MELHOR INVESTIGAR

Tenho dito que se houver fundadas suspeitas da prática de ilícitos – penal ou administrativo – por um homem público, o melhor que se faz é investigar da forma mais ampla possível, para que todas as dúvidas sejam dissipadas.

É o preço que todos nós pagamos pela opção que fizemos, pois, sobre a honradez de um homem público, não devem existir dúvidas, ainda que razoáveis. Logo, é preciso deixar que as ações das instâncias de controle fluam naturalmente, porque é do interesse público que as suspeitas – eu disse suspeitas, das quais pode ou não haver indiciamento, que é ato posterior ao estado de suspeito – sejam esclarecidas.

O mais relevante patrimônio de um homem público, todos haverão de concordar, é a sua honorabilidade, que não deve estar sob questionamentos. Daí que, havendo razoável dúvida de desvios de conduta, não pega bem criar óbices às investigações.

Investigação em face de suspeitas razoáveis de má conduta do homem público é um imperativo impostergável e traduz o estágio de evolução de um povo, tanto que, em países civilizados, a simples suspeita impõe ao investigado o dever ético de sair da ribalta, renunciando ao cargo que eventualmente ocupe.

Dessa forma, o melhor que se faz, com todas as consequências que isso encerra, é deixar investigar, se colocar à disposição das instâncias de controle para quaisquer esclarecimentos, pois, afinal, se o indiciamento pressupõe um grau elevado de certeza da autoria, elas, a autoria e a materialidade do ilícito, só podem ser aferidas em face das investigações que forem levadas a cabo.

Desde a minha compreensão, não pega bem o uso de artifícios, mesmo os legais, para impedir que as investigações fluam. Tratando-se de homem público, sobretudo o que têm uma outorga popular, com muito mais razão deve se submeter, naturalmente, às eventuais investigações.

Eu, cá do meu canto, tenho sérias restrições aos que pregam inocência, mas que, no mesmo passo, mesmo ante veementes indícios da prática de algum ilícito, criam empecilhos às investigações, deixando uma amarga sensação de que podem, sim, ter alguma dívida a ser reparada, pois, respeitadas as balizas legais, nada justifica criar estorvas às investigações, máxime quando precedidas de fortes suspeitas de que possa ter havido mesmo algum desvio de conduta.

Ante fundadas suspeitas, por exemplo, de aumento patrimonial incompatível com os rendimentos auferidos por determinado homem público, o correto mesmo é investigar; e, nesse sentido, o maior interessado nas investigações deveria ser a pessoa suspeita, pois que somente em face delas pode-se dirimir eventuais dúvidas acerca de sua conduta, malgrado os dissabores que decorrem da condição de investigado.

Nada obstante os dissabores, todos – eu disse todos! – sobre os quais recai alguma suspeita de enriquecimento ilícito, ou qualquer outro desvio de conduta, devem suportar o desconforto de uma investigação, como todas as suas consequências.

Se, desde meu olhar, as coisas devem ser assim, tenho enorme dificuldades em compreender por que os investigados, de regra, mesmo ante a presença de fortes indícios do cometimento de um ilícito, ultrapassado umbral da mera suspeita, insistem em obstaculizar as investigações.

É preciso ter em conta que não se inicia, pelo menos não tenho notícias nesse sentido, nenhuma investigação, em face de um ilícito, seja penal, seja administrativo, sem que haja, no mínimo, suspeitas relevantes da prática de ilicitude. Se é assim, por que então as pessoas insistem nesse argumento pueril e ridículo de que tudo não passa de uma vindita, como se pretendessem dar à fumaça de gelo um efeito que ela não tem?

Ninguém sai por aí escolhendo, aleatoriamente, quem deva ser investigado; a menos que se trate de um insano, um perseguidor implacável, irresponsável e inconsequente. Da mesma forma, as instâncias de controle não saem por aí investigando à vista tão somente de uma elucubração.

Tentar obstaculizar uma investigação, presentes fortes suspeitas da prática de uma ilicitude, é, para mim, mera escamoteação; uma tentativa pueril de negar as evidências, escondendo-a sob uma cortina de fumaça, olvidando-se que a consciência culpada, ainda que consiga se proteger da persecução, como ocorre algumas vezes, não deixará de ver, em cada sombra, um policial a tirar-lhe a paz.

É isso.

HIERARQUIA DA CRUELDADE

Os livros Spotlight, Segredos Revelados, de uma equipe de investigadores do The Boston Globe, O Homem Inocente, de John Grisham; Diário de Guantánamo, de Mohamedou Slahim, preso no campo de detenção da Baia de Guantánamo, em Cuba; Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, do jornalista Mário Magalhães; Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros; O Livro Negro do Comunismo, Crimes, Terror, Repressão, editado por Stéphane Courtois; e Brasil: uma Biografia, de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, têm em comum o fato de estarem permeados de narrativas sobre a crueldade do homem, o que me induziu a essas reflexões, pois que, à medida que me aprofundava na leitura dos títulos acima citados, ia sendo tomado de desalento – e, algumas vezes, até revolta -, ante a constatação do que o homem, sobretudo em condições de superioridade, é capaz de fazer em detrimento do seu semelhante.

É claro que em nenhum desses manuais os seus autores pretenderam dar ênfase às crueldades do homem, pois, definitivamente, não elegeram essa questão como tema central das narrativas. Quanto a mim, à proporção que lia – e me envolvia emocionalmente -, fui sendo levado a analisá-los sob essa perspectiva, pois, a cada excerto tratando das maldades do homem, como, por exemplo, em face da escravidão e seus desdobramentos, narrados na monumental obra de Lilian Schwarcz e Heloisa Starling, me via tomado de indignação.

Por óbvio, não vou fornecer detalhes dos livros. Limitar-me-ei, com efeito, a refletir acerca do que há de comum entre eles, e que me motivou a escrever este artigo, como antecipei acima, ou seja, a crueldade do ser humano, vista e analisada aqui numa perspectiva de poder, não só o conferido pelo Estado – caso dos algozes de Diário de Guantánamo e de O Inocente, por exemplo -, mas também quando ele, o poder, é exercido em razão de uma liderança, caso de Carlos Marighella, de Lampião e Maria Bonita, dos padres pedófilos mencionados em Spotlight), dos ditadores citados no Livro Negro do Comunismo e dos escravizados de que cuidam Lilian Schwarcz e Heloísa Starling em sua obra.

Nos cenários descritos em todos os livros, o que mais estarrece, e sobre o que pretendo esgrimir nessas reflexões, é a constatação de que os protagonistas das injustiças, das violências, das crueldades perpetradas contra o semelhante detinham o poder de mando e, em face desse poder, exorbitaram, levando-me a concluir que a crueldade, muitas vezes, decorre de uma posição de poder, que a torna ainda mais nociva e abjeta, difícil de ser combatida, a reclamar, também por isso, uma atuação mais enérgica das instâncias de controle.

A posição hierarquizada dos algozes torna a crueldade ainda mais abominável, convém reafirmar, porque eles se valem dessa hierarquização para perpetrar as maldades e para, a partir da posição que ostentam, conseguirem se safar das ações dos órgãos de controle, protegidos, quando se trata de agentes do Estado, pelo próprio sistema, que apesar de tudo ver, se omite em face de quase tudo.

Para os que detêm o poder de decidir sobre a vida e a sorte das pessoas, o sistema punitivo, infelizmente, empresta a sua aquiescência, o que resulta na impotência das vítimas diante das ações dos seus algozes, uma vez que, de regra, não têm a quem recorrer, sobretudo quando são pessoas egressas das classes menos favorecidas, para as quais Justiça é apenas uma quimera, um sonho muitas vezes acalantado, mas nunca alcançado.

As crueldades retratadas nos manuais a que me reportei impactam sobremaneira, porque reafirmam aquilo que sempre tenho dito: dos animais que existem sobre a terra nenhum é mais perigoso que o homem; essa perigosidade se potencializa quando ele é detentor de algum poder de mando, seja por estar investido de alguma atribuição conferida pelo Estado, ou porque exerça o poder em decorrência da sua liderança.

A constatação de que crueldade do homem pode vir a ser hierarquizada em face do poder de mando o homem é, de certa forma, um desalento, sabido que, contra isso, a única certeza que temos é a de que todos somos impotentes. Daí por que não são poucos os que, em face de um agente estatal mal-intencionado, sucumbem, podendo, muitas vezes, até ser condenados, como temos testemunhado todos os dias, mesmo nas sociedades que se dizem evoluídas e democráticas como a americana, nas quais os erros judiciários e as injustiças estão presentes, sobretudo em face da população negra e hispânica.

Das narrativas contidas nos livros, restou definitivamente claro para mim que o Estado não protege, definitivamente, o mais débil. Ao contrário disso, se mostra pleno, poderoso, eficaz e altivo quando destina as suas ações para perseguir e punir, sem pena e sem dó, os egressos das classes menos favorecidas, eleitos como alvos preferenciais das vinditas estatais.

Causa estupor e revolta constatar, à luz do que li e do que testemunhado há mais de trinta anos como magistrado, a capacidade que o Estado tem de, ante os mais frágeis, se agigantar, sufocando-os de tal sorte e em tal medida, a ponto de não deixar outra alternativa aos desvalidos que não seja a sucumbência ante as forças persecutórias oficiais, as mesmas forças que são frouxas e lenientes quando se trata de punir os mais poderosos, para os quais as instâncias de controle parecem agir com o único afã de protegê-los, contando com o beneplácito de agentes incrustados na própria máquina estatal, encarregados de fazer o trabalho sujo.

É isso.

AFINAL, SOMOS TODOS FILHOS DE DEUS?

Nos dias presentes, quando testemunhamos alguns pecadores se assumindo como alvo das preferências divinas, convém indagar: somos todos filhos de Deus?

Sei que esse pode ser um tema controvertido se a essas reflexões for dado o alcance que ela não deve ter. E, por antever eventuais incompreensões é que me antecipo, dizendo que as minhas colocações não devem levar as pessoas a pensá-las numa dimensão maior do que o sentimento que me impulsiona a fazê-las, que é tão somente de instigar.

Para tentar responder à indagação do título desse artigo convém lembrar, à guisa de ilustração, de uma reunião do atual prefeito do Rio de Janeiro, com 200 pastores evangélicos, há meses ocorrida, na qual ele os orientou a usarem das estruturas do município para obtenção de vantagens para os fiéis – como exames e cirurgias prioritárias, dentre outras – e para as igrejas – isenção de impostos, por exemplo -, afinal, disse o bispo, temos que ser gratos a Deus por “ter nos colocado na Prefeitura”, e poder dar vantagens e prioridades ao povo evangélico.

Assim agindo, Sua Excelência deu a entender que teria feito um pacto com Deus, que, no seu entender, seria parceiro de ações que privilegiem uns em face de outros; como se ele tivesse sido eleito para governar em favor de uma minoria composta pelos escolhidos do Salvador, em detrimento da grande maioria.

Mesmo correndo o risco de ser mal-entendido, ainda assim, fruto da minha conhecida inquietação, resolvi expor algumas das minhas impressões a propósito da, digamos, paternidade celestial, instigado a fazê-lo, não só em razão das ações pouco republicanas de Sua Excelência o prefeito do Rio de Janeiro, mas, também, em face da postura de outros tantos viventes que, como o alcaide mencionado, se julgam escolhidos por Deus, ao tempo em que parecem negar a nós outros essa condição, conquanto, tal qual os outros cristãos que habitam a terra, também sejam igualmente pecadores.

A verdade é que, diante de alguns fatos e da postura de algumas pessoas que se julgam superiores espiritualmente, e, por isso, ungidas pelo Senhor – caso do prefeito do Rio de Janeiro e de outros viventes -, fico com a sensação de que há, sim, quem creia, por arrogância ou falta de descortino, que não somos todos filhos de Deus; que Deus, na visão dessas pretensiosas pessoas, já fez as suas escolhas, em detrimento dos demais mortais que habitam o universo. É como se, para ser filho de Deus, dependêssemos, apenas e tão somente, das escolhas arbitrárias do Pai, sem que fosse necessário que o escolhido fizesse por merecer a honraria, o privilégio da escolha.

Exemplos dessa natureza ocorrem nos campos de futebol. O jogador marca um gol e levanta as mãos para o céu em agradecimento a Deus, como se, dos 22 que estão em campo, apenas ele tivesse o privilégio de ser contemplado com a intromissão divina; é como se Deus estivesse com os olhos voltados para ele, e tão somente para ele, porque só ele, como filho do Homem, faz por merecer a dádiva, ainda que, como os demais jogadores, seja apenas mais um pecador.

Voltando ao Rio de Janeiro, lembro que o Prefeito, na famigerada reunião com vários representantes de igrejas evangélicas, conclamou os pares a aproveitarem o fato de Deus tê-lo colocado à frente da Prefeitura da Cidade Maravilhosa, para que fossem atendidos, prioritariamente, os fiéis das suas igrejas, pois, segundo ele, essa era uma oportunidade que Deus havia dado para que eles pudessem ser atendidos prioritariamente, bastando, para implementação das prioridades divinas, que falassem com Márcia, também escolhida por Deus, dentre tantos pecadores, cuja missão na terra seria favorecer as pessoas que eles entendiam ser filhas de Deus.

É dizer, traduzindo o episódio, os demais cidadãos que estão aguardando atendimento numa longa fila de espera – há meses, há anos -, mas que, por infelicidade, não tenham como contatar com Márcia, filha de Deus, não deveriam ser atendidos pelo sistema de saúde do município, pela singela razão de que, eles, diferentes dos fiéis das igrejas evangélicas, não são filhos de Deus, motivo pelo qual não lhes é dado o direito de furar a fila, de serem atendidos prioritariamente.

Na compreensão do Prefeito, Deus o colocou à frente da prefeitura exatamente para favorecer os filhos de Deus e, no mesmo passo, discriminar os que, na sua compreensão e segundo as bênçãos de Márcia, não têm o privilégio de fazer parte desse seleto grupo de ungidos.

O que Sua Excelência o prefeito talvez não saiba – e Deus, embora o tenha ungido, não lhe deu essa capacidade de discernimento – é que, segundo vaticinou Frei Beto, em artigo publicado em o Globo, “religiões que colocam seus interesses acima dos direitos da população não entendem a proposta do Evangelho” ( in o Uso do Estado pela Igreja).

É isso.

 

NÃO CUSTA NADA S0NHAR

Conheço, superficialmente, alguns países do primeiro mundo. E a sensação, ao chegar por lá, é que as instituições funcionam naturalmente, e a contento.

Todavia, pode ser apenas sensação mesmo, pois, em virtude de serem puro entretenimento, essas viagens não habilitam ninguém a falar com o necessário conhecimento sobre realidade do país visitado. Daí que, de rigor, não tenho parâmetros para fazer uma comparação consistente com o que acontece no Brasil. Sei, entrementes, fruto de informações, que há países onde as instituições funcionam de forma satisfatória, como deveria ser em qualquer lugar.

Conquanto não conheça o funcionamento das instituições alienígenas, posso dizer, por ciência própria, que as instituições por aqui não funcionam a contento, e muitas delas só vão na base do empurrão.

Os exemplos da ineficiência estatal no Brasil, nas suas mais diversas esferas, são tantos, que não teria como enumerá-los nesse espaço. Por isso, para ilustrar, vou me deter em apenas duas constatações que corroboram a nossa proverbial ineficiência, em face do mau funcionamento das instituições, muitas das quais, como anotei acima, só funcionam na base do empurrão, o que pode ser traduzido em qualquer tipo de vantagem pessoal ou patrimonial.

A primeira constatação nesse sentido condiz com a ineficiência do Poder Judiciário, como descrevo a seguir.

O cidadão procura o Poder Judiciário e apresenta uma demanda qualquer.

De rigor, se tudo funcionasse como se deseja e como preconiza a lei, o demandante deveria, tão somente, aguardar a decisão que lhe fosse favorável ou não; nesse sentido, tudo deveria fluir naturalmente. Formulado o pedido, portanto, ele não precisaria fazer mais nada senão aguardar que o processo fosse impulsionado até a decisão final.

Entretanto, não é o que ocorre, uma vez que os obstáculos são enormes, a configurar, algumas vezes, a negativa de acesso à jurisdição, estabelecendo um verdadeiro estado de desconforto constitucional.

Os empecilhos à entrega do provimento judicial vão desde o tratamento descortês, passando, outras vezes, pelo excesso de burocracia e, outras tantas, pela falta de empenho de quem tem o poder de decidir; óbices que, triste registrar, estimulam, com tudo que têm de trágico e danoso, o tráfico de influência e a exploração de prestígio, quando não o exercício arbitrário das próprias razões.
Nesse cenário, a sensação que todos têm é de que o Poder Judiciário não cumpre bem o seu desiderato. Daí que uma solução adjudicada é quase uma aventura da qual poucos se dispõem a participar, razão por que se tem estimulado as vias alternativas de composição de litígios.

A segunda constatação é, da mesma forma, inquietante, uma vez que também traduz o mau funcionamento das nossas instituições; aqui a solapar os nossos sonhos, a nos impingir desalento, como descrevo a seguir.

O Poder Legislativo, como sabido, tem como função precípua legislar. Mas, olhando os fatos de frente, parece que não é bem assim. Há como que um abismo entre as teorias em torno do funcionamento do poder legiferante e sua determinação para efetivamente cumprir o seu papel.

Explico.

O normal seria, na teoria, que, chegando uma proposta de reforma legislativa de iniciativa de outro Poder – reforma da previdência, por exemplo -, o Poder Legislativo fizesse naturalmente a sua parte, ou seja, examinasse a questão e sobre ela deliberasse, de forma a decidir o que fosse melhor para país. É dizer, no cenário por mim idealizado, cada legislador, no caso específico aqui tratado, deveria fazer a sua parte.

Simples assim?

Não é o que ocorre, inobstante, para o espanto dos que, assim como eu, imaginam que cada um deva apenas cumprir o seu papel institucional.

Em vez de o Poder Legislativo decidir acerca da questão a ele submetida, deliberando acerca do que seja melhor para o país – afinal os seus membros foram eleitos para isso -, o que vejo, no caso específico da reforma da previdência, são argumentos de alguns congressistas de que o autor da proposta de reforma, no caso o Poder Executivo, tem que construir uma base de apoio, tem que dialogar com os parlamentares, tem que conquistar os votos necessários à reforma, pois, caso contrário, ela não passa.

Como? E o interesse público, não conta? E se o Poder Executivo entender que não tem afago, não se vota a reforma? O que significa mesmo a construção de uma base de apoio? No que se traduz a afirmação de que o Executivo tem que conquistar os votos necessários à reforma? O que significa afagar os deputados? Como se dão essa conquista, esse afago, essa construção de uma base de apoio? Será que não causa desconforto moral aos eleitos para nos representar, condicionar o seu apoio aos afagos e às conquistas em face da ação do Executivo?

Indago: Eu, como magistrado, como homem público, enfim, preciso de algum afago, de ser conquistado para decidir? E se, porventura, recebo algum afago ou me submeto a alguma conquista, é possível traduzir em palavras o que significam, nesse caso, o afago e a conquista? E se eu não os receber, não decido? E se essa famigerada base parlamentar não for conquistada, como fica a reforma da previdência? Não passa? E o Brasil, como fica? E o brasileiro, não importa?

Quer dizer, então, que se essa base não for construída, se não houver mesuras aos deputados, se eles não forem aquinhoados com algum cargo para algum acólito no Executivo, a reforma, ainda que necessária ao país, vai para as calendas?

Confesso que não consigo compreender.

Dia desses ouvi um deputado dizendo que o Executivo começava a conversar com o Legislativo para construir uma base de apoio e que a reforma agora pode sair. Que conversa foi essa que tantas alvíssaras despertou em torno da reforma da previdência? Como eleitor, posso saber o teor dessa conversa?

Mas se dessa conversa não resultar nenhum entendimento que possa ser traduzido numa conquista, num afago, como ficam os treze milhões de desempregados? Só isso não seria suficientemente afagoso para conquistar, para sensibilizar um deputado? E se as emendas parlamentares não forem liberadas, também não haverá reforma?

Tento, mas, definitivamente, não entendo. Cá do meu canto, quiçá ingênuo, mesmo não compreendendo esse jogo político, porque não fui forjado nessa cultura, ainda espero que, mesmo sem afagos, sem conquistas, sem mesuras e sem trocas, a reforma da previdência, porque necessária, seja aprovada.

Essa reforma, dependendo do que dela resultar, pode ser, sim, um divisor de águas, estabelecendo uma necessária mudança de cultura, que, decerto, fará bem ao país.

E se, de repente, numa crise de sensatez, os nossos representantes concluírem que, com ou sem afagos, com ou sem conquistas, com ou sem a construção de uma base parlamentar, a reforma deva ser feita, pelo bem do país?

Poucos são os que acreditam nessa possibilidade.

Eu, do meu lado, ingênuo, mas otimista, ainda creio no discernimento dos nossos homens públicos. Afinal, como diz o poeta, sonhar não custa nada; não se paga para sonhar.

É isso.

ADVERSÁRIO DE MIM MESMO

Nós, de regra, não estamos preparados para derrota. Muito cedo aprendemos, por exemplo, que, numa disputa qualquer, é preciso ganhar.
Ouvi – e ainda ouço – de muitas pessoas a seguinte recomendação aos filhos: se apanhar na rua, apanha em casa também. É dizer: a sociedade nos condiciona para a vitória, pois, na sua concepção, é feio perder.
E assim, numa contenda qualquer, somos instados a vencer, nem que seja numa rinha de galo, onde os protagonistas não são os que tiram proveito da vitória ou sentem os dissabores da derrota.
A grande verdade é que ninguém quer ser apontado como perdedor, uma vez que, ao contrário disso, todos nós almejamos vencer.
É assim na vida pessoal; é assim na vida profissional.
Contudo, a vida não se constrói apenas com vitórias. Ela é assim: perde-se aqui; ganha-se acolá. Logo, é preciso saber perder e ganhar.
Essa máxima da vida, no entanto, não se aceita com naturalidade.
Daí a razão pela qual há pessoas que, diante da derrota, seja ela de qual dimensão for, se descabelam, praguejam, agridem, perdem o controle, se indispõem com os amigos e até com os parentes mais próximos.
Mas quando se entra numa disputa, seja ela de que nível for, tem-se que saber que podemos, sim, perder ou ganhar. Essa é uma verdade comezinha que nem todo mundo é capaz de entender.
Ser vencedor, sair vitorioso de uma contenda, sobrepujar o adversário faz bem à mente – e é o que todos almejam, enfim, porque, como disse acima, a nossa personalidade foi forjada para vencer. Daí a dificuldade de muitos de nós para conviver com a derrota, conquanto saibamos da sua inevitabilidade ao longo da nossa vida.
Claro, portanto, que todos nós queremos ganhar. Entretanto, nem sempre é possível vencer, razão pela qual deveríamos, desde a mais tenra idade, estar preparados para a possibilidade de uma derrota, em face da sua inevitabilidade.
Diante da inevitabilidade de uma derrota nas mais diversas contendas da vida, recomenda o bom senso que se analisem as razões da derrota para, nos novos embates, tentar sobrepujar o adversário (sentido amplo), porque, afinal, a vida é assim: ela nos impõe constantes contendas para as quais nem sempre estamos preparados para vencê-las.
Essas questões são de fácil compreensão, pois, qualquer um de nós, com o mínimo de bom senso, é capaz de compreender essas linhas introdutórias iniciais dessa reflexão.
O bicho pega mesmo é quando perdemos a batalha para nós mesmos. É quando somos derrotados pelas nossas próprias fraquezas. É quando deixamos que a nossa mente nos leve à lona, quando somos nocauteados pelas nossas próprias idiossincrasias.
Curiosamente, o conflito que travamos com nós mesmos é o conflito mais difícil de administrar. Nesse diapasão, temos que ter força interior para enfrentar os nossos medos, as nossas angústias, as nossas fraquezas.
Eu, muitas vezes, não soube enfrentar essas questões. E em algumas delas sucumbi como um gladiador que desaba numa arena. E embora eu me apresentasse para mim mesmo como um forte contendor, constatei depois que fui meu próprio adversário; e perdi. Perdi feito.
Diante disso, saí da pugna machucado, sofrido, arrasado, um trapo, um resto de gente. Então, decidi que para enfrentar o mundo exterior, para enfrentar o inimigo, eu precisava primeiro vencer os meus medos, as minhas angústias, o meu açodamento, a minha ansiedade. Só depois de vencer essas batalhas internas foi que pude sobrepujar os inimigos externos.
A minha maior batalha, portanto, eu travo comigo mesmo; a minha maior vitória e a minha maior derrota foram em face de mim mesmo.
A vida parece simples; e é mesmo, desde que não a compliquemos e sejamos capazes de compreender as nossas limitações, as nossas fraquezas.
Mas eu não fui sempre assim, nem sempre tive essa compreensão.
Para mim, viver era algo muito mais complexo, estando a complexidade em mim e não nos desafios que a vida me impunha.
A verdade é que só passei a entender a beleza e a simplicidade da vida quando superei os meus medos, as minhas fraquezas, as minhas angústias.
Eu só passei a viver bem comigo mesmo e com o meu semelhante, quando entendi que eu, assim como todo ser humano, tenho inúmeras virtudes e incontáveis defeitos.
Viver, portanto, pode não ser algo tão difícil se nos dermos conta de que, a cada desafio e diante de cada derrota, podemos tirar lições para nos fortalecer interiormente, em vez de, simplesmente, sucumbir e chorar o leite derramado.
Não adianta a armadura de um gladiador, o revólver do Zorro, as mágicas do Mandrake, a ambição do Tio Patinhas, os cabelos de Sansão, o estilingue de David, a perspicácia do Mickey, a destreza do super-homem, as teias do Homem Aranha e a força do Hulk, se não tivermos a capacidade de enfrentar o inimigo que habita em cada um de nós, limitando, impondo, muitas vezes, a sua vontade.
É isso.

ESPAÇOS DE RACIONALIDADE

Há uma velha e conhecidíssima lição de Rui Barbosa, segundo a qual Justiça tardia não é justiça, senão que injustiça qualificada e manifesta.

A Constituição Federal, copiando o que já era regra no Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispõe que a prestação jurisdicional será prestada em prazo razoável, exatamente para que as decisões judicias serôdias não se constituam, como, de fato, têm se constituído, numa manifesta injustiça, como bem assinalado pelo ilustrado baiano.

Todavia, não basta a Constituição prescrever e erigir à condição de direito fundamental a duração razoável do processo para que o cidadão, como num passe de mágica, tenha acesso a uma ordem jurídica justa (Kazuo Watanabe); tanto que, apesar do comando constitucional, o cidadão que precisa do Poder Judiciário deve estar ciente de que vai esperar por um longo tempo para uma solução, ainda que se trate de questões de menor relevância.

A realidade é que, em face dos nossos conhecidos problemas estruturais, o sistema de resolução dos conflitos pela via jurisdicional não tem alcançado os seus objetivos, disso resultando que, a depender de uma solução adjudicada, não chegamos à tão sonhada pacificação social, que, afinal, é a finalidade da lei, do Direito e a razão da existência do Poder Judiciário.
Diante dessa realidade insofismável, que, por vezes, resulta na quebra da credibilidade do Poder Judiciário, tenho para mim que somente uma mudança definitiva de cultura terá o poder minorar os nossos problemas.

Nessa direção, ou seja, da necessária mudança de cultura, o Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2010, editou a Resolução 125, com o escopo de organizar, nacionalmente, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, mas também os serviços que envolvam os meios alternativos de solução de conflitos, especialmente os consensuais, como a conciliação e a mediação.
Apesar do tempo decorrido da edição da referida Resolução, constato que não são poucos os que ainda optam, desnecessariamente, pelo via adjudicada para resolução dos conflitos, resistindo às vias alternativas para solucioná-los, mesmo após o advento do Novo CPC e ainda que saibam que a judicialização, definitivamente, não é o caminho mais racional nesse sentido, em face, sobretudo, do excesso de demanda nos Tribunais, a inviabilizar a tão sonhada razoabilidade de tempo na entrega do provimento jurisdicional.

Nesse panorama, “para que o Sistema Judiciário como um todo possa cumprir o seu papel com eficiência e em tempo razoável, deve ser reservado ao Poder Judiciário, fundamentalmente, causas mais significativas que exijam o controle de legalidade nos casos de lesão ou ameaça de lesão a direitos. ”(Roberto Portugal Bacellar, in Integração de Competências e Mudança de Cultura para o Desempenho das Atividades de Conciliador e Mediador).

É preciso reafirmar algo que todos nós que militamos na esfera judicial já sabemos há bastante tempo: é falsa a conclusão de que de somente uma sentença aplicando a lei ao caso concreto, de cuja disputa resultam sempre vencedores e vencidos, pacifica a sociedade.

A tão almejada pacificação social, é preciso ter presente, não se alcança, necessariamente, com uma sentença. Desde a minha compreensão, ela só tenderá a ser alcançada quando as pessoas forem capazes de sentar a uma mesa de negociação, nos ambientes próprios para essa finalidade, que tenho denominado de espaços de racionalidade, onde as partes se empoderam, assumem as rédeas do seu destino, resolvem por si os seus problemas, cedendo aqui e ganhando acolá.

É preciso ter em linha de conta que, numa disputa de interesse em face de uma pretensão resistida, com duas partes em disputa, litigando com todas as suas forças, quando um ganha e a outra necessariamente perde, a tão sonhada pacificação social se transforma numa quimera.

Como leciona a saudosa professora Ada Pellegrini Grinover, a pacificação social “não é alcançada pela sentença, que se limita a ditar autoritativamente a regra para o caso concreto, e que, na grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela costuma insurgir-se com todos os meios na execução; e que, de qualquer modo, se limita a solucionar a parcela de lide levada a juízo, sem possibilidade de pacificar a lide sociológica, em geral mais ampla, da qual aquela emergiu, como simples ponta do iciberg”(in Os Fundamentos da Justiça Conciliativa).

Diante da constatação de que somente pela via consensual conseguiremos resultados que condigam com a tão sonhada pacificação social é que, no Tribunal de Justiça do Maranhão, na condição de presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, tendo o luxuoso e determinado auxílio do colega Alexandre Lopes Abreu e de uma equipe dedicada de funcionários, além do apoio inexcedível do presidente José Joaquim Figueiredo dos Anjos e do Corregedor Marcelo Carvalho Silva, temos implementado uma política arrojada de estímulo às vias alternativas de solução de demandas, disponibilizando aquilo que tenho denominado de espaços de racionalidade, que são os nossos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, nos quais, com profissionais qualificados, buscamos solucionar, pela via consensual, os litígios que decorrem da vida em sociedade, na certeza de que, com isso, damos a nossa contribuição para uma vida menos conflituosa.

É isso.

O JULGAMENTO DO SEMELHANTE A PARTIR DAS NOSSAS PRÉ-COMPREENSÕES

As maiores e mais instigantes experiências que tive no exercício do múnus público, como promotor de justiça e magistrado, foram as que resultaram do meu convívio com os seres humanos dos mais diversos matizes.
Dessa convivência enriquecedora, a grande lição que assimilei foi a de que do ser humano podemos esperar tudo, uma vez que, todos haverão de concordar, ele não cansa de se superar. Nesse sentido, quando pensamos já ter visto de tudo, o ser humano, para surpreender, aparece com alguma novidade.
Ante essa elementar constatação de que o ser humano vive para surpreender, é que o legislador deve estar sempre atento, pois, afinal, as novas figuras típicas aparecem exatamente em face da capacidade que o homem tem de inovar nas trapaças, de se superar nas suas ações.
Outra lição que assimilei nessa convivência com pessoas das mais variadas colorações é quanto à incapacidade que temos de incursionar sobre a alma do ser humano.
Dessa incapacidade resulta que, na nossa convivência com o semelhante, julgamos, precipitada e impiedosamente, a sua conduta, mesmo que seja necessário perceber as razões pelas quais ele agiu assim e não assado.
Às vezes, nas conversas informais, digo que a minha especialidade, depois de mais de trinta anos convivendo com criminosos dos mais diversos perfis, com testemunhas e com profissionais do direito das mais diversas colorações, é conhecer gente, para, em seguida, racionalmente, concluir ser essa uma tarefa quase impossível.
Digo isso porque, na verdade, conhecer a alma do ser humano é tarefa quase impossível mesmo para os profissionais que se prepararam para essa faina, pois, afinal, como diz o ditado popular, o lobo pode perder os dentes, mas a sua natureza jamais.
Diante dessa constatação, sou forçado a reconhecer que, apesar do tempo de convivência com pessoas dos mais diversos perfis, nem eu e nem ninguém é capaz de dizer, verdadeiramente, que conhece o ser humano.
E isso é fácil de constatar, posto que os exemplos dessa impossibilidade permeiam a nossa vida.
Com efeito, nos mais diversos ambientes somos instados, a toda hora, a reafirmar a nossa incapacidade no que diz respeito a conhecer o ser humano. Logo, essa é a razão de nos surpreendermos, a cada momento, com reações de congêneres que imaginávamos não ser possível.
Por isso, invariavelmente, diante da notícia dessa ou daquela atitude do ser humano, tomados de surpresa, costumamos, numa exclamação, simplesmente dizer: “Não é possível!”.
Apesar das dificuldades que todos nós temos de conhecer o semelhante, insistimos, por teimosia ou necessidade, nessas tentativas quase vãs. E o que é ainda mais grave: insistimos em julgá-lo, mesmo sem dever fazê-lo, porque, efetivamente, não somos capazes mesmo de conhecer a alma de ninguém; às vezes, até a nossa própria alma nos surpreende.
A verdade é que, reconheçamos, temos por hábito julgar o ser humano, apesar de não conhecê-lo.
Eu, você, todos, enfim, estamos sendo submetidos, a todo momento, aos julgamentos do semelhante. E, o mais grave, é que somos julgados, sempre, a partir das idiossincrasias de quem nos julga; e, da mesma forma, agimos em relação ao semelhante a partir das nossas pré-compreensões.
Não há uma só ação de um ser humano que não passe pelo filtro censório de outro ser humano.
Para julgar um colega, um vizinho, um irmão, um desafeto, temos sempre o espírito atilado, como se fossemos capazes, insisto na afirmação, de conhecer a alma das pessoas que julgamos.
Mas é preciso ter presente, e digo isso em face da minha experiência de vida e não em face de qualquer conhecimento teórico acerca do tema, que, para julgar um semelhante com grande probabilidade de minimizar os erros de avaliação, só se fôssemos capazes, o que não somos, de ver o mundo a partir dos seus olhos.
O mundo que meu semelhante vê sob os seus olhos não é, definitivamente, o mundo que vejo, disso resultando que quando me atrevo a julgar uma atitude do semelhante, eu o faço com grande possibilidade, quase inevitável possibilidade, de julgá-lo muito mal. Daí porque, quase sempre, cometemos injustiça quando nos atrevemos a condenar essa ou aquela atitude do semelhante, à vista do que os nossos olhos enxergam.
É por isso que se diz que, diante de um fato, a lente, os olhos do intérprete fazem a diferença.
Diante do mesmo fato, da mesma atitude, dependendo da posição do intérprete, podemos ter compreensões diferentes.
Para ilustrar como o homem, julgando o ser humano a partir da sua lente, da sua visão de mundo, pode cometer injustiça, cito o exemplo a seguir:
Um soldado americano foi condecorado por ato de bravura, na Guerra do Vietnã, e expulso das forças armadas americanas por sua orientação sexual.
É dele a frase definitiva e que bem retrata o que pretendo refletir nessas linhas:
“Por matar vários homens fui condecorado; por amar um homem fui expulso das forças armadas”.
O mundo visto pela lente do soldado, como se vê, diferia, diametralmente, do mundo visto pelos olhos dos seus comandantes, tendo sido ele julgado não em face do mundo que seus olhos enxergavam, mas pelo mundo que enxergavam os olhos dos seus superiores.
É isso.

A PLEA BARGAIN EM DISCUSSÃO

Está na ordem do dia uma proposta do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, para viabilizar a introdução no Brasil da plea bargain, que nada mais é que um modelo por meio do qual o acusado aceita se submeter a uma pena, sem processo, em condições, digamos, vantajosas, assumindo, de logo, a autoria do crime.

Esse modelo, de origem na common low, é popular nos Estados Unidos, de onde se pretende fazer a importação para o Brasil, convindo anotar que, mesmo na América, ele não passa ao largo de questionamentos, em face dos números que evidenciam a sua propensão para injustiças.

Com efeito, segundo noticiou o jornal O Globo, do último dia 03 de fevereiro, em pelos menos 25% das condenações revertidas em 2017, nos Estados Unidos, os réus que cumpriam penas tinham se declarado culpados, a evidenciar os furos do modelo, mesmo numa nação de primeiro mundo, com instituições muito mais estruturadas e em condições de prestar um serviço mais acurado que as instâncias de controle brasileiras.

A pergunta que se faz, então é a seguinte: se nos Estados Unidos o modelo proporciona injustiças, levando inocentes à cadeia, que é tudo o que não desejamos, o que esperar da aplicação desse mesmo modelo no Brasil, onde as agências de controle agem de forma deficiente e, principalmente, discriminatórias, cujas ações estão voltadas, como regra, para oprimir os miseráveis selecionados pelo sistema penal?

A verdade é que punimos pouco, e o pouco que punimos o fazemos muito mal, não só em face da seletividade do sistema, mas, sobretudo, porque todos nós sabemos que as provas amealhadas no ambiente judicial são quase sempre caudatárias do que se produziu em sede preliminar (inquérito policial), contaminadas, muitas vezes, pelos mais diversos vícios de procedimento e de produção, cujas consequências se traduzem em erros judiciários só excepcionalmente reparados.

Nessa realidade, é forçoso reconhecer que não são poucos os que são punidos com a conivência das instâncias persecutórias, quase sempre em face de “provas” obtidas nos inquéritos policiais, as quais, de regra, por opção do órgão acusador, são apenas repetidas em sede judicial, sem maiores rigores críticos, empoderando, perigosamente, as instâncias persecutórias primárias.

Vou mencionar apenas dois exemplos da falibilidade/fragilidade do sistema, para demonstrar o quão perigosa é a adoção, por essas plagas, da plea bargain, sem descurar, claro, que os fatos narrados nos exemplos, pela proposta do Ministro Sérgio Moro, poderão não se enquadrar nos pressupostos autorizadores de uma solução negociada, mas que, ainda assim, têm sua utilidade para as reflexões que faço aqui e agora, como uma reafirmação incontestável de que, como diz o gigante Elio Gaspari, o Brasil convivo com leis suecas e com uma realidade haitiana.

Primeiro exemplo: um cidadão preso por trazer consigo uma pequena porção de maconha, se dos autos constarem depoimentos dos agentes públicos (policiais) de que tal diligência ocorreu devido a denúncias anônimas de que o réu seria conhecido como traficante, o indigitado, podem ter certeza, uma vez ratificadas as informações dos agentes estatais em sede judicial – e essa é a tendência -, será inapelavelmente condenado como traficante – e, quiçá, por associação para o tráfico – sem que seja exigida do órgão acusador, no caso o Ministério Público, a adição, ao acervo probatório, de qualquer outro dado que possa emprestar conforto às “provas” produzidas pela instância persecutória primária, ainda que a quadra fática possa ter sido tão somente fruto de uma vendeta dos agentes públicos, o que nunca pode ser descartado.

Outro exemplo. Nos crimes contra o patrimônio (roubo e furto, por exemplo), cuja principal testemunha é, quase sempre, o ofendido, qualquer pessoa suspeita da prática do crime poderá ser presa, processada e condenada, tendo por escopo probatório, como prova decisiva e definitiva, apenas a palavra do ofendido, desconsiderando-se, na maioria das vezes, a falibilidade da sua memória e outros vícios persecutórios, do que pode resultar, com muita probabilidade, uma condenação injusta, como temos testemunhado muitas vezes.

Nos dois cenários acima descritos, apenas a guisa de ilustração, conquanto admita-se a absoluta fragilidade persecutória, nenhum réu, ainda que não tenha cometido o crime, mas se sentido acossado, pressionado pelo sistema, escapara de uma punição, disso inferindo-se que, tenha ou não cometido o crime, acenada a possibilidade de um acordo para diminuição da reprimenda, ele tenderá, em face de sua situação de absoluta fragilidade ante o Estado acusador, sentar-se a uma mesa de negociação, em face mesmo de sua condição de miserabilidade, ciente de sua condição de alvo preferencial das agências de controle.

Nesse ambiente, creia, não vejo como transigir com a introdução entre nós da plea bargain, ante a perspectiva, sempre presente, de que muitos acordos poderão ser firmados com vícios de consentimento, em face mesmo da situação de absoluta fragilidade de um acusado ante a força persecutória do Estado, quase sempre desleal em face dos mais pobres.

É verdade que a plea bargain imprime celeridade às decisões, resultando dele, ademais, a economia de recursos e de tempo, em face, por exemplo, dos chamados crimes solitários, ou seja, praticados por uma só pessoa.

A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: em nome da celeridade, da abreviação do tempo, da economia de recurso, é possível a defesa de um sistema que tende a multiplicar os erros judiciários, a perpetuar a discriminação penal?

Impende anotar que não vejo, como alguns, sob a perspectiva da legalidade, a inviabilidade da adoção do sistema, pois, como sabido, nas questões afeitas aos Juizados Especais Criminais já é prevista a possibilidade de acordos.

Acho, da mesma forma, que nem a Constituição Federal e nem as leis ordinárias proíbem a plea bargain.

A minha análise se circunscreve tão somente às questões que condizem com as injustiças do sistema penal brasileiro, cujas ações persecutórias, porque seletivas, podem levar a injustiças, se o acusado for instado a aceitar um acordo, em face de uma acusação frágil a qual, muitas vezes, só se justifica em face da sua condição de miserável, da opção preferencial do sistema penal pelos mais pobres.

É isso.