Um marco na justiça de 2012

WALTER CENEVIVA

Nos assuntos jurídicos é muito difícil afirmar que um semestre de decisões judiciais define as mudanças no rumo do direito aplicado. O enquadramento é discutido, em breve balanço do que houve de mais relevante neste ano de 2012, nas lutas pelo direito e por direitos.

Quem se arriscar a selecionar um período de seis meses em um ano do século 21, dificilmente escapará do semestre que termina segunda-feira próxima. As sessões nas quais o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou acusados no mensalão concentraram a atenção do país.

Foi o semestre de Joaquim Barbosa, ministro relator do processo, hoje presidente da corte. Empenhou-se em finalizar as condenações formalizadas. Dentre seus colegas, do decano Celso de Mello à recém-chegada Rosa Weber, com Gilmar Mendes e Marco Aurélio, também vigorosos na defesa de suas convicções.

Carmen Lúcia brilhou duas vezes, nesse caso e nos muitos do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), sob sua presidência. A contribuição do revisor no STF (hoje seu vice-presidente) Ricardo Levandowski não pode ser esquecida, em votos nos quais atuou como se fosse mais um relator. Remou, destemido, contra a boa parte dos colegas e, de acordo com a mídia, contra a maior parte do povo. Toffoli o acompanhou. Luiz Fux chegou à corte atento e participativo e Teori Zavascki não atuou nesse processo.

O ano também trouxe a presença de Eliana Calmon nas competências do CNJ (Conselho Nacional da Justiça). Grandes e pequenos tribunais se impressionaram com seu trabalho, tanto que as resistências amainaram no curso dos meses. Já o próximo ano será percorrido com o CNJ sob nova direção.

A débito do Poder Legislativo, houve o passivo do esquecimento dos milhares de vetos presidenciais, que subsistem sem serem discutidos, aprovados ou repelidos. A tentativa de ultrapassagem por fora da pista da Constituição e do bom nome das duas Casas foi obstada na bacia das almas desse julgamento.

Ao menos impediu o agravo final da desmoralização parlamentar. Foi marca no semestre, mas precisa ser retomada com a quebra dos atrasos na avaliação final de cada veto. Apesar do saldo devedor dos congressistas, seria pior a votação simultânea, sem mínima avaliação de mérito nos temas vetados.

O enfrentamento sério da principal missão do Congresso será a criação de leis fundamentais, que passou longe das duas Casas em 2012. Está prometido para 2013 o encaminhamento de reformas necessárias. Tomo o exemplo das questões penais que assustam a cidadania, com a colcha confusa de retalhos da legislação criminal, nos delitos mais repetidos. Alguma forma de legislação apta a unificar aspectos das leis comerciais e dos negócios a elas vinculados parece imprescindível depois que o código de 1850 (sim, 1850) foi posto a nocaute.

Falta uniformizar as normas eleitorais e também enfrentar os problemas resultantes da lentidão gerada pelo processo criminal, cuja principal fonte originária ainda vem do tempo do Estado Novo de Getúlio Vargas.

O ano próximo colocará os poderes da República em foco, ante perspectivas de momentos mais difíceis da economia. Lembremos que as condições sociais se agravam, quando se torna mais difícil, sob leis confusas, a conquista do pão nosso de cada dia.

 

Espaço livre

Provas válidas na nova lei seca (lei 12.670/12)

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

Código de Trânsito Brasileiro, quando editado, carregava a promessa de conter a escalada de crimes culposos por imprudência, negligência ou imperícia, que tenham causado sérias lesões e até ceifado vidas humanas. Não atingiu seus objetivos. Tanto é verdade que, recentemente, a Suprema Corte decidiu que conduzir veículo automotor em estado de ebriedade, por si só, já é crime, independentemente de causar dano a terceiro. Sem falar ainda que as condutas são tão reprováveis que muitas vezes se avizinham do dolo eventual, levando o caso para o Tribunal do Júri, com total manifestação de apoio da sociedade.

A solução encontrada foi a legal: alterar o artigo 306, da lei 9.503, de 30 de setembro de 2007, que criou o Código Brasileiro de Trânsito, para penalizar mais severamente aquele que conduzir veículo automotor, sob a influência de álcool ou substância psicoativa, em casos de lesão corporal ou morte.

Nova lei (lei 11.705, de 19/6/2008) veio reforçar e alterar alguns dispositivos do Código de Trânsito, visando atender o reclamo social, ajustar-se ao rigorismo mundial de combate ao binômio álcool-direção, promovendo instrumentos de mecanismo de execução compatíveis com a realidade brasileira. Atropelou, porém, a reserva do nemo tenetur se detegere, que assegura ao cidadão o direito de não realizar provas contra si mesmo, conforme conteúdo constitucional.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) provocou uma corrida legislativa para acudir o que restou da Lei Seca, assim conhecida. Decidiu que somente o bafômetro e o exame de sangue são provas suficientes para a constatação da ebriedade, rejeitando peremptoriamente o exame clínico e a prova testemunhal. Isto porque a lei exige, para a configuração do ilícito, um grau mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue. Tal valor só pode ser apurado pelo teste de alcoolemia e exame hematológico.

A resposta legislativa veio apressada. Assim, o projeto de mudança chegou à Câmara dos Deputados, onde foi votado e aprovado a toque de caixa. Dentre as modificações previstas é de se ressaltar a extinção da obrigatoriedade do teste do bafômetro e do exame de sangue, provas que, para sua realização, ficam a critério do condutor. Elege, por outro lado, com o espírito tradicional processual, as provas obtidas por testemunhas, imagens, vídeos ou quaisquer outras admitidas em direito. O projeto passou e recebeu o placet da Comissão de Constituição e Justiça e do plenário do Senado.1

É certo que o país precisa urgentemente de uma legislação que seja ao mesmo tempo severa e eficaz no combate aos exageros ocorridos no trânsito em razão da ingestão de bebida alcoólica, ceifando inúmeras vidas. Talvez a medida correta seja estabelecer a tolerância zero de álcool para aquele que estiver na direção do veículo. Se há um índice permissivo significa que a lei consente que o motorista, após fazer uso de bebida alcoólica, mesmo em pequena quantidade, possa dirigir.

As novas regras vêm especificadas na lei 12.760, sancionada em 22/12/2012, que modifica os artigos 165, 262, 276, 277 e 306, da lei 9.503, de setembro de 1997. Apresenta determinados meios de provas e, em seguida, de forma abrangente, abraça todos os demais, desde que sejam admitidos em direito. O teste de alcoolemia e o exame de sangue são considerados provas lícitas em direito, desde que o agente, ofereça sua aquiescência para tanto. E, até mesmo por ironia, podem ser realizados para comprovar a inocência do condutor, pois se não for constatada concentração alcoólica, caem por terra as demais provas.

A prova testemunhal é considerada pelo legislador processual penal como uma prova que inspira credibilidade. Isto porque recolhida do próprio cidadão que exerce, excepcionalmente, a figura do longa manus do poder policial do Estado. Ninguém, portanto, melhor do que ele para reconstituir a verdade de um fato que está sendo investigado. Além do que, é um membro da comunidade e não tem qualquer interesse no deslinde da causa. A não ser apresentar uma versão que seja idônea com o fato investigado.

Nem sempre, no entanto, a testemunha relata o fato de acordo com a realidade porque depende da retenção, da percepção, da atenção, dos sentidos, da recordação do ocorrido, sem mencionar ainda o estado psicológico, eventual deficiência física ou mental ou até mesmo a idade do colaborador. Tamanha a aceitação da prova testemunhal que o Digesto Romano advertia que pela palavra de duas ou três testemunhas se faz prova perfeita.

Em blitz policial a testemunha convocada não irá tecer comentários a respeito da quantidade de álcool que provavelmente foi ingerida pelo agente, mas sim narrar as circunstâncias externas de seu comportamento, de sua fala, de sua conduta e até mesmo do teor etílico que exala. É uma prova que trará conforto e segurança para um julgamento mais condizente com a realidade. Pode ocorrer, no entanto, que a testemunha não tenha condições de fazer afirmação a respeito da embriaguez do agente, mas a nova lei foi além e apontou outras provas que poderão demonstrar a ebriedade.

As imagens fotográficas ou cinematográficas captadas de pessoas que não se encontram na esfera de sua intimidade e sim circulam pelas vias públicas são perfeitamente aceitáveis, pois não ofendem o right of privacy. O legislador já demonstrou certo apreço pela rede de computadores quando permitiu a realização do interrogatório do acusado por videoconferência (lei 11.690/2008). O bem maior, que é a segurança pública, supera qualquer interesse individual. Os aparelhos ópticos instalados em logradouros públicos, como verdadeiros vigilantes, oferecem uma prova consistente com relação aos movimentos do motorista em eventual estado de ebriedade.

Além da parte criminal propriamente dita, a nova lei majora e em muito a multa aplicada. Da importância de R$ 957,70 imposta atualmente, para R$ 1.915,40, valor que pode dobrar em caso de reincidência.

* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp

Dicas de um juiz vitorioso

HORA CERTA

Mais jovem juiz federal do Brasil dá dicas de estudo

“Não há momento ideal para começar a se inscrever em concursos públicos.” A frase, lapidar, é de Pedro Felipe de Oliveira Santos, aprovado recentemente em primeiro lugar no concurso para juiz federal da 1ª Região. Aos 25 anos, ele é o mais jovem juiz federal do país. A dica é para que os concurseiros não esperem o “momento ideal” para começar a fazer provas. Ele recomenda que comecem logo. As informações são do jornal Folha Dirigida.

Ele também tem uma longa lista de aprovações em concursos: técnico do Ministério Público da União, do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Regional da 1ª Região, procurador do estado de Alagoas, defensor público do Piauí e defensor público da União. Tudo isso ao longo dos últimos sete anos.

Pedro Felipe começou sua vida de frequentador de provas cedo, ainda no primeiro semestre da faculdade. Estudou Direito na Universidade de Brasília (UnB) entre 2004 e 2009. “No Distrito Federal é raro não se contaminar pela atmosfera do serviço público”, explica.

Lei matéria completa no Consultor Jurídico

Calcanhar de Aquiles*

A dosimetria das penas tem sido o calcanhar de Aquiles dos magistrados, pelo menos aqui no Maranhão.

Não raro, e nesse sentido invoco o testemunho de todos os magistrados de 2º grau que atuam nas Câmaras Criminais, nas apelações – em quase todas, registro – tem-se que redimensionar as penas, por absoluto equívoco na sua dosimetria.

Agora mesmo, examinando  um voto, em face da apelação de nº 03414/2001, constato que o magistrado fixou, injustificadamente, as penas-base aquém do mínimo legal, e, conquanto tenha fixado a pena  aquém do mínimo legal, por entender que todas as circunstâncias judiciais eram  favoráveis ao acusado, decidiu-se pelo regime fechado, para início de cumprimento de pena.

Esses equívocos, quando favorecem os acusados, relevam-se, por óbvio, sobretudo porque, lamentavelmente, o Ministério Público ainda não adquiriu o hábito de recorrer – pelo menos embargar! – quando ocorrem esses graveserros, ficando os recursos, quase sempre, a cargo do acusado, que, por isso, se beneficia do ne reformatio in pejus.

E quando as decisões, ao reverso, são prejudiciais ao acusado e não recorre a defesa?

O que fazer?

Aí só resta a revisional.

Mas para revisional, o réu preciso advogado.

E quando  o acusado não pode pagar advogado e nem há defensor público para cuidar de sua defesa?

Aí, meu amigo, só apelando para um ser superior. A tendência é que o réu prejudicado pague pelos erros e omissões do Estado.

O que importa reafirmar, diante de situações desse matiz, é que ao Estado-Juiz é defeso afrontar o direito dos cidadãos, ainda que denunciado pela prática de crimes hediondos, mesmo porque, apesar disso, não deixa de ter dignidade, não deixar de ser um sujeito de direitos, que devem- ou, pelo menos, deveria – protegê-lo das interferências ilegítimas dos agentes do Estado.

Não se pode, muito menos um magistrado, afrontar a dignidade de um cidadão, ainda que a este cidadão se impute a prática de um crime abjeto.

O princípio da dignidade da pessoa humana, todos sabemos, é valor-guia que deve irradiar os seus efeitos sobre todo ordenamento jurídico, devendo, por isso, ser sopesado quando nos decidimos por um decreto de preceito sancionatório.

O magistrado deve ter presente que a dignidade não pode ser renunciada e nem vilipendiada, de modo que não se pode sequer elucubrar que reconhece-la é um favor, posto que, repito, é atributo inerente a cada pessoa, dada a sua própria condição de ser humano.

Devo relembrar que o juiz tem,  dentro do Estado de Direito, assume uma posição garantista e que a legitimidade de sua ação não é política, mas constitucional, e que a ele é defeso tangenciar os direitos fundamentais do cidadão, inscritos em nossa Carta Magna, que, segundo Ana Paula de Barcellos, é um repositório de esperança.

O cidadão quando decidiu se submeter ao Estado e às suas leis ( cf. teorias contratualistas) o fez na certeza de que o Estado, em relação a ele, se absteria de violar os seus direitos e nem permitiria que fossem violados por outrem.

O juiz deve, sempre, interpretar a lei às luz de determinados valores morais, dentre eles a dignidade da pessoa humana, que não é somente uma valor pessoal, mas um patrimônio social.

O direito, diferente do que se fez sob o fascismo e sob o nazismo, não é instrumento a serviço da barbárie, da dominação e da iniquidade.

Todas as vezes que um magistrado se decida pela condenação de um acusado, deve se esmerar, mais e mais, para que a lei seja aplicada com correção; se necessário, se afronta a dignidade da pessoa, pode até deixar de aplicá-la, sabido que o direito, muitas vezes, não se circunscreve apenas à literalidade formal da lei, daí que sua interpretação deve ser temperada pela filosofia moral.

*É uma das mais populares metáforas sobre a fragilidade humana. Tétis segurou seu filho Aquiles pelo calcanhar para mergulha-lo num rio egípcio que o tornaria invencível. Queria contrariar um oráculo que dizia que seu filho morreria na guerra de Tróia. Durante uma batalha, no entanto, Aquiles tomou uma flechada em seu único ponto vulnerável: o calcanhar, que não havia sido banhado no rio por sua mãe. A partir daí, a expressão calcanhar-de-aquiles indica um ponto franco de uma pessoa.

Alguém duvida?

Cheguei ao meu gabinete, por volta das 8h30 horas, para dar continuidade ao meu trabalho.

Há muitas minutas de votos para reexame, antes do pedido de pauta. Por isso estou aqui, cumprindo a minha obrigação.

A propósito, tenho afirmado, desde que o recesso foi instituído, que ele não se destina aos magistrados, que, todos sabem, já têm 60 dias de férias.

O magistrado que tenha consciência, ao invés de cruzar os braços nesse período, deveria, sim, cuidar de atualizar o seu trabalho, fazer inspeções e cuidar das questões mais complexas, a exigir deles maior dedicação e esmero.

Cruzar os braços nesse período, aproveitando-se do recesso, denota falta de compromisso.

Não é correto valer-se o magistrado do recesso para adicionar mais quinze dias aos sessenta de férias previstas em lei.

A Corregedoria, tenho certeza, está atenta a essas questões, sobretudo em face da suspensão dos prazos, a pedido da OAB, até 20 de janeiro, que muitos poderão entender como mais uma oportunidade para descurar do trabalho.

Alguém duvida?

As nossas circunstâncias e neuroses

É claro que a razão distingue a ação humana. Do julgador, por isso,  espera-se, sempre, que, pela razão, se conduza pelos caminhos que o levem à  decisão mais justa.

Com os iluministas acreditamos no poder quase absoluto da razão. Foi um equívoco, sabe-se bem.

Penso, com Freud, que o homem não é o senhor absoluto de sua vontade, dos seus desejos e instintos. Todas as suas ações são, sim, controladas pelo seu inconsciente.

É por isso que tenho dito, nas oportunidades que me são proporcionadas nos julgamentos do Tribunal Pleno – onde essa questão, para mim,  assoma com mais evidência – que ninguém, nenhum julgador pode imaginar-se distante, absolutamente, da questão sob exame.

Isso só seria possível, penso eu, se o julgador não tivesse memória, desejos e história.

É por isso que tenho dito, também com certa insistência, que o que se espera do intérprete é que tenha consciência das suas  circunstâncias, das suas neuroses e frustrações.

Eu estou voltando a esse tema porque a minha constatação tem-se confirmado a cada julgamento colegiado.

Quando julgamos sozinhos, sem parâmetros, as nossas circunstâncias influenciam as nossas posições, mas nós sequer percebemos isso, à falta de parâmetro, que nos conduza a juízo crítico das nossas próprias idiossincrasias.

Nos juízos colegiados, diferente dos julgamentos singulares, o inconsciente e a ideologia dos julgadores se fazem mais perceptíveis, elas assomam, à toda evidência, em cada palavra, em cada gesto, em cada manifestação.

E não me reporto, apenas,  aos julgamentos dos TJ/MA; basta atentar para os julgamentos da nossa Suprema Corte.

O mundo não acabou; a esperança, da mesma forma, não pode acabar

O ano está prestes a se encerrar.

O mundo, felizmente, não acabou.

E não há previsão de que isso venha a ocorrer nos próximos mil anos.

O mundo não acabou, é verdade. Em muitos de nós, no entanto, a esperança de melhores dias vai-se esvaindo.

Há momentos, sim, que imaginamos que tudo tende a ficar como está: uma minoria, insensível, desumana e covarde, desafiando a todos nós, usando e abusando do poder, dele auferindo vantagens de ordem patrimonial, em detrimento de uma grande parcela da população, a quem se nega tudo, da educação à saúde, necessidades primária de um povo.

Mas não podemos perder a esperança.

Não podemos desistir.

Desesperar, jamais, a final é a esperança que  nos mantém vivos.

No ano vindouro,o que se espera, o que todos almejamos, em diversas vertentes, é mudança.

Eu, particularmente, espero que, a cada ano, se reduzo o fosso que separa a elite rica e poderosa, a quem nada se nega, dos mais pobres, a quem o Estado nega quase tudo, pois que falta aos nossos dirigentes, egressos de uma elite poderosa e voraz, um projeto que contemple toda sociedade.

Tenho esperança, ademais, que a nossa classe dirigente volte as suas ações políticas para toda sociedade e não somente, e prioritariamente, aos setores que detêm força política e eleitoral.

É meu sonho, outrossim, que a classe dominante reveja a sua mania de buscar privilégios em detrimento dos brasileiros que, em sua maioria, vive à margem das realizações do Estado.

Não perco a esperança, de mais a mais, que as nossas instituições sejam capazes de enfrentar, sem receio e sem acanhamento,  a uma praga chamada corrupção, disseminada e institucionalizada, sobretudo nas prefeituras municipais, onde se vê estabelecido, à olhos vistos, a deletéria confusão entre o público e o privado.

Na vertente eleitoral, o que todos auguramos é que se resolva, de uma vez por todas, a maldição dos financiamentos  eleitorais, fomentadores de  relações  promíscuas e danosas que fazem sangrar, como consequência, os cofres públicos, em benefício de meia dúzia de calhordas que não se sensibilizam com a situação de penúria de uma parte significativa da população, a quem, reafirmo, se nega o básico para sobreviver.

Espaço livre

Poder da República tem que se dar o respeito

Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, o jurista Francisco Rezek assinalou recentemente que só falta um congressista atravessar a praça dos Três Poderes para reclamar no Supremo que lhe negaram a palavra ou não colocaram um projeto seu em votação.

A exorbitância de questões que senadores e deputados têm suscitado para que o Judiciário dirima querelas internas, a maioria peculiares aos regimentos das duas casas do Congresso, demonstra que o Parlamento perde a noção de sua independência. Em vez de resolver intramuros suas divergências protocolares, recorre à arbitragem de outro Poder.

Nestes dias, quando se debate se o Supremo tem o poder de cassar mandatos de deputados condenados, parlamentares conseguiram uma liminar, concedida pelo ministro Luiz Fux, para suspender uma decisão do Congresso que deu prioridade à apreciação de veto presidencial a pontos da nova lei de distribuição de royalties do petróleo.

O mandado de segurança foi ajuizado por um deputado do partido do governo, por convencido de que o veto seria derrubado pelo Legislativo e assim seu Estado, o Rio de Janeiro, perderia os bilhões de reais que recebe pelas regras em vigor.

Ocorre que a nova planilha de distribuição dos royalties entre a União, Estados e municípios foi aprovada por maiorias amplas e soberanas. No Senado, em votação simbólica, com a oposição da bancada fluminense e de mais três senadores. Na Câmara, por 286 votos a favor e 124 contra. A proporção elevou-se na votação do pedido de urgência para a apreciação do veto presidencial: 60 a 7 no Senado, 348 a 84 na Câmara.

Poder popular por excelência, talvez nossas casas legislativas estejam minadas por uma pulverização que vai além das duas dúzias de partidos nelas representados. Mas as decisões são sempre fruto de negociação e disputa política inerentes ao Parlamento. Nada é imposto, tudo é pactuado para a formação de maiorias que assegurem, além da jurisdição legislativa, a força moral das normas legais que se impõem a toda nação. Nos confrontos entre partidos, até por imposição da etimologia, a unanimidade é exceção.

Se os derrotados recorrem amiúde ao Judiciário para ganhar na sentença do tribunal o que perderam no voto em plenário, são os primeiros a desrespeitar não só a autonomia do Legislativo como também a separação dos Poderes harmônicos e independentes que é a base do governo republicano.

Lideranças mais experientes, como o ex-presidente da República e atual presidente do Senado e do Congresso, José Sarney, apontam o perigo de atravessar a praça: “O problema é que estamos judicializando a política e politizando a Justiça”.

Os aventureiros que transitam entre Poderes distintos deveriam guardar na cabeceira o fecundo discurso que Rui Barbosa pronunciou na sessão do Senado de 5 de agosto de 1905. “Que faz o legislador, quando confere a um tribunal a missão de legislar?”, perguntou retoricamente o maior dos nossos jurisconsultos. Sua resposta: “Anarquiza o regímen”.

Rui observou que os Poderes têm “a sua competência taxada na lei fundamental. Desta deriva, para cada um dos três, a autoridade que exercita”. E arrematou: “Logo, dessa autoridade, nenhum deles se pode aliviar em outro”. Nem ceder nem usurpar atribuições constitucionais. Ainda segundo Rui, “delegar a terceiro poder as prerrogativas de outro é ato de invasão, esbulho e alienação do alheio”.

O Congresso deve atentar no axioma político de que o poder não admite vácuo. Depois, não se queixe de “ingerências”.

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO, 67, é advogado. Foi presidente nacional da OAB (entre 1993 e 1995) e deputado federal pelo PDT (de 1998 a 2002)