A propósito da prova oral, em face da reforma processual penal introduzida pela Lei 11.690/2008, publico a seguir duas decisões exemplares – uma do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e outra, do Superior Tribunal de Justiça – , as quais espancam eventuais dúvidas de como deva ser colhida a prova oral, em face da novel legislação.
Primeiro, a pioneira decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão relatado pelo eminente Desembargador Amilton Bueno de Carvalho:
Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul – 5ª Cam. Crim.
AP 70030112387
j. 17.06.2009
Relatório
Na Comarca de Porto Alegre, o Ministério Público denunciou R. S. R. como incurso nas sanções do art. 157, caput, c/c o art. 61, I, ambos do Código Penal.
Instruído o feito – recebimento da denúncia (19/09/2008), citação, resposta à acusação (fls. 60/61), decisão do art. 399, do CPP (fl. 63), coleta de prova oral (fls. 87/92 e 110/116) e memoriais –, sobreveio sentença (fls. 132/136) condenando o réu como incurso nas sanções do art. 157, caput, do Código Penal. (…)
Inconformados com a decisão do juízo a quo, o Ministério Público e a defesa apelaram. Ambiciona o Parquet a condenação do réu pela prática do delito de roubo, como constante da denúncia. A defesa, por sua vez, requer a absolvição do réu por insuficiência probatória. Alternativamente, postula o afastamento da agravante da reincidência e da pena de multa.
(…)
Votos
Com a devida vênia do colega singular, estou a acolher o apelo defensivo, em consequência do que resta prejudicado o recurso acusatório.
Antes de analisar o mérito, impende proceder ao decote da prova oral das fls. 87/92, na linha do que decidido por esta Câmara na apel. crim. nº 70028349843.
Extrai-se dos autos que o Ministério Público, embora devidamente intimado a comparecer em tal audiência (fl. 64), optou por nela não comparecer, tendo o eminente magistrado, então, contra a nova redação legal do art. 212 do CPP, assumido as rédeas da acusação na formulação das perguntas, antecipando-se até mesmo à defesa, que só teve a oportunidade de perguntar aos depoentes depois de esgotadas as perguntas do magistrado – e tão incisiva foi a atuação da autoridade judiciária que à defesa nada restou a perguntar.
No precedente acima referido, externei o entendimento de que tal proceder acarreta a nulidade do processo, com as seguintes considerações:
(…)(1)
Em recentíssima decisão, o min. Jorge Mussi, da 5ª Turma do STJ, também caracterizou o quadro como de nulidade:
(…)(2)
A mensagem da reforma processual foi claríssima: ao magistrado, enquanto “destinatário” das provas, não é dado pretender produzi-las a seu talante, como se estivesse a perseguir determinada versão para os fatos, pois ao assim agir estaria, indisfarçavelmente, tomando parte da acusação ou da defesa, olvidando-se da imparcialidade que há de manter.
A reforma processual, no ponto, veio em boa medida, pois não se admite que o magistrado, na ausência casual do Ministério Público, arvore-se na função deste, dispondo a Lei, expressamente, que é função das partes produzir a prova oral através das perguntas cruzadas aos depoentes. Bem lembra o colega Aramis Nassif, jamais se ouviu falar de juiz que, na ausência do defensor, se autonomeasse patrono do acusado, para suprir a falta; jamais se ouviu falar do juiz que, no atraso do acusador, oferecesse denúncia acusatória em seu lugar; jamais se ouviu falar do juiz que oferecesse alegações finais em favor de qualquer das partes, para suprir o descaso momentâneo dos patronos; e o mesmo deveria ocorrer com a prova: porque seria dado ao juiz buscar a produção das provas ao gosto do acusador ou da defesa?
Assim, com a devida vênia, tenho que a nulidade restou caracterizada – entendimento agora revigorado pela abalizada jurisprudência do STJ.
Entretanto, desde o precedente pioneiro desta Câmara, melhor meditando sobre o tema, conclui ser necessário estabelecer algumas distinções.
Estando as partes presentes na audiência, mas sendo elas preteridas na prerrogativa de primeiro perguntar, como ocorreu no precedente do STJ, parece prudente tratar o caso como nulidade do processo, já que acusação e defesa tinham interesse em produzir a prova de acordo com a ritualística legal (CPP, art. 212), só não o fazendo porque ceifadas pela autoridade judiciária. Nesse caso, as partes deverão recorrer, invocando o prejuízo sofrido, e a única solução plausível será a repetição do ato viciado, mediante a observância da ritualística legal.
No caso de ausência do Ministério Público na audiência de instrução (a ausência da defesa sempre será suprida, ou com a nomeação de defensor ad hoc, ou com o adiamento do ato, se a falta for justificada), como ocorre na espécie, penso ser possível e mais adequado tratar o caso como nulidade da prova respectiva, afastando-se-a do bojo probatório e permitindo-se o imediato julgamento do feito. E dou as razões de tal entender:
Primeiro, até mesmo em paridade ao tratamento dado à defesa (CPP, art. 265, § 2.º), o Ministério Público não tem a prerrogativa de adiar indefinidamente as audiências instrutórias com a sua ausência injustificada. Na impossibilidade de nomear-se promotor ad hoc, só resta possível a conclusão de que ou o Parquet irá justificar a sua ausência com justa razão e a inquirição será renovada, ou, sem o que magistrado o substitua na acusação, a audiência realizar-se-á somente com as perguntas da defesa e a “complementação” do magistrado – ciente de que esta “complementação” recai apenas sobre os pontos mal esclarecidos, passando longe de ser uma oitiva exaustiva no interesse da acusação. Assim, a ausência injustificada do Ministério Público na audiência há de ser tomada como verdadeira desistência da produção das provas acusatórias. E, no caso dos autos, se o Ministério Público desistiu da produção das provas relativas à audiência das fls. 87/92, não haveria sentido algum em determinar-se a renovação do ato, sendo imperioso, apenas, desconstituir os atos probatórios produzidos pelo magistrado por sua conta e em desacordo com a legalidade.
Segundo, a renovação da audiência nula só viria em benefício da acusação, que teria uma nova chance para produzir as provas acusatórias quando ela mesma foi a causadora da nulidade – falta à audiência sem justo motivo – e sequer a alegou em benefício próprio, pelo que a declaração de nulidade esbarraria na súmula nº 160 do STF.
Terceiro, a nova legislação permite taxar de prova ilícita aquelas “obtidas em violação a normas constitucionais e legais” (CPP, art. 157), sendo exatamente este o caso, já que a inquirição levada a efeito pelo magistrado – diz, com acerto, o precedente do STJ – viola a literalidade do art. 212 do CPP e o “devido processo legal” (garantia constitucional). Entendendo-se a inquirição nula como prova ilícita, nada impede que o feito seja julgado de plano, com o afastamento da prova viciada, sem a necessidade de renovação da sentença e do ato processual maculado – como disse, diferente seria se o acusador tivesse comparecido na audiência, assim demonstrando interesse na produção da prova de modo regular, só não o fazendo porque impedido pelo juízo.
Quarto, não deixaria de ser uma “violência” à independência do primeiro grau de jurisdição obrigar-lhe à prolação de novo édito sentencial à vista de outro bojo probatório, que não aquele que o próprio juízo entendeu pertinente valorar num primeiro momento. Vale lembrar, longe de simples retórica, que a jurisdição de segundo grau é apenas prevalente sobre a de primeira instância, e não melhor ou mais qualificada – pelo contrário, é igualmente falível.
Em resumo, se apenas nesta instância se evidencia a ilicitude da prova colhida diretamente pelo magistrado, à revelia do interesse probatório das partes, nada impede, no sistema processual vigente, dada a ausência de reclame para a renovação do ato probatório viciado, que o julgamento tenha prosseguimento imediato, com o simples afastamento da prova ilícita.
São as razões que me levam a desconsiderar, como prova válida, a audiência das fls. 87/92.
Restam, então, o relato do PM F. R. e o interrogatório do acusado.
Pois bem.
O PM F. disse que foi acionado para atender um roubo a pedestre que havia ocorrido na Rua Jerônimo Coelho, sendo que o acusado estaria detido na Rua Riachuelo por populares; não presenciou o crime, nem mesmo a detenção do acusado; quando chegou ao local, o detido já não estava mais com os pertences da vítima, nem mesmo trazia arma consigo; os populares já haviam restituído os bens à vítima; colheram a versão da vítima e retiraram o acusado do local, pois o pessoal “estava meio agitado”.
O réu, por sua vez, negou a autoria do crime. Disse que estava retornando do trabalho, caminhando no centro, quando viu os seguranças de uma loja perseguindo um rapaz; como estava por perto, fumando maconha, os seguranças pensaram que o interrogando “estava junto” com o indivíduo que era perseguido; foi agarrado e detido até a chegada da PM; como estava em liberdade condicional, acabou respondendo por um delito que não cometeu.
Como se vê, o réu nega a autoria, alegando ter havido equívoco por partes dos populares que o detiveram até a chegada da polícia. E a única testemunha regularmente ouvida – o PM F. – nada soube esclarecer da prática do assalto ou da perseguição/detenção do acusado – quando chegou no local, a captura já estava conclusa, sendo que nem mesmo viu os pertences da vítima sendo retirados do acusado e restituídos à vítima.
Ora, tal quadro probatório não é suficiente para o condenar. A tese do acusado é plausível – considerado o elevado número de pessoas que transitam diariamente no centro de Porto Alegre – e não foi destruído pelo restante da prova.
Como sabido, o direito penal não se contenta com conjecturas, nem mesmo com a forte probabilidade da autoria: exige a convicção plena do julgador, sua base ética indeclinável. Em outras palavras, a dúvida, menor que seja, milita sempre em favor do acusado.
Pelo exposto, prejudicado o apelo acusatório, dá-se provimento ao defensivo para, declarada a nulidade da prova oral colhida às fls. 87/92, absolver o réu da imputação que lhe foi dirigida, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.
Notas
(1) Nota: a decisão transcrita pelo relator (AP 70028349843) foi divulgada no Boletim 198 (Jurisprudência, p. 1257/1258).
(2) Nota: a decisão transcrita pelo relator (HC 121.216) foi divulgada no Boletim 200, com anotações doutrinárias feitas por Fernanda Regina Vilares e Leopoldo Stefanno Leone Louveira (Jurisprudência, p. 1273/1275).
Amilton Bueno de Carvalho
Relator
A seguir, a decisão do Superior Tribunal de Justiça, com o voto condutor do Ministro Jorge Mussi:
Superior Tribunal de Justiça
5ª Turma – HC121.216
DJe 01.06.2009
Trata-se de habeas corpus , com pedido de liminar, impetrado pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, em favor de R. S. S., contra acórdão proferido pela 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça daquele Distrito, que negou provimento à Reclamação nº 20080020117923 ajuizada nos autos do Processo-Crime nº 2007.03.1.006253-0, da Primeira Vara Criminal da Circunscrição Judiciária de Ceilândia/DF, em que restou condenado o paciente à pena de 5 (cinco) anos, 7 (sete) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime fechado, pela prática do delito disposto no art. 157, caput, do Código Penal.(…)
Narrou o impetrante que, designada audiência de instrução e julgamento, esta se realizou em desacordo com as normas contidas no art. 212 do Estatuto Processual Penal, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.690/2008, pois houve inversão na ordem de formulação das perguntas. Entendeu que referido procedimento violou o citado dispositivo, assim como o sistema acusatório (art. 129, I, da CF), o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), causando nulidade absoluta do feito, que prescinde da demonstração do efetivo prejuízo e de dilação probatória ao seu reconhecimento. (…)
A douta Subprocuradoria-Geral da República opinou pela concessão da ordem.
É o relatório.
Voto
O senhor ministro Jorge Mussi (relator): (…)
A peça vestibular foi ofertada em agosto de 2007, sendo devidamente recebida pela autoridade judicial, que designou audiência para o interrogatório do paciente (fls. 30), entretanto, a partir de agosto de 2008 entrou em vigor a Lei nº 11.690, que deu nova redação ao art. 212 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
“Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
“Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.
Emerge do termo que descansa a fls. 31 que, realizada audiência de instrução e julgamento no dia 14 de agosto do ano passado, quando já em vigor a legislação citada, oportunidade em que foram ouvidas as eventuais vítimas, o ato não se concretizou de acordo com o novel rito, tendo, então, o Órgão Ministerial, antes que se procedesse a oitiva, requerido que fosse obedecido o inserto nas normas processuais vigentes, sendo, porém, o pleito indeferido pelo Juízo a quo, ao fundamento de que “tal dispositivo legal não trouxe qualquer inovação com relação ao sistema outrora estabelecido a respeito da presidência dos atos procedimentais realizados no curso das audiências, qual seja, sistema presidencial, o qual permanece em pleno vigor e, nessa condição, concede ao Magistrado o poder/dever de, caso queira, argüir primeiro as testemunhas arroladas pelas partes”.
Nesses termos, a audiência foi realizada em conformidade com o ordenamento processual anteriormente em vigor (fls. 32 e 33), fato que deu azo ao ajuizamento de reclamação por parte do Ministério Público perante o Tribunal indicado como coautor (fls. 34 a 44), ressalta-se, postulação elaborada pelo mesmo profissional que, no uso de suas atribuições, ofertou denúncia contra o paciente.
A Corte Originária, no entanto, mesmo reconhecendo que no Juízo Singular incorreu-se “em erro de procedimento “, negou provimento à reclamação, ao argumento de que, in casu, não restou comprovado o necessário prejuízo para nulificar o ato, sendo que da audiência o Ministério Público participou, sem que se observasse qualquer comportamento irregular por parte do Magistrado (fls. 53 a 61). (…)
Não obstante haja resistência pertinente às mudanças procedidas na legislação processual penal, consoante salientado por ocasião do deferimento da pretensão sumária, é certo que com a nova redação dada ao aludido dispositivo, “o juiz simplesmente poderá complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos, cabendo-lhe ainda não admitir as perguntas que não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já feita” (Souza, José Barcelos de. In: Boletim IBCCRIM . “Novas leis de processo: inquirição direta de testemunhas. Identidade física do juiz”. ano 16, nº 188, p. 15, julho de 2008).
Por oportuno, mister transcrever lição da autoria de Eugênio Pacelli de Oliveira, da obra Curso de Processo Penal: “A Lei 11.690/08 trouxe importante alteração no procedimento de inquirição de testemunhas. “Ali se prevê que as perguntas das partes serão feitas diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem a repetição de outra já respondida (art. 212, CPP). E, mais ainda, prevê que o juiz poderá complementar a inquirição, sobre pontos eventualmente não esclarecidos (art. 212, parágrafo único, CPP). “Observa-se, então, que a medida encontra-se alinhada a um modelo acusatório de processo penal, no qual o juiz deve assumir posição de maior neutralidade na produção da prova, evitando-se o risco, aqui já apontado, de tornar-se o magistrado um substituto do órgão de acusação. Assim, as partes iniciam a inquirição, e o juiz a encerra” (11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 370).
Ao dissertar quanto à colheita da prova testemunhal, Aury Lopes Jr. assinala: “O antigo sistema ‘presidencial’, onde as perguntas eram feitas ao juiz e este as (re)formulava à testemunha, felizmente foi abandonado com a nova redação do art. 212
do CPP” (Direito processual penal e sua conformidade constitucional . 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 602).
E comentado o dispositivo citado, assevera que “Agora as perguntas serão diretas, com o juiz atuando como filtro, regulador dessa comunicação, para evitar a indução ou mesmo constrangimento de testemunha. Pela leitura do parágrafo único, a atuação do juiz, somente se dará sob os pontos não esclarecidos, ou seja, uma típica atividade complementar, secundária, portanto “ (p. 602). (…)
Não é demais destacar os comentários à alteração procedimental feitos na respeitável obra As reformas no processo penal, da qual se extrai a lição de Antônio Magalhães Gomes Filho, no sentido de que a referida mudança trouxe o método de exame direto e cruzado da prova oral utilizado também na Inglaterra e na Itália, abolindo o antigo sistema presidencial quanto à formulação das perguntas e reperguntas por parte do juiz, inerente ao processo inquisitório, adotando, assim, o sistema adversarial anglo-americano, consistente primeiramente no direct-examination – por parte de quem arrolou – e posteriormente no cross-examination – sendo submetido à parte contrária, leia-se:
“A cross-examinationconstitui um traço saliente do sistema processual da common law no tocante à produção das provas e sempre foi visto pela doutrina deste WIGMORE, como o meio mais eficaz para a descoberta da verdade” (São Paulo: RT, 2009, p. 285).
Aliás, naqueles países, o aludido método é considerado elemento essencial e é tido como garantia fundamental pela Constituição, sendo, ainda, salientado pelo citado autor que no “cross-examinationevidenciam-se as vantagens do contraditório na coleta do material probatório, uma vez que, após o exame direto, abre-se à parte contrária, em relação à qual a testemunha é presumidamente hostil, um amplo campo de investigação. No exame cruzado, é possível fazer-se uma reinquirição a respeito dos fatos já abordados no primeiro exame (cross-examination as to facts), como também formular questões que tragam à luz elemento para a verificação da credibilidade do próprio depoente ou de qualquer outra testemunha (cross-examination as to credit)” (p. 286). E conclui: “Trata-se, portanto, de mecanismos característicos de um sistema acusatório puro, cuja função é fundamental não somente para uma apuração mais correta dos fatos, mas principalmente para atestar a correção do debate dialético entre as partes, servindo igualmente à legitimação das decisões.” (p. 287).
Constata-se, então, que no caso vertente restou violado due process of law constitucionalmente normatizado, pois o art. 5º, inciso LIV, da Carta Política Federal, preceitua que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, e na espécie o ato reclamado não seguiu o rito estabelecido na legislação processual penal, acarretando a nulidade do feito, porquanto, a teor do art. 212 do Código Instrumental, a oitiva das testemunhas deve ser procedida com perguntas feitas direta e primeiramente pelo Ministério Público e depois pela defesa, sendo que na hipótese, o Magistrado não se restringiu a colher, ao final, os esclarecimentos que elegeu necessários, mas realizou o ato no antigo modo, ou seja, efetuou a inquirição das vítimas, olvidando-se da alteração legal, mesmo diante do alerta ministerial no sentido de que a audiência fosse concretizada nos moldes da vigência da Lei nº. 11.690/2008. (…)
Então, além de a parte ter direito à estrita observância do procedimento estabelecido na lei, conforme assegurado pelo princípio do devido processo legal, sendo importante relembrar que na espécie o paciente teve proferido julgamento em seu desfavor, certo é que, diante do novo método utilizado para a inquirição de testemunhas, a colheita da referida prova de forma diversa, ou seja, pelo sistema presidencial, indubitavelmente acarretou-lhe evidente prejuízo. Nesse passo, em que pese os judiciosos fundamentos expostos no aresto hostilizado, o qual mesmo admitindo que houve a inversão apontada pelo Ministério Público, não anulou a audiência procedida em desacordo com o art. 212 do Diploma Processual Repressivo, resta suficientemente demonstrada a nulidade decorrente do ato em apreço, em razão de evidente ofensa ao devido processo legal, sendo mister reiterar que contra o paciente foi proferida sentença condenatória, édito repressivo que encontra suporte nas declarações colhidas em desacordo com a legislação em vigor, bem demonstrando que, a despeito de tratar-se ou não de nulidade absoluta, houve efetivo prejuízo, quer dizer, é o que basta para se declarar nulo o ato reclamado, assim como os demais subsequentes, e determinar-se que outro seja realizado dentro dos ditames legais.
Diante do exposto, confirmando-se a medida liminar deferida, concede-se a ordem para anular a audiência realizada em desconformidade com o contido no art. 212 do Código de Processo Penal e os atos subsequentes, determinando-se que outra seja procedida, nos moldes do referido dispositivo.
É o voto.
Jorge Mussi
Relator
Em virtude de se tratar da primeira decisão sobre o tema no âmbito do STJ, além de publicar seu teor, trazemos abaixo duas anotações de nossos colaboradores a fim de enriquecer o debate. Fica aqui, mais uma vez, o convite para que todos façam seus comentários à jurisprudência mais relevante e recente. Sintetize sua participação em 3.000 toques, em trabalho inédito.
Jurisprudência Anotada
É a primeira vez em que o STJ analisa a aplicação da alteração perpetrada pela Lei n.º 11.690/2008 no art. 212 do CPP. A reforma foi de grande valia, e almejou inserir elementos do sistema acusatório no processo penal brasileiro. Ocorre que alguns juristas, contagiados pelo conhecimento sobre o sistema anglo-saxão, realizaram interpretações praeter legem, criando, para a letra da lei, significados além de seu conteúdo estrito.
Na nossa opinião, é o caso deste acórdão. O rel. min. Jorge Mussi entendeu que o art. 212 adotou o sistema do exame cruzado e considerou nulo o julgamento em que as perguntas são iniciadas pelo julgador, mas interpretação diversa e mais literal é possível.
De fato, a afirmação de que o novo art. 212 inseriu o cross-examination no direito brasileiro tem sido constante na doutrina. No entanto, o estudo do sistema inglês nos revela que o exame cruzado é muito mais do que a mera possibilidade de formulação de perguntas diretas pelas partes como fez o art. 212. O cross-examination é a imposição de que a acusação faça a inquirição das testemunhas e após, obrigatoriamente, a faça a defesa, com a possibilidade de reexame pelo inquisidor originário. O objetivo é afastar inconsistências dos depoimentos. Ao juiz é resguardada apenas a função de manutenção da ordem e realização de perguntas suplementares. (Spencer, John R., O Sistema Inglês, in Mireille Delmas-Marty (org.), Processos Penais da Europa, trad. Fauzi Hassan Choukr, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2005).
Nesse contexto, temos que, ao prevalecer o entendimento do julgado em comento, não estaremos diante de qualquer equívoco, mas tão somente de uma interpretação além da lei. Assim, para instigar a reflexão, chamamos atenção para a possibilidade de entender que não se impediu o juiz de formular perguntas antes das partes, tampouco se determinou que essas inaugurassem a inquirição ou estabeleceu-se a necessidade do exame cruzado. Apenas se garantiu a possibilidade de as partes formularem perguntas pessoalmente, o que já é uma evolução.
Fernanda Regina Vilares
O STJ, em lapidar e recentíssimo julgado, mais uma vez demonstrou a preocupação com o respeito ao devido processo legal e aos preceitos garantistas previstos na Constituição Federal, todos tão caros ao Estado de Direito.
Nesse momento de ingresso ainda recente da reforma processual penal, a 5.ª Turma, ao examinar o alcance da nova redação do artigo 212 do CPP, não titubeou em demarcar importante posição, à unanimidade, segundo a qual deve ser assegurada às partes a prerrogativa de fazer perguntas diretamente às testemunhas nos moldes da cross-examination oriunda do sistema anglo-saxão.
Com efeito, a decisão apenas deu voz ao posicionamento de vários processualistas que foram uníssonos em reconhecer o avanço significativo da mudança legislativa para a consolidação do modelo acusatório no processo penal. Não à toa o julgado, até mesmo diante da novidade da matéria, teve o cuidado de destacar o escólio maciço da doutrina, figurando entre eles lúcidos constitucionalistas — o que revela a profundidade da questão.
A despeito de opiniões em contrário, não há qualquer sombra de dúvida sobre a melhor exegese do referido art. 212 do CPP — cuja redação, aliás, não poderia ser mais clara: inicia-se a questionar a testemunha a parte que a arrolou, abrindo-se a oportunidade para as perguntas da parte contrária (cross-examiner), seguindo-se com esclarecimentos judiciais apenas e tão-somente dos pontos obscuros.
Ao Juiz permanece a função de fiscalizar a lisura da colheita do depoimento, podendo indeferir perguntas impertinentes ou que possam exercer pressão indevida sobre a testemunha. Com isso, busca-se garantir a imparcialidade do Julgador, evitando-se, assim, uma indesejável atividade “investigativa” por parte do Estado-Juiz. No entanto, caso o Magistrado inove em seus “esclarecimentos”, aprofundando-se na tese acusatória — como, infelizmente, é fato corriqueiro no cotidiano forense —, entendemos possível a formulação de outras questões pela defesa, sob pena de nulidade.
Um último detalhe do precedente analisado chama a atenção: trata-se de habeas corpus impetrado por Promotor de Justiça — que havia protestado contra a atitude do Juízo de origem —, com parecer do MPF pela concessão do writ, o que demonstra o grau de maturidade dessas instituições. Afinal, a luta contra o crime não pode nunca atropelar as garantias individuais.
Assim, em nosso sentir, oxalá o conteúdo desse julgado reverbere nas demais instâncias judiciais do país — até porque, o TJRS já havia decidido caso análogo no mesmo sentido, em v. acórdão também divulgado neste Boletim (n. 198, jurisprudência, p. 1257 – AP. 7002834984-3, 5.ª Câm., rel. Amilton B. de Carvalho, DJ 24.04.2009) —, sempre tendo em vista o devido processo legal e o direito ao contraditório.