Eu, viciado

 

O pintor francês Jean-Baptiste Debret chegou ao Rio de Janeiro em 1816, a convite de D. João VI, para fazer registros oficiais da vida na então capital do reino português. Contudo, foi muito além e documentou, ademais, maus-tratos e humilhações aos escravos. Graças a Debret, portanto, foi registrado o triste cotidiano dos escravos, uma vez que são muitas as pinturas de Debret dando conta das idas e vindas do dia a dia escravo no Rio de Janeiro do século XIX.
As informações dão conta de que, graças à ação de Debret, tivemos notícias do que ocorria no cotidiano da então capital do império. Todavia, constam das mesmas informações que, pelo fato de Debret ser um só, muitas coisas importantes deixaram de ser registradas por ele.
Fico pensando, cá com os meus botões, o quanto saberíamos da história desse período, se Debret tivesse às mãos essa “praga” chamada smartphone, que flagra e registra nos dias presentes as situações mais inusitadas, como se deu recentemente com um senador da república, um boquirroto inconsequente, que se viu preso por conta de uma gravação feita num aparelho celular, quando exercia, imprudentemente, a prática da bravata, para dizer o mínimo.
A verdade é que, nos dias de hoje, em face do smarthphone e em vista da instantaneidade da internet, quase ninguém faz mais nada escondido, sendo recomendável, no mínimo, que redobre os cuidados com a bisbilhotice alheia, pois, afinal, ninguém nunca sabe quando o interlocutor tem um diabinho igual a esse ligado, captando uma conversa. E uma vez ocorrido o flagra, e este caindo nas redes, pronto: a desdita é para sempre, sem controle, sem peias e sem limites.
O aparelho celular existe hoje para o bem e para o mal. Às vezes, fico me perguntando como se vivia antes sem esse ele, que a muitos vicia, que a outros tantos entorpece; que tira o sono, que grava, que filma, que publica, que modifica o mundo exterior.
Não sou viciado (?) em celular e nem em internet. Mas confesso – olha que bela contradição! – que não sei como viveria sem saber que tenho à minha disposição um tablet e um aparelho celular, sobretudo para o envio de mensagens e para as minhas leituras diárias, já que praticamente aboli os livros e os jornais físicos.
Um episódio interessante, a propósito, que bem retrata a importância do celular nos dias atuais, ainda que o seja em face de um episódio incomum. Tenho um compadre e amigo que, quando ia ao shopping, antes da era do celular, curiosa e inusitadamente, localizava os filhos pequenos e a esposa com um apito, pouco se importando com as interpretações que pudessem ser dadas a essa modalidade curiosa de busca. Hoje, com o aparelhinho, tudo mudou. Um toque, uma mensagem, e pronto!
Outro episódio tão inusitado quanto. Um irmão meu de sangue, não usava apito, mas se comunicava com um estridente assovio. Era assoviar, no shopping ou na Rua Grande, e seus filhos apareciam em desabalada carreira.
Hoje, essas práticas estão obsoletas. Um clic no celular e pronto:
-Onde estás?
-Estou próximo do supermercado.
-Estou indo para aí.
Simples assim.
Mas o mesmo aparelhinho, cuja utilidade é indiscutível, é, muitas vezes, fonte de irritação. Fico agastado, sim, quando alguém esbarra em mim por conta da desatenção em face do aparelho celular. Fico estupefato quando vejo, numa academia, as pessoas correndo na esteira ou se exercitando no elíptico, fazendo a leitura concomitante das mensagens recebidas no viciante e, quase sempre, irritante aparelho.
E quando deixam o personal esperando enquanto respondem às mensagens? O personal olha para um lado, olha para o outro, coça a cabeça, dá uma olhada nos presentes, curte a morena que passa nas proximidades, cumprimenta um colega de academia, e nada: o aparelho hipnotizou a aluna. Pronto! O programa de treinos para aquele dia já está prejudicado.
Fico olhando, perscrutando, mas fazer o quê?
E quando os mesmos alunos param na frente do bebedouro ou na porta de entrada ou nas escadas, atrapalhando as pessoas, concentrados e perdidos em face da magia proporcionada pelo famigerado e irritante aparelho?
Você já viu coisa mais estranha que um grupo sentado numa mesa de bar ou de restaurante, todos conversando com quem não está lá, via whatsapp, como se o amigo – ou amigos – da mesa não existissem?
E quando a gente se depara, como ocorreu comigo, recentemente, no São Luis Shopping, com alguém andando com o celular nas mãos, esbarrando nas pessoas, lendo as mensagens e rindo sozinho?
A minha dúvida é se Debret tivesse vivido essa mesma experiência faria um bom ou mau uso do celular. Confesso que não tenho dúvidas. O aparelhinho vicia. Debret seria, nos dias atuais, apenas mais um viciado, mas certamente saberia fazer um melhor uso do instrumento, como fez com o pincel, dando a sua contribuição à construção da historia do nosso país.
Mas, convenhamos, apesar das muitas inconveniências proporcionadas por uso abusivo, a verdade é que nem eu saberia como viver nos dias presentes sem os meus dois aparelhos de celular e meus dois tablets.
Sim, tenho dois aparelhos de cada. É que tenho receio de que acabe a bateria de um, e eu fique sem comunicação, apesar de andar com um carregador de bateria para não correr nenhum risco.
Como assim? Eu, viciado?
Sei lá!

O TRIBUNAL MORAL DE CADA UM

batendo-o-marteloDando sequência às nossas realizações na direção do Núcleo Permanente de Conciliação, estivemos recentemente em Imperatriz para instalar o I Balcão de Renegociação de Dívida da Região Tocantina.
Instalados os trabalhos, apresentou-se um devedor ávido por renegociar a sua dívida, já que se sentia incomodado por ainda não tê-lo feito em face de suas dificuldades financeiras. Detalhe relevante: a dívida do cidadão era no importe – pasmem! – de R$ 26,17 (vinte e seis reais e dezessete centavos).
Pois bem. Sentados, civilizadamente, credor e devedor, numa mesa de (re)negociação – o que só foi possível em face da implementação do Balcão de Renegociação, projeto do Núcleo de Conciliação do Tribunal de Justiça -, chegaram a um acordo: o credor aceitou que o débito fosse quitado por cerca de R$ 6,00(seis reais), que era o que podia pagar o devedor.
Conquanto seja exemplar esse fato, não foi o valor da dívida nem o valor da quitação, que motivaram essas reflexões. A motivação decorre da reafirmação, definitiva, de que cada um de nós tem um tribunal moral interior que nos impulsiona para o bem e para o mal: o tribunal da consciência que, tenho certeza, impulsionou o devedor a buscar a quitação da dívida que o incomodava.
Eu tenho, tu tens, todos nós temos, sim, um tribunal moral ou de consciência, que guia, que conduz, que determina as nossas as ações, a nossa maneira de ser, a visão que temos do mundo e, de consequência, a maneira como devemos lidar com os nossos problemas.
Posso dizer, nesse sentido, que o que não é moralmente aceito por mim pode ser admitido como normal para o semelhante, de acordo, claro, com o seu tribunal moral. É por isso que há homens públicos honestos e desonestos, por exemplo.
Tudo está a depender, portanto, do tribunal moral ou de consciência de cada, ou seja, da forma como fomos criados, de como fomos preparados para as vicissitudes da vida, de como lidamos com os nossos problemas, que são resultantes, não tenho dúvidas, dos valores que incorporamos à nossa personalidade.
Nos dias presentes, é a frouxidão dos tribunais de consciência que nos leva a esse quadro de descalabro moral, de licenciosidade, de benevolência de muitos para com os desvios de condutas, convindo anotar, ainda que para desalento de muitos, que até mesmo nas instâncias de controle, há os que se predispõem a dar guarida ao malfeitor, sempre de acordo com o seu tribunal moral interior.
Muitos homens públicos estão aí a nos envergonhar, os quais, como eu já disse em outro artigo, nos fazem perder a esperança, não nos deixam sonhar. Por isso, estamos desalentados, contristados, acabrunhados, macambúzios, desesperançados, vendo, quase em estado de estupor, muitas vezes inertes e descrentes, o esfacelamento das instituições, decorrente dessa grave, gravíssima degradação moral pela qual passamos.
O cidadão de bem, revoltado, reage, vai às ruas, grita, esperneia, e depois percebe que tudo voltou a ser como antes. Desalentados, mas crédulos, todos nós clamamos aos céus, na quase certeza de que só nos resta mesmo aguardar por uma providência divina.
Diante desse quadro é que aparecem os heróis nacionais, os salvadores da pátria. Heróis que, no geral, apenas cumprem as suas obrigações. Contudo, em virtude de fazê-lo com destemor e sem distinção, se destacam como super-homens, super-heróis nos quais terminamos por depositar as nossas esperanças.
Devo admitir que, apesar de já ter visto muito, nunca havia testemunhado antes tamanha licenciosidade, tamanha falta de vergonha, tamanha falta de compostura, de pudor dos nossos homens públicos, os quais, triste ter que admitir, só visam mesmo à defesa dos seus próprios interesses.
Lê-se, ouve-se dizer que é assim mesmo, que sempre foi assim, desde que o país foi descoberto. É possível que sim. Isso, no entanto, não arrefece a minha, a nossa indignação, mesmo porque – para mim, pelo menos – esse é um argumento fajuto de quem deseja que tudo permaneça como está.
A verdade é que, aos olhos dos desinformados, os homens públicos do Brasil parecem ser rigorosamente iguais, uma vez que poucos são os que se destacam por uma postura compatível com o que se espera de um homem que esteja a serviço do interesse comum.
Por isso, reafirmo, parecemos todos iguais aos olhos do cidadão que, descrente de tudo, nos nivela por baixo; por isso, a sua intolerância em relação aos homens públicos.
É nesse ambiente de desesperança e de grave degradação moral que aparecem os farsantes, os que aproveitam as nossas fragilidades, para nos vender falsas promessas, nos fazendo acreditar que, doravante, tudo será diferente, para, depois, estarrecidos, constatarmos que nada mudou.
Num país em que as instâncias de controle são quase sempre lenientes e frouxas, o que nos resta mesmo é esperar que o tribunal moral de cada um cumpra o seu papel, pois, infelizmente, as ações tendentes a obstar as condutas daninhas dos homens públicos do nosso país ainda parecem ser uma exceção.

VIVENDO EM OUTRO MUNDO

 

 

Celso Antonio Bandeira de Melo, a propósito das manifestações a favor do impeachment, disse o seguinte: “O mais curioso é que são pessoas da alta classe média. Elas não trabalham, pois podem se dar ao luxo de fazer arruaça. Já os que trabalham não podem . Pode até parecer que eles são maioria, mas não são. É uma minoria de elite lutando contra os pobres”.

Em que mundo esse senhor vive?

Uma lixa de unhas

Essa crônica tem muitas probabilidades de surpreender alguns, sobretudo os que não me conhecem, os que construíram a minha imagem à luz de uma percepção equivocada da minha personalidade, definida a partir de um estereótipo, provavelmente construído em face de algumas posições por mim assumidas no passado, que eu próprio denominaria de heterodoxas, próprias da idade e da inexperiência.
Essa crônica, noutro giro, certamente que não surpreenderá os que me conhecem, os que convivem comigo mais amiúde, os que sabem quem eu sou, ou seja, a minha família e os funcionários que convivem comigo mais de perto.
Essa crônica, importa dizer, ademais, é como um retrato inacabado de mim mesmo, pois, como sói ocorrer, revela apenas uma parte da minha personalidade, da minha maneira de ser, das coisas simples que valorizo, e do que penso.
Feita essa breve linha introdutória, devo dizer que não sou uma pessoa sofisticada. Eu gosto, na verdade, das coisas simples. Meu carro, meu apartamento, meus ternos, meus sapatos, minha meias, tudo que tenho e consumo é marcado pela simplicidade.
Nasci e cresci nesse ambiente simples e dele não consigo me separar, resultando daí, quem sabe?, as dificuldades que tenho conviver com a ostentação, pela qual, importa anotar, tenho, até, certa aversão. Por isso, não sou muito simpático ao esnobe; esnobismo que, para mim, é pura bobagem.
Vivo como posso e não vou além, conquanto tenha lutado muito para não estar aquém, mas tudo dentro de certos limites. Só vou até onde é possível ir, pois não me apraz, repito, a magnificência, a pompa, a exibição vaidosa, razão pela qual não simpatizo com o exibicionista, para quem as coisas simples parecem não ter valor.
Além disso, não tenho ambição material; não tenho ambição de poder. Não me vejo, por exemplo, presidente do Tribunal de Justiça, pois acho o cargo muito grande para mim. Muito mais do que sempre sonhei, mesmo porque sou avesso às solenidades e não me julgo preparado para administrar um Poder, conquanto venha me preparando para a hipótese de a minha contribuição mostrar-se inevitável.
Aduzo que não me vejo presidente, dentre outros motivos, porque me agastam, sobremaneira, os discursos longos, formais e cansativos, sendo difícil, pois, suportá-los na condição de representante do Poder Judiciário. Da mesma forma, não sei encarar com naturalidade os cumprimentos desnecessariamente efusivos, os chamados elogios de ocasião, já que tudo isso me causa certo desconforto.
Ademais, não me vejo corregedor. Acho, igualmente, a responsabilidade muito grande. Tendo sido, como efetivamente sou, um crítico assaz da leniência dos órgãos de controle interno, é evidente que só seria corregedor se pudesse exercer, plenamente, o poder a mim conferido, o que, sei, não é possível, por óbvias razões
Sem grandes ambições materiais e funcionais, eu prefiro ser apenas o que sou. Se não posso trafegar num Posche Cayman, a mim me satisfaz, completamente, a direção do meu SUV médio, compatível com o meu modo de ser e com as minhas possibilidades materiais.
Mas como eu disse acima, gosto e dou valor às coisas simples, como uma lixa de unhas, por exemplo; serra de unhas que, afinal, foi o que me deu inspiração para essa crônica.
Explico. Estava lendo, nos dias de folia (carnaval), quando uma unha se partir e passou a me incomodar; incômodo que me agastou, principalmente, porque tirou a minha concentração da leitura. Nesse cenário, fiquei agastado e confesso que nunca desejei tanto uma serra de unhas como naquele momento.
Pensei, pensei, até que lembrei onde eu tinha visto uma. Levantei, rapidamente, deixei o livro de lado e saí, na expectativa de encontrar o meu objeto de desejo; encontrando-o, lixei as unhas, voltei ao sofá e ao livro.
Uma coisa simples, aparentemente banal, sem grande valor material, como uma serra de unhas, me devolveu a paz de espírito que eu precisava para continuar lendo.
Por isso – e muito mais – é que gosto, empresto valor às coisas simples. É nelas, definitivamente, que encontro o que preciso.

O QUE NÃO MUDA NA DECISÃO DO SUPREMO

supremo-tribunal-federal-claudio-marcio-2Na semana passada, o mundo jurídico foi surpreendido com a decisão do Supremo Tribunal Federal, mudando a sua orientação jurisprudencial, que vigorava desde 1999, para considerar a possibilidade de o réu condenado em segunda instância começar logo a cumprir a pena; antes, portanto, do trânsito em julgado da decisão condenatória.
A mudança de posição da Suprema Corte decorre, induvidosamente, da sensação de impunidade e dos efeitos danosos para sociedade dos incontáveis recursos manejados por hábeis advogados, no sentido de evitar que uma casta privilegiada pague pelos crimes que cometeu.
A razão de tamanho frisson – e muita indignação no andar de cima da criminalidade – no mundo do Direito condiz com o argumento de que, com a decisão, o Supremo solapou o princípio da presunção de inocência encartado em nossa Constituição, que prescreve ser inocente o acusado, até que sobrevenha uma decisão condenatória transitada em julgado, a obstar o cumprimento antecipado da pena infligida.
Nessa linha de pensamento, o ministro Celso de Melo, por exemplo, que votou com a minoria, argumentou, que o principio da presunção de inocência é um velho principio, detestado por regimes autocráticos, pois, segundo a sua linha argumentativa, esses regimes temem a liberdade, conquanto todos saibamos que na maior democracia do mundo, os Estados Unidos, os condenados não precisam aguardar o esgotamento das vias recursais para iniciarem o cumprimento da pena.
Há, nitidamente, duas correntes assumindo posições díspares em torno da questão tão comentada nos últimos dias. De um lado, a grande maioria de magistrados, representantes do Ministério Público, Delegados e população em geral, rendendo homenagens à decisão, ao argumento de que o STF, com ela, fechou, definitivamente, a janela da impunidade; do outro, assumindo posição diametralmente oposta, estão os advogados e defensores, os quais, por sua quase totalidade, assumiram posição crítica e contestatória, argumentando que o STF, com a decisão, solapou o principio da presunção de inocência e favoreceu o erro judiciário.
Entretanto, ninguém disse o que vou dizer agora. Para a absoluta maioria dos condenados, nada, rigorosamente nada mudou com a decisão do Supremo. Explico. É que a quase totalidade de condenados no Brasil, egressos das classes menos favorecidas, têm, desde sempre, como ultima instância, os Tribunais de Justiça dos Estados.
É dizer: para essa grande, quase totalidade de condenados pelo sistema, que são os desvalidos e miseráveis, para os quais o Estado nega quase tudo, recursos ao STJ e STF é um luxo ao qual só excepcionalmente têm acesso, significante que a grita que se verifica decorre exatamente do fato de que, com a decisão revolucionária, o STF fecha as portas da impunidade para uma minoria, que sempre se valeu dos recursos para se furtar de cumprir as penas, cujos exemplos saltam aos olhos, sendo despiciendo fazer qualquer citação nominal dos réus poderosos que, com esses expedientes, deixaram de pagar pelos crimes cometidos, beneficiando-se, como é pratica comum, da prescrição, que decorre exatamente em face do tempo fluido entre o crime e a data do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Do exposto resulta a elementar constatação de que essa revolta, em face da decisão do Supremo, esse argumento de que, com a decisão, o Supremo, rasgou a CF, só tem sentido mesmo para uma minoria, que tem condições de, por meio dos grandes escritórios de advocacia, levar os processos às últimas consequências, utilizando-se das vias recursais, prolongando-os em demasia, introduzindo na população uma sensação nefasta de impunidade.
A grande verdade é que, para a absoluta maioria, para a quase totalidade da clientela do Direito Penal, essa decisão do Supremo não tem nenhuma consequência prática, não muda nada em sua vida. Os miseráveis, os destinatários da persecução penal, com efeito, continuarão a ter, como de fato têm até hoje – e quando têm – como única instância recursal os Tribunais de Justiça, onde os processos costumam ter fim, pois é nessa instância que se verifica, como regra, o trânsito em julgado das sentenças condenatórias.
A verdade é que, em face dos inúmeros recursos que podem ser manejados ao longo da persecução criminal, os que têm “bala na agulha” – como se diz popularmente -, os que têm condições de manejar tantos recursos quantos cabíveis, conseguem adiar – até a prescrição, muitas vezes – o cumprimento das penas infligidas, o que, convenhamos, favorece uma certa revolta, que estimula o apotegma de todos conhecidos, segundo o qual prisão no Brasil se destina apenas a pobres, pretos e prostitutas.
Estima-se que, com a decisão do Supremo, processos que duravam 20 anos poderão estar concluídos em 5 anos, o que, convenhamos, fará um bem enorme à sociedade, que, certamente, cerra fileiras à afirmação do ministro Luis Fux, segundo o qual “A sociedade não aceita mais a presunção de inocência de uma pessoa condenada que não para de recorrer”.
A verdade é que, com essa decisão, o Supremo coloca o Brasil na direção da eficácia judicial, o que o coloca nos mesmos níveis dos países desenvolvidos, cujo sistema não compactua com a chicana e com o retardo ad eternum do cumprimento das decisões condenatórias, que, todos sentimos, alimenta a sensação de impunidade que de seu lado, todos vemos, alimenta a criminalidade.

EDUARDA, O RÁBULA E AS NOSSAS CONTRADIÇÕES

Fernando Sabino, em O Encontro Marcado, narra que Eduardo, filho de Marciano e Estefânia, certo dia, estando no quintal de sua casa, pegou uma galinha, que ele chamava Eduarda, e a colocou debaixo de uma bacia, seguindo depois para a aula, deixando-a submetida a essa situação de verdadeira tortura; traquinices de menino, daquelas que todos nós um dia praticamos, sem medir as consequências, porém sem maldade.
Eduardo foi advertido pelo pai de que aquilo era maldade. O pai, para dar ênfase à advertência, indagou de Eduardo se ele gostaria que fizessem o mesmo com ele, lembrando, para concluir, que galinha, como o ser humano, também sofre, tentando, com advertência, sensibilizar Eduardo.
Num domingo qualquer, depois dessa advertência, surpreso, Eduardo encontrou Eduarda, a galinha, na mesa, pernas para o ar, assada, no ponto de ser degustada. Eduarda foi comida por Eduardo entre lágrimas.
Eduardo concluiu, assim, que, definitivamente, galinha sofre mesmo, e que, para culminar o sofrimento, ainda serviam de alimentação ao homem, daí ter decidido, revoltado e triste, nunca mais criar galinha.
Essa passagem marcante romance de Fernando Sabino, traduz, com letras fortes, as nossas contradições. Conquanto possa não ter sido essa a verdadeira intenção do ficcionista, posso inferir, sob essa perspectiva, que ele deixou patenteado o perigo que representa para credibilidade de uma pessoa dizer uma coisa e fazer outra.
Infelizmente, nas nossas relações, temos testemunhado, não raro, as pessoas pregarem uma coisa e fazerem outra diametralmente oposta, do que resulta, por evidente, que, com isso, fulminam a sua credibilidade, e comprometem as relações, pois que, afinal, ninguém suporta lidar com quem não tem palavra ou muda de opinião e de postura de acordo com as suas conveniências.
Cediço que, em face dessas práticas, muitas vezes, em nossas relações, não acreditamos no que algumas pessoas dizem. A gente tem sempre um pé atrás nas promessas que elas fazem, nas coisas que pregam, nos argumentos que adotam, convindo realçar que, muitas vezes, isso ocorre por nossa própria culpa, pois, por conveniência ou comodidade, nos aliamos aos que não têm nenhuma convicção no que fazem e dizem.
Anoto, nessas breves reflexões, que assumir uma linha de coerência entre as palavras e a ação não deve ser objetivo a ser perseguido apenas pela classe política, pelos homens públicos. Isso deve ser uma prática de vida de todos.
Não podemos nos furtar, com efeito, de agir, na vida privada e pública, em conformidade com o nosso discurso, pois nada mais triste para uma relação se ela é forjada na descrença, na falta de credibilidade de atores dessa mesma relação.
Para ilustrar, lembro que, assim que me formei, fui advogar no interior do Maranhão. Numa das cidades que escolhi para iniciar a minha vida profissional havia um provisionado (rábula) muito inteligente e perspicaz. Tinha fama de hábil e era muito respeitado nas comarcas circunvizinhas em face dessas qualidades.
Esse rábula fazia pregações contundentes acerca da ética, sobre a postura profissional do advogado; era um discurso encantador, conquanto não fosse essa, de rigor, a sua prática profissional, como vou narrar a seguir.
Pois bem. Com escritório instalado, iniciando a minha vida profissional, sem nenhuma experiência, com a cara e a coragem e algum conhecimento jurídico, fui procurado pela família de um lavrador que tinha sido preso “correicionalmente”, o que era comum à época.
Como vislumbrei que, em face da ilegalidade da prisão, eu não teria muito trabalho para restituir a liberdade do lavrador pela via do habeas corpus, cobrei, a título de honorários, um valor pequeno, quase irrisório, mas razoável, já que o caso era simples e exigiria muito pouco de mim.
Os parentes do paciente, curiosa, mas justificadamente, não acreditaram que por um valor tão irrisório eu conseguiria a restituição de sua liberdade. Saíram do meu gabinete, descrentes, e foram procurar o rábula. Esse, atilado e perspicaz, disse a eles que eu havia cobrado um valor insignificante porque, muito novo e sem experiência, não daria conta do recado, e que ele, sim, com a sua vasta experiência e conhecimento, sabia estar defronte de um caso que exigia muito conhecimento e experiência.
Com essa conversa, cobrou um valor muito superior pelo trabalho e conseguiu conquistar o cliente. E, como eu já supunha, com um simples pedido de informações do juiz, o delegado colocou em liberdade o paciente, pois que tinha ciência da ilegalidade da prisão.
A lição que se pode tirar dessa história é que, muitas vezes, há os que, descrente de tudo, pagam caro por essa descrença, estimulando, nesse panorama, que muitos adotem um discurso diferente de sua prática de vida, como ocorreu no episódio envolvendo a galinha de Eduardo.
Foi nesse ambiente que o rábula encontrou as portas abertas para fazer um discurso sedutor e em razão do qual conquistou o “meu” cliente, ainda que houvesse uma enorme distância entre a realidade e o que ele pregou para essa finalidade, a evidencia, com tintas fortes, as nossas contradições e a distância que muitos estabelecem entre o discurso e a prática de vida.

É PRECISO QUALIFICAR O DEBATE

O juiz, com qualquer outro profissional ,  deve  ter o senso crítico  aguçado, atilado. Mas só isso não basta. Deve, ademais,  estar preparado para o bom combate. Mas não deve fazê-lo apenas para satisfazer ao seu ego, sem conteúdo e sem preparo intelectual. O preparo intelectual, tenho dito, deve ser perseguido, obstinadamente, antes, durante e depois dos julgamentos, para qualificar o debate. Quem não se prepara intelectualmente para argumentar tende a usar os argumentos da força ao invés da força dos argumentos.

RELATIVIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

Não se pode, diante da criminalidade recorrente e da situação de quase descalabro que todos nós testemunhamos, deixar tudo como está, colocar em liberdade meliantes perigosos, a pretexto de que prisão não corrige ou de que  os acusados, no atual sistema penal, tendem a sair pior do que entraram, mesmo porque as pessoas assaltadas ou estupradas, por exemplo, jamais entenderiam a liberdade de um roubador ou de um estuprador, à invocação da presunção de inocência – a qual, como qualquer outro principio, deve, sim, em determinadas circunstâncias, ser relativizado .

É preciso, pois, ter em conta que, assim como o preso individualmente considerado, a sociedade também precisa de proteção, razão pela qual não comete nenhum desatino o magistrado que, diante do criminoso violento e/ou recalcitrante, opte por mantê-lo preso, ainda que provisoriamente, sem que, com isso, atente contra a Constituição Federal, pois, afinal, a mesma Constituição que destaca a presunção de inocência, estabelece que a sociedade tem direito à proteção.