Santos e Zeca Baleiro, dentre outros.
Daí em diante ele passou a falar de política, como se pretendesse fugir do tema violência.
Disse o diabo de todos. Do Ceará não escapou ninguém.
Diante de mais essa reação, dei um refresco, falei mal de alguns políticos e elogiei outros.
Fiz ver a ele que há, sim, pessoas de bem no mundo da política; nominei algumas a guisa de exemplo.
Dei um tempo, o shopping se aproximando, e voltei ao tema que me preocupava: violência.
-Sim, amigo, e a violência? Fortaleza é ou não uma cidade violenta?
Ele me olhou com a cara de quem não gostou da minha insistência, e disparou:
-O senhor quer saber de uma cosia? Essa violência que falam tem uma explicação. É que nessas estatísticas fajutas, prosseguir, entram as mortes de marginais. E a morte de bandido não conta.
Foi adiante na estranha avaliação:
-O camarada está praticando um assalto ou acaba de praticar, a polícia chega e ele afronta a polícia…tem de morrer. Agora, levar isso em conta para dizer que Fortaleza é violenta, aí, meu amigo, já é demais.
Prosseguiu, sem enleio:
– O senhor pode observar: são poucas as pessoas de bem nessa história. Só morre bandido. E bandido, repito, não conta. Bandido é feito pra morrer mesmo.
Retruquei, mas o fiz temendo a reação dele:
-Sem julgamento? Na marra mesmo? Sem direito à defesa?
Ele me deu uma olhada de esguelha, e disparou:
– Defesa pra bandido, doutor? E quem é que vai esperar julgamento, doutor? Doutor, esses caras vão presos hoje e amanhã estão de volta à rua. Tem é que matar mesmo. E não tem nada que contar essas mortes para efeito de estatísticas. Estatística é pra gente de bem. Bandido não conta, doutor, concluiu , elevando a voz.
– Esses caros, doutor, ou morreram em confronto com a polícia, ou são eles mesmos se matando por causa de droga. E tudo isso é coisa de periferia. Tem é que morrer mesmo, insistiu.
-São um bando de marginal que só faz mal à sociedade. Tirando esses bandidos das estatísticas, o senhor pode crer que aqui não tem violência, concluiu.
Estupefato, calei.
Pensei, mais uma vez: Deus meu, como chegamos a esse estágio?
Em que mundo estamos vivendo?!
O ser humano não vale mais nada mesmo!
Segundo o nosso “analista urbano”, pessoas da periferia, os pobres, os ditos bandidos, esses devem mesmo morrer, e não servem nem mesmo para fins de estatística; não têm direito a um julgamento justo.
Para ele pouco importam as razões pelas quais essas pessoas chegaram a essa situação, as oportunidades que não tiveram, as injustiças sociais que as podem ter vitimizado, as dificuldades impostas por essas mesmas injustiças sociais.
Como o nosso “analista urbano” , infelizmente, muitos pensam.
É isso.