Eu, viciado

 

O pintor francês Jean-Baptiste Debret chegou ao Rio de Janeiro em 1816, a convite de D. João VI, para fazer registros oficiais da vida na então capital do reino português. Contudo, foi muito além e documentou, ademais, maus-tratos e humilhações aos escravos. Graças a Debret, portanto, foi registrado o triste cotidiano dos escravos, uma vez que são muitas as pinturas de Debret dando conta das idas e vindas do dia a dia escravo no Rio de Janeiro do século XIX.
As informações dão conta de que, graças à ação de Debret, tivemos notícias do que ocorria no cotidiano da então capital do império. Todavia, constam das mesmas informações que, pelo fato de Debret ser um só, muitas coisas importantes deixaram de ser registradas por ele.
Fico pensando, cá com os meus botões, o quanto saberíamos da história desse período, se Debret tivesse às mãos essa “praga” chamada smartphone, que flagra e registra nos dias presentes as situações mais inusitadas, como se deu recentemente com um senador da república, um boquirroto inconsequente, que se viu preso por conta de uma gravação feita num aparelho celular, quando exercia, imprudentemente, a prática da bravata, para dizer o mínimo.
A verdade é que, nos dias de hoje, em face do smarthphone e em vista da instantaneidade da internet, quase ninguém faz mais nada escondido, sendo recomendável, no mínimo, que redobre os cuidados com a bisbilhotice alheia, pois, afinal, ninguém nunca sabe quando o interlocutor tem um diabinho igual a esse ligado, captando uma conversa. E uma vez ocorrido o flagra, e este caindo nas redes, pronto: a desdita é para sempre, sem controle, sem peias e sem limites.
O aparelho celular existe hoje para o bem e para o mal. Às vezes, fico me perguntando como se vivia antes sem esse ele, que a muitos vicia, que a outros tantos entorpece; que tira o sono, que grava, que filma, que publica, que modifica o mundo exterior.
Não sou viciado (?) em celular e nem em internet. Mas confesso – olha que bela contradição! – que não sei como viveria sem saber que tenho à minha disposição um tablet e um aparelho celular, sobretudo para o envio de mensagens e para as minhas leituras diárias, já que praticamente aboli os livros e os jornais físicos.
Um episódio interessante, a propósito, que bem retrata a importância do celular nos dias atuais, ainda que o seja em face de um episódio incomum. Tenho um compadre e amigo que, quando ia ao shopping, antes da era do celular, curiosa e inusitadamente, localizava os filhos pequenos e a esposa com um apito, pouco se importando com as interpretações que pudessem ser dadas a essa modalidade curiosa de busca. Hoje, com o aparelhinho, tudo mudou. Um toque, uma mensagem, e pronto!
Outro episódio tão inusitado quanto. Um irmão meu de sangue, não usava apito, mas se comunicava com um estridente assovio. Era assoviar, no shopping ou na Rua Grande, e seus filhos apareciam em desabalada carreira.
Hoje, essas práticas estão obsoletas. Um clic no celular e pronto:
-Onde estás?
-Estou próximo do supermercado.
-Estou indo para aí.
Simples assim.
Mas o mesmo aparelhinho, cuja utilidade é indiscutível, é, muitas vezes, fonte de irritação. Fico agastado, sim, quando alguém esbarra em mim por conta da desatenção em face do aparelho celular. Fico estupefato quando vejo, numa academia, as pessoas correndo na esteira ou se exercitando no elíptico, fazendo a leitura concomitante das mensagens recebidas no viciante e, quase sempre, irritante aparelho.
E quando deixam o personal esperando enquanto respondem às mensagens? O personal olha para um lado, olha para o outro, coça a cabeça, dá uma olhada nos presentes, curte a morena que passa nas proximidades, cumprimenta um colega de academia, e nada: o aparelho hipnotizou a aluna. Pronto! O programa de treinos para aquele dia já está prejudicado.
Fico olhando, perscrutando, mas fazer o quê?
E quando os mesmos alunos param na frente do bebedouro ou na porta de entrada ou nas escadas, atrapalhando as pessoas, concentrados e perdidos em face da magia proporcionada pelo famigerado e irritante aparelho?
Você já viu coisa mais estranha que um grupo sentado numa mesa de bar ou de restaurante, todos conversando com quem não está lá, via whatsapp, como se o amigo – ou amigos – da mesa não existissem?
E quando a gente se depara, como ocorreu comigo, recentemente, no São Luis Shopping, com alguém andando com o celular nas mãos, esbarrando nas pessoas, lendo as mensagens e rindo sozinho?
A minha dúvida é se Debret tivesse vivido essa mesma experiência faria um bom ou mau uso do celular. Confesso que não tenho dúvidas. O aparelhinho vicia. Debret seria, nos dias atuais, apenas mais um viciado, mas certamente saberia fazer um melhor uso do instrumento, como fez com o pincel, dando a sua contribuição à construção da historia do nosso país.
Mas, convenhamos, apesar das muitas inconveniências proporcionadas por uso abusivo, a verdade é que nem eu saberia como viver nos dias presentes sem os meus dois aparelhos de celular e meus dois tablets.
Sim, tenho dois aparelhos de cada. É que tenho receio de que acabe a bateria de um, e eu fique sem comunicação, apesar de andar com um carregador de bateria para não correr nenhum risco.
Como assim? Eu, viciado?
Sei lá!

Autor: Jose Luiz Oliveira de Almeida

José Luiz Oliveira de Almeida é membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Foi promotor de justiça, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Maranhão (ESMAM) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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