Pessimista ou realista?

 

Todo mundo fala que, diante das vicissitudes da vida, devemos ser otimistas, no que concordo plenamente, já que sou sempre otimista, conquanto não deixe de ser realista. Contudo, dependendo da posição do intérprete, isso pode (o realismo), muitas vezes, ser confundido com pessimismo.
Vale ressaltar que ser otimista não significa fechar os olhos para realidade, a ponto de obliterar a mente, a ponto de alcançar a cegueira mental. E por maior que possa ser o envolvimento emocional, é necessário enxergar e interpretar a realidade, com os pés fincados no chão, sob pena de, em face de um erro de interpretação, ser o sujeito do conhecimento levado à percepção equivocada da realidade. Nesse cenário, ou seja, em face dessa simbiose sujeito/objeto do conhecimento/otimismo/pessimismo/realidade, não são poucos os que fazem uma enorme confusão.
Creio que, diante da vida, de tudo que está a minha volta, em face de tudo o que tenho vivido, tenho procurado perscrutar bem a realidade, razão pela qual tenho sido realista diante dos acontecimentos que permeiam a minha vida, o que não impede que alguns prefiram me ver como um pessimista.
Feitas esses breves considerações preliminares, devo confessar, realisticamente, que estou desalentado, contristado, sem esperança e, às vezes, revoltado, com o que tenho testemunhado em face da falta de compromisso e da seriedade de uma enorme leva de homens públicos, em todas as esferas de poder.
Por tudo o que tenho observado, e em face de tudo o que já testemunhei, não vejo, sinceramente, nenhuma ação sincera dos que disputam cargos e poder, assim como não vejo, ademais, sinceridade de propósitos. Por isso, custa-me crer nas promessas que fazem, e isso me deixa desalentado, desesperançado, sem vislumbrar um futuro melhor.
Diante desse cenário, fico sempre com a impressão de que os que estão no poder querem apenas tirar vantagens de ordem pessoal, admitindo, para não ser leviano, que nesse mundo ainda habitam raras, raríssimas exceções.
Vejo, desalentado, desde sempre, que a sofreguidão pelo poder que muitos exteriorizam, objetiva, claramente – e quase sempre -, a defesa de interesses personalíssimos ou, quando não, mas com a mesma gravidade, os interesses dos apadrinhados, ou seja, dos que compartilham as mesmas ambições. Ou será que alguém minimamente realista imagina que a disputa por cargos que testemunhamos decorre do afã de servir ou por espírito público?
A mim transparece claramente que, nessa disputa por cargos e poder, o que está em jogo mesmo são os interesses pessoais e corporativos, e a sensação que tenho, depois das repetidas, reiteradas decepções com os homens públicos do meu país, é que ninguém, de rigor, está preocupado com os destinos da nação, dos estados e dos municípios, reafirmando que existem exceções.
Observo, noutro giro, mas com igual desesperança, que os homens públicos que disputam cargos e poder, como avidez incomum, são os mesmos que não têm opinião formada sobre nada, já que mudam de lado, ou de agremiação, ou de opinião, como mudam de roupa, ou seja, ao sabor das circunstâncias.
Vejo, nos dias de hoje, os que estão no poder e os que estão fora da esfera de mando, circunstancialmente, se servirem dos mesmos discursos, dos mesmos argumentos que antes condenavam. É dizer: o discurso e a ideologia se esvaem ou se incorporam ou se esvaem e se reincorporam, de acordo com a posição que ostenta o ser mutante, ou seja, no poder ou fora do poder, o discurso e as práticas políticas ressaem ao sabor do momento, das conveniências e dos interesses pessoais, nem sempre coincidentes com o espírito republicano que deveria nortear as suas ações.
A verdade é que, desde a minha percepção e de grande parcela da população, ninguém está preocupado com o país, com o estado ou com o município, inferindo-se disso que, se determinada medida for do interesse pessoal do agente público, pouco lhe importam as consequências para o conjunto da sociedade.
Na seara pública, infelizmente, as coisas funcionam assim: passa-se a defender tudo o que se condenou numa determinada época, desde que isso seja conveniente aos interesses do agente. Tudo depende, pois, das circunstâncias, das conveniências políticas de cada um. Não há, lamentavelmente, espírito público. Também não há preocupação com as consequências das decisões para a sociedade.
O inimigo de ontem é o amigo de agora, se isso for conveniente aos interesses de cada um, e às favas os escrúpulos. Assim é que, se for para permanecer no poder, pouco importam as mentiras proferidas, pouco importam os ataques antes desferidos e/ou a honra maculada, pois, afinal, nesse panorama, os fins justificam os meios. Nesse jogo não há como distinguir o bandido de mocinho.
Fator previdenciário, gastos públicos, pedaladas fiscais, CPMF, desonerações, responsabilidade fiscal, impeachment, distribuição de cargos públicos, filas nos hospitais, inflação, desemprego, estradas destruídas, ruas esburacadas, violência, falta de leitos nos hospitais, enriquecimento ilícito, contas nos paraísos fiscais, esses fatos são interpretados, avaliados e condenados sempre ao sabor do momento, de acordo com os interesses em jogo.
Nesses e noutros temas, infelizmente, a posição que assumem são as que condigam com os interesses de cada um ou de cada grupo, convindo anotar, nessa linha de pensar, que, ao longo da minha vida, testemunhei muitos dos que hoje estão no poder lutando pelo impeachment dos que estão hoje alijados desse mesmo poder; testemunhei, da mesma forma, muitos que hoje votam contra o governo, lutarem, com a mesma tenacidade, a favor das medidas que hoje abominam, tudo de acordo com as suas conveniências, sendo de relevo anotar que as consequências dessas ações são, para eles, o que menos importam.

Ninguém suporta pessoas agressivas

Clarice Lispector dizia que “até cortar os próprios defeitos é perigoso”, para, mais adiante, arrematar advertindo que, afinal, “nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício interno”.
Quanto a mim, reconheço, sem que seja preciso que me lembrem, que tenho vários, incontáveis defeitos, o que ocorre em face da minha condição de ser humano. Admitindo os muitos defeitos que tenho, impende anotar que, como eles já são muitos, sinto-me agastado, muitas vezes, quando acrescentam mais algum defeito que julgo não ser “merecedor”.
Admitindo, reconhecendo, com humildade, os meus defeitos, posso dizer que procurei – e consegui -, ao longo da jornada da minha vida, expungir, desgarrar de mim a maioria deles, sem que eles me fizessem falta, levando-me a concluir que nenhum deles dava sustentação ao meu edifício interno, para usar a expressão cunhada por Clarice Lispector.
Depois que consegui me livrar de alguns defeitos da minha personalidade, visando a uma melhor convivência com o semelhante, e estando, hoje, mais afável e menos acre, concluo que todos eles eram demasiados e desnecessários, tanto que vivo melhor sem a companhia deles, admitindo, nos dias presentes, que muitos foram forjados para impressionar a mim mesmo, para passar a impressão de que sou forte ou, noutra linha de pensar, para não expor as minhas fragilidades.
Assim expostas essas linhas introdutórias, devo dizer, em face do tema que escolhi para essa crônica, que não gosto de agressão, seja ela verbal ou, muito menos, física. É dizer: não estão entre os meus defeitos as agressões verbais e o tratamento descortês. Afinal, tenho convicção de que ninguém suporta pessoas agressivas.
A experiência de vida, a maturidade, os cabelos encanecidos e a prudência levaram-me a entender que podemos conseguir muito mais quando agimos com equilíbrio, compreensão, sensatez e prudência. Logo, não dá para viver a vida gastando energia com o revide, com a desforra, com provocações. Por isso, quando sou agredido, deixo que o tempo se encarregue de cicatrizar as feridas, convindo anotar, entrementes, que tudo tem limite, e o meu limite vai até onde a agressão não fira a minha honra e a minha dignidade. Mas, ainda assim, diante de uma quadra fática dessa natureza, não me deixo levar pelo impulso, evito ser o protagonista da discussão; conto até dez, até cem se for preciso; deixo o tempo passar, para, só depois, tomar uma decisão.
É verdade que nem sempre fui assim. Já fui do tipo que não levava desaforo para casa. E – vejam que absurdo! – até me ufanava disso, sem que eu soubesse em que me fiava, porque nunca fui de briga física, sempre fui do tipo franzino, do tipo fácil de ser jogado à lona com um murro de lenço.
Sempre dei especial importância às palavras, tanto que, nos dias presentes – mais maduro, menos impulsivo e mais contido -, advirto os desavisados para o poder das palavras, sobretudo em face da polissemia dos termos que permitem a extração de vários sentidos, muitos dos quais, se descontextualizados, podem se constituir numa incitação ao litígio.
No passado, nas oportunidades em que me senti ofendido, sempre reagi. Nunca deixei barato. Quando não reagia, ficava ruminando, esperando a hora do revide, ou procurando criar uma situação que me permitisse revidar.
Eu era mesmo do tipo insolente, criador de caso, mal humorado, circunspecto, o que me faz lembrar o protagonista do romance Notas de Subsolo, de Fiódor Mikhalovich Dostoiévski, que tinha prazer de dizer que era mau e rude, que vivia doente de raiva, que não se tratava só de raiva, admitindo ser um funcionário público, do tipo cruel grosseiro; do tipo que, convenhamos, ainda existe por aí.
Atualmente, tenho persistido na direção correta, na minha vida pessoal e profissional. Ao lado disso, já há algum tempo, introduzi em mim o sentimento de que o melhor mesmo é o tratamento cortês, a concórdia, a paz entre colegas, pois que, diferente do personagem de Dostoiévski, não me sinto no direito de ser agressivo apenas porque imagino navegar pelo mundo da retidão, pois, afinal, ser reto, probo, educado, responsável, sobretudo quando se trata de um homem público, não é favor, e nem autoriza ninguém a ser deselegante e mal educado.

Falsas verdades

 

Para definir uma situação dramática, as pessoas costumam dizer que estamos no olho do furacão. Segundo os livros científicos, o olho do furacão é o único lugar onde reina a calma, enquanto o furacão vai se expandindo por todos os lados, o que evidencia o equívoco da formulação.
Noutro giro, quando as pessoas têm uma desinteligência qualquer, uma pendência a ser solucionada e uma vez superadas as formas de composição amigáveis, as outras costumam aconselhar a procurar a Justiça. Mas aí confundem tudo. Esquecem que a Justiça, como sabemos, é o lugar próprio para um processo, com a observância de certos rigores formais.
Essas pessoas, em face de uma natural desinformação, costumam imaginar que a busca de qualquer instância de controle, mesmo as administrativas, e ainda que o façam informalmente, é o mesmo que procurar Justiça, ou seja, o Poder Judiciário, o que, certamente, só pode ser compreendido em face de uma descabida ampliação do seu conceito. E o mais grave nessa confusão entre o que seja Justiça e outras instâncias de controle, é que, quando não conseguem encontrar uma solução satisfatória aos seus pleitos nas instâncias percorridas, as pessoas, com natural descrença, costumam dizer que a justiça não funciona.
É natural que assim o seja, é natural que os leigos e desinformados façam esse tipo de confusão, afinal, são poucos os que têm o domínio dessas questões, daí por que a confusão é perdoável.
Tenho para mim, entretanto, que quando o equívoco – e dele a desinformação consequente -, sai da esfera restrita de alguém para alcançar a opinião pública, em face de uma matéria jornalística, aí a situação muda de figura, em face das consequências indesejáveis da confusão que se disseminará.
Explico. No dia 30 de junho do corrente, um articulista da Folha de S. Paulo, a propósito da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos, disse o seguinte: “Ao invés de estarmos discutindo a diminuição desta população (refere-se à população carcerária), assim como a reversão de tal lógica e o uso mais sistemático de penas alternativas, estamos propondo aumentar os casos passíveis de encarceramento, mesmo sabendo que os adolescentes que serão encarcerados não são, em absoluto, apenas aqueles que praticarão crimes hediondos. Estamos falando de um país que, dependendo do juiz, prende pessoas que cometeram furtos de R$ 150,00 e que andam com alguns cigarros de maconha”.
Essa é uma afirmação falaciosa, que se inspira provavelmente em exceções. Não é verdade que se prenda alguém só porque furtou R$150,00. É preciso desmistificar esses equívocos de análise, já que a lei não autoriza esse tipo de prisão e nem há juiz que a pratique. É dizer: ninguém é preso só porque furtou R$150,00, como afirma simploriamente o articulista.
É preciso ter presente que quando uma prisão decorre de uma subtração desse porte, é implementada em face de outras razões: reincidência, recalcitrância, violência empregada na execução do crime, dentre outras.
Um réu primário, de bons antecedentes, de boa conduta, que tenha praticado um furto de valor irrelevante ou qualquer outro crime com resposta penal diminuta, sem violência ou ameaça, nunca fica preso, porquanto a prisão se dá em face da conjugação de outros fatores. O valor do bem subtraído não é, definitivamente, relevante para determinar uma prisão, como equivocadamente afirmou o articulista, sustentando as suas conclusões em dados isolados e que não condizem com o garantismo penal a que todos nós nos submetemos, sem perder de vista a necessidade de proteção da sociedade, a relativizar as garantias penais inseridas em nosso ordenamento jurídico.
No Judiciário há juízes de todas as tendências, de todos os perfis. Há, nesse sentido, os laxistas, os intervencionistas, os minimalistas, os radicais, os liberais e os conservadores. Apesar disso, todos – ou, pelo menos, a grande maioria – têm consciência de que a prisão é a ultima ratio, uma medida extrema que só deve ser praticada no caso de real e indiscutível necessidade.
O que pretendo fixar mesmo, em face dessas reflexões, é que, por equivoco, por desinformação ou por má fé, as pessoas vão interpretando os fatos, tirando conclusões erradas, porque partem de premissas equivocadas. É mais ou menos como acontece no mundo político. Criam-se fatos, na tentativa de destruir os adversários ou a pretexto de negar uma grave acusação, e vão se repetindo, à exaustão, essas “verdades”, que terminam se incorporando na nossa consciência.
A verdade que precisa ser dita é que nunca é o valor do bem subtraído, isoladamente, que autoriza uma prisão preventiva. Tudo depende, portanto, do contexto, à luz do qual é possível até que uma pessoa seja presa sem que tenha sido encontrado nenhum bem jurídico em seu poder, como acontece, por exemplo, nos crimes tentados.
A prisão de qualquer pessoa e a sua manutenção não decorre da forma simplista como propõe o articulista; se partimos do princípio de que o valor da res furtiva é suficiente para definir uma prisão, doravante, quando o réu, nos crimes tentados, não lograsse êxito na subtração, estar-se-ia desautorizado a prendê-lo, em face da inexistência de prejuízo material. Daí pode-se inferir o equívoco do articulista, a merecer essa reflexão.
É verdade, sim, que nunca se prendeu tanto no Brasil. Não é menos verdade, no entanto, que nunca se cometeu tantos crimes. Não é menos verdade, ademais, que essa corrente contra as prisões, sobretudo as provisórias, tem um claro objetivo, que é esvaziar as prisões, em face do colapso do nosso sistema carcerário, que decorre da inércia do Executivo.
Da minha parte, vou continuar mantendo a prisão dos que tenham convivência perigosa em sociedade, sempre o fazendo com discernimento e com a compreensão de que não se devem solapar os direitos do réu, ainda que a pretexto de combater a violência.
O que não podemos é aceitar a crítica de que banalizamos as prisões provisórias, pois que elas são implementadas sempre à luz da sua real necessidade, como, aliás, anotei no artigo intitulado “A sociedade precisa de proteção”, publicado nesse jornal e disponibilizado no meu blog (joseluizalmeida.com)
Antes da critica que se faz ao excessivo número de prisões, o que se mostra mais premente é a construção de presídios, e que, no mesmo passo, se tratem os presos, definitivos ou provisórios, com dignidade e respeito, o mesmo respeito que temos para com as vitimas em particular e à sociedade em geral.

Pais e filhos

 

Na obra O Complexo de Portnoy, de Philip Hoth, o personagem central da trama, Alexander Portnoy, além dos seus próprios conflitos, era obrigado a conviver com posições díspares e controvertidas dos próprios pais que, decerto, exerceram sobre ele uma forte inquietação moral. Assim é que, enquanto a sua mãe adotava a honestidade como prática de vida, o pai aconselhava-o a não ser burro como ele, advertindo-o para que não cassasse por beleza e nem por amor, mas por dinheiro.
É cediço que lições dessa natureza não se veem apenas nas obras ficcionais, já que essa criação distorcida tem-se verificado, infelizmente, em muitos ambientes familiares, razão pela qual os filhos, dependendo das posições dos pais em torno das questões morais, podem viver verdadeiros conflitos, que permearão toda a sua vida, com reflexos, quem sabe, na criação dos seus próprios filhos, resultando, inapelavelmente, na consolidação de uma geração com gravíssimos defeitos morais.
Todavia, não são muitos os pais que aconselham os filhos com tanta franqueza, como registrado na obra ficcional aqui mencionada, a casarem por dinheiro, abdicando do amor ou colocando-o em segundo plano; amor que, a juízo dos crédulos, como eu, deve permear a vida de um casal e, por consequência, da família que resultar da convivência.
Mas, decerto, há muitos e muitos pais que, com sua ação, com o seu modo de vida, com os seus (maus) exemplos, entremostram, deixam claro aos filhos que, nesse mundo, assim como na obra mencionada, o que vale mesmo é o dinheiro, e que por ele, e em face dele, tudo é permitido, tudo pode ser feito, pouco lhes importando os valores morais. Daí que, como todos testemunhamos, muitas são as relações marcadas pela brevidade, muitas são as famílias desfeitas, os lares sob escombros, exatamente porque não foram concebidos à luz do amor, mas das conquistas materiais que os tornam um ambiente pernicioso, onde prepondera o jogo de interesses, o afã de alcançar bens materiais, sejam quais forem os meios empregados.
Disso tudo resulta, não tenho dúvidas, a inviabilidade de as relações se prolongarem no tempo, sabido que, numa família, numa convivência entre duas pessoas, só o amor é capaz de fazê-las duradouras, quiçá eternas, até que a morte se encarregue de fazê-las fenecer, pois não se constrói uma família na base de ações perniciosas e volúveis, com esteio na perspectiva deletéria de que é preciso acumular as conquistas materiais sejam quais forem os meios, sejam quais forem as consequências.
A verdade é que, conquanto não sejam muitos os que aconselham tão diretamente os filhos, para que se conduzam pelo caminho condenável da relação conjugal por puro interesse material, há aqueles que, com sua ação, com o seu exemplo, com a sua prática de vida, deixam patente que, na busca frenética e incessante de bens materiais, conforme dito acima, vale qualquer coisa, mesmo que seja casar sem amor, por conveniência, por interesse, pouco importando as coisas do coração, as consequências de uma relação que se estabeleça em vista dos interesses mundanos.
Fico me perguntando, diante dessa realidade, e em face da magnífica obra ficcional a que me reportei acima, qual a família, na verdadeira acepção do termo, que se consolidará, definitivamente, que não seja com as suas bases fincadas no amor, no respeito e nos bons exemplos?
Não acredito, definitivamente, numa família construída à luz dos maus exemplos, na qual os cônjuges, ao invés do amor, apostam na esperteza, na perspectiva de levar vantagem a qualquer custo, à luz de práticas condenáveis, dos interesses escusos, cujo fator preponderante seja o interesse pecuniário, ou mesmo o poder, relegado o amor a segundo plano.
Admito que sou, sim, do tipo careta, do tipo démodé, pois, apesar dos exemplos, apesar de todas as dificuldades pelas quais passei e que, por vezes, passo na vida, ainda acredito no amor, no respeito e na consideração pela pessoa com quem divido as minhas inquietações, os meus sofrimentos, as minhas alegrias e tristezas.
Eu não ministro aos meus filhos ensinamentos outros que não sejam concebidos à luz do amor, do respeito e da consideração, os quais são, disso tenho certeza, a base de uma união duradoura e da construção de uma família.
Aquele que orienta os filhos a formarem uma família à luz de interesses menores e que não sejam em face do amor, orienta a construção de um castelo de areia, que será levado com o vento, que não resistirá à primeira intempérie.
Da mesma forma que não se orienta um filho a formar uma família com esteio no interesse econômico, não se pode, ademais, dar maus exemplos a eles, estimular a má conduta, emprestar aquiescência aos deslizes.
Não se constrói uma sociedade minimamente decente, ministrando conselhos daninhos aos filhos, ensinando-os, enfim, os meios para levar vantagem, em detrimento do semelhante e dos valores morais. Tenho proclamado, com ênfase e repetidamente, que não vale tudo, por exemplo, para ascender. Não vale tudo para vencer. Tudo neste mundo deve ter limite. O limite é a ética, a honra, o pudor.
Quero sonhar, sim. Quero que meus filhos sonhem, também. Eu os quero vencedores. Todavia, não os estimulo a vencer de qualquer jeito, sob os escombros de sua dignidade. A casa de pai deve, sim, ser a escola de filho. Mas deve ser uma boa escola. Uma escola decente, que o conduza pelos caminhos da honradez, da dignidade e da decência, diversa da escola de Marcelo Odebrecht, por exemplo, que, ao que se infere de suas próprias palavras, estimula na sua família a cumplicidade para realização do malfeito, ao admitir que prefere punir uma filha que denuncie o malfeito que a autora do deslize.
Os desejos do homem, a sua ambição, a sua volúpia pelo poder e pelos bens materiais não podem ser de tal monta que o levem à degradação moral, a ponto de sublimar o malfeito, como se os fins justificassem os meios.
Só para ilustrar, lembro que Sócrates, tido por muitos como o mais sábio dos homens, entendia que se encontrava mais próximo dos deuses quando menos desejava. Por isso, se orgulhava de viver uma vida modesta, sem ambição; e ambição, definitivamente, na minha concepção – e de muitos, importa dizer – tem limites.

O poeta e o boquirroto

 

Em 1979 comprei o meu primeiro aparelho de som. Era um Três em Um – rádio, toca discos e fita cassete – , da Sony; grande novidade à época. Era o que havia de mais compacto no mercado, mesmo assim, comparado aos aparelhos de hoje, era um trambolhão, difícil de ser transportado, mas excelente para ser exibido.

Recém-casado, recém-formado, iniciando a construção da minha história, fixei domicílio no Conjunto Habitacional Turu, conjunto de casas populares, localizado no bairro do mesmo nome. Era uma casa simples, com piso de cimento, sem muro, sem forro, mas com o mínimo de conforto, onde vivi momentos de rara e intensa felicidade, ciente e consciente de que era tudo que eu podia oferecer a mim mesmo e à pessoa que escolhi para viver a minha história de amor e de vida.

Com o aparelho Três em Um, vivendo a bela e desafiante aventura de constituir uma família e de construir a minha própria história, fixei, embevecido e embalado pelo desafio, o meu próprio domicilio, curtindo os meus cantores e cantoras favoritos, ouvindo-os nos antigos long plays, os antigos discos de vinil.

Tendo sido o meu primeiro aparelho de som de qualidade, claro que eu tinha muita afeição pelo Três em Um. Pensei até guardá-lo para posteridade. Juro! O cuidado era tanto  que, como não havia forro na casa, por precaução, mandei fazer uma estranhíssima capa de flanela, com a qual o cobria por inteiro, desfigurando-o, mas, na minha visão, protegendo-o das intempéries, sabido que não seria fácil adquirir outro.

Com o Três em Um a me fazer companhia, colocado em lugar de destaque na minha sala de visitas, sob a estranha capa de flanela, que só era retirada em momentos especiais, eu esperava, com singular expectativa,  a chegado do sábado, para, mais uma vez, reunir a parentalha para ouvir músicas, sobretudo as canções do ídolo maior Roberto Carlos, cujos discos, sempre lançados nas proximidades do Natal, a gente ouvia o ano inteiro, repetidamente, exaustivamente, até estourar a paciência dos menos afeiçoados ao seu canto e voz.

Sempre gostei de músicas. Gosto até hoje. Os meus dias sem música não seriam os mesmos. Com música enfrento até engarrafamento sem me irritar. Nesse sentido, é compreensível que várias músicas tenham marcado a minha vida, especialmente as que falavam – e falam –  ao coração, em cuja arte destaco os inigualáveis Roberto Carlos, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran,  Maysa,  e a dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim,  dentre outros, sem deixar de curtir, em outras circunstâncias, as obras mais intelectualizadas de compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque.

Todos, de certa forma, compuseram ou cantaram  músicas que marcaram, com tintas fortes, a minha vida. De Gilberto Gil, que ponho em destaque nessas reflexões, me chamou a atenção, entre tantas obras primorosas, a música intitulada Metáfora, da qual destaco a seguinte passagem: “Uma lata existe para conter algo, mas quando o poeta diz lata pode estar querendo dizer o incontível. Uma meta existe para ser um alvo. Mas quando o poeta diz meta pode estar querendo dizer o inatingível.”.

O que quero refletir, aqui e agora,  a propósito da letra da música de Gilberto Gil,  é o óbvio:  o poeta tem licença para dizer o que quiser, e deve, sim, ser compreendido e respeitado em face do que diz, conquanto possa ser criticado em face da qualidade da sua poesia. Todavia, ainda assim, está autorizado a dizer o que pensa, sem ser censurado pelo que pensa e diz.

Inobstante, nós, nas nossas relações, sobretudo nas atividades profissionais,  sem exercitar a veia poética, posto que não a possuímos, não temos licença para dizer o que bem entendemos. Temos, sim, ao reverso, que  pensar, repensar, contar até dez, refletir, enfim,  sobre as consequências que decorram das nossas palavras; na repercussão daquilo que dizemos ou fazemos, sobretudo quando exercemos uma posição de destaque e temos ciência da repercussão daquilo que falamos.

O juiz, por exemplo, não pode, nas suas decisões – ou mesmo fora dos autos – dizer o que bem entende, fugir do exame da provas, vilipendiar o bom-senso, concluir precipitadamente, sem estar autorizado em face das provas produzidas ou pela conveniência.

O juiz não pode ser um fanfarrão, um falastrão, um boquirroto, dizer tudo que lhe vem à mente, como não pode, de resto, qualquer um cujas palavras possam repercutir.

Não pode e não deve o juiz, ademais, antecipar seus julgamentos, agir como agem os que estão numa mesa de bar ou num campo de futebol. É preciso ter postura, portar-se de acordo com as exigências e liturgia do cargo, assertiva que vale, de mais a mais, para quem exerça uma liderança.

Da mesma forma, não pode o representante da parte em juízo, na defesa do seu cliente ou do Estado, ser desleal na produção e no exame  das provas que dão base à sua postulação, numa vã tentativa de ludibriar, de levar o juiz na conversa, para levar vantagem, para se sair bem, para vencer a contenda, a qualquer custo, de qualquer forma, sejam quais forem os meios e as consequências, pois tudo isso equivale, em proporção e consequência, a dizer além do que deve e pode.

Lado outro, não pode o advogado ou representante do Ministério Público,  sob qualquer argumento, ainda que em nome da ampla defesa, da plenitude de defesa ou do interesse público, ser desleal com a parte adversa, fazer uso de meios impróprios para alcançar os seus objetivos, indo além ou aquém da expectativa que se guarda em relação à sua atuação.

No nosso mundo, diferente do mundo do poeta, não temos licença para dizer o que nos vem à cabeça, sem medir as consequências.  Não podemos alegar o que não podemos provar. Não podemos fazer acusação ou afirmação levianas, sob pena de pagarmos um elevado preço pela ousadia.

Se é verdade que o juiz não pode decidir em face de suas intimas convicções, que não deve argumentar com o que lhe vem à mente, sem base em provas regularmente produzidas,  não é menos verdadeiro que o advogado não deve se valer de sua capacidade postulatória para formular alegações infundadas, para formular pleitos que sabe destituídos de base legal ou para achincalhar, desrespeitar, afrontar o magistrado em face de uma decisão que lhe tenha sido desfavorável.

É preciso, pois, medir as palavras, pois se ao poeta se concede licença para o uso das palavras, ao boquirroto, dependendo da afirmação que faz, podem ser reservados os rigores da lei.

Traficante ou usuário?

Não gosto de tratar de questões jurídicas nos meus artigos. É que tenho a pretensão de fazer chegar as minhas reflexões ao maior numero possível de leitores, e é óbvio que, se me limitasse a escrever acerca de questões penais, por exemplo, as minhas crônicas não teriam o alcance por mim pretendido.

Em face dessa pretensão, inobstante, eu não passo ao largo das cobranças, já que muitos são os que me pedem reflexões técnicas, pois querem saber a minha opinião sobre os temas mais atuais em matéria  penal.

Em face dessas insistentes cobranças, vou abrir algumas exceções, mas pretendo falar de temas que interessem a todos e que possam despertar no leitor algum interesse em torno da matéria, visto que não pretendo escrever para uma parcela específica da população.

Assim pensando, resolvi fazer algumas ponderações, a propósito do crime de tráfico de drogas, com a pretensão de desmistificar uma falsa verdade que alguns, por esperteza ou malandragem, tentam estabelecer, para alcançar benefícios legais previstos na Lei de Drogas, e em face mesmo da discussão que se faz iminente no STF, a propósito da constitucionalidade do artigo 28 da lei em comento.

Nessa senda, anoto que é um rematado equívoco, por exemplo, pretender que a quantidade de droga apreendida em poder do acusado define, por si só, tratar-se de droga destinada ao uso ou à traficância. Com efeito, é mais do que comum, sempre que alguém é preso, por exemplo, com dois, quatro, oito papelotes de maconha ou duas, quatro, oito pedras de crack, o argumento de que, em face da quantidade da droga apreendida, estar-se-ia defronte de um usuário e não de um traficante, a deslegitimar a manutenção de sua prisão. Na mesma balada, e da mesma forma equivocada, há os que concluem, precipitadamente, que basta a apreensão de uma quantidade expressiva de drogas para que se constate tratar-se o detido, sem maiores questionamentos, de um traficante.

Posso afirmar, para desmistificar, que nem uma coisa nem outra. Tudo depende do contexto da apreensão, tudo depende, depois, dos dados que serão coligidos.  Nem a pequena quantidade leva, de logo, à conclusão de que se trata de um usuário, nem uma quantidade expressiva é indicativa de estar-se diante de um traficante, convindo anotar que quando me refiro a quantidade expressiva não me refiro a toneladas de drogas, porque, nesse caso, a inferência lógica é de que se trata mesmo de traficância. Refiro-me, sim, a quantidade relevante, mas que não deixa evidenciado, de logo, à míngua de outros dados, tratar-se de traficância.

Não creio, por exemplo, que um usuário abastado se limite a adquirir pequenas porções de drogas, aventurando-se nas bocas de fumo com regular frequência, razão pela qual o fato de ser apreendida em seu poder uma significativa quantidade de drogas não deve, só por isso, levar à conclusão de que se trata de um traficante, sem que se faça uma análise do fato à luz de outros elementos de prova.

Da mesma forma, o fato de alguém ser preso com 05 (cinco) papelotes de maconha, por exemplo, não leva a concluir, sem a consideração de outros dados, tratar-se de um simples usuário. Tudo, portanto, deve ser aferido à luz do contexto, dos demais elementos de provas coligidos durante a persecução criminal, razão pela qual, tenho reafirmado, em sede de habeas corpus, de cognição rarefeita, não ser possível a emissão de um juízo de valor definitivo acerca da questão, pois que se traduziria numa injustificada precipitação.

É por isso que, em face do contexto, pode-se, sim, conceder liberdade a quem tenha sido preso com uma quantidade expressiva de drogas e, numa aparente contradição, negar o mesmo benefício a quem tenha sido preso com pequena quantidade, pois, repito, tudo depende do contexto, da quadra fática, do histórico do detido e de outros elementos que não podem, por óbvias razões,  deixar de ser considerados.

O que quero dizer, em outras palavras, é que, diferente do que possam pensar os que almejam liberdade provisória ou medidas cautelares diversas da prisão à luz apenas da quantidade da droga apreendida, é que a quantidade de drogas, isoladamente, nos conduz, necessariamente, à conclusão de que o detido seja traficante ou usuário de drogas.

É preciso ter presente que nenhum juiz analisa os pleitos de liberdade, em face de crimes desse jaez, levando em conta apenas e tão somente a quantidade da droga apreendida. Logo, é inviável tentar convencer o juiz, ainda na fase preambular da persecução ou em sede de habeas corpus, com cognição rarefeita e não verticalizada, de que tal e qual acusado esteja a merecer a sua liberdade provisória ou qualquer outro favor legis,  apenas e tão somente em face da quantidade da droga apreendida,  num juízo de pura precipitação.

O que é preciso ter em conta, diante dessas questões, é que a quantidade de drogas não tem o condão de antecipar, por si só, um juízo de valor acerca da tipicidade penal, e que, ademais, para manter uma prisão ou decretá-la, o que importa é a análise, concomitante, de outros dados consolidados nos autos,  sem perder de vista, por exemplo, as circunstâncias da apreensão  e a história pregressa do acusado.

Diante dessa perspectiva, sempre à luz do contexto, reafirmo que a quantidade de droga apreendida pouco importa para definir o acusado como traficante ou usuário, pois ela, isoladamente, não nos conduz à conclusão acerca da tipicidade penal e o consequente tratamento a ser dispensado ao indiciado.

E que não nos iludamos: não existe, desde a minha compreensão, nenhuma possibilidade de se fixar critérios objetivos para distinção entre traficantes e usuários, convindo anotar, como antecipei acima, que este artigo está sendo redigido na manhã de quinta-feira, dia 13, antes, portanto, do julgamento do habeas corpus manejado em favor do paciente Francisco Benedito de Souza, no qual o Supremo Tribunal Federal debaterá acerca da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.

Somos todos iguais perante a lei?

É princípio republicano: todos são iguais perante a lei. Verdade? Em parte, sim. Contudo, uns são mais iguais que outros, já que aprontam e fazem o que lhes dá na cabeça, na certeza da impunidade, contando com a complacência das instâncias formais de controle, que, conforme se sabe, ao longo da nossa história, têm sido seletivas, com os olhos voltados apenas para os criminosos egressos das classes menos favorecidas, com os olhos vendados quando se trata de delinquente de posição destacada.
Nesse cenário, temos testemunhado, com desalento, o enriquecimento ilícito de muitos agentes públicos, cientes da impunidade, certos de que as instâncias de controle só excepcionalmente os alcançarão. E assim, agem à luz do dia, à vista de todos, como o mais destemido dos meliantes, pois têm ciência e consciência de que, se forem presos, será por pouco tempo, apenas o suficiente para que o cidadão desavisado tenha a falsa impressão de que a justiça não é discriminadora, que vale para todos.
Esse é o quadro que, infelizmente, até bem pouco tempo, mais precisamente até o julgamento do famigerado “mensalão”, se descortinava sob os nossos olhos, a minar a nossa esperança, a nossa crença de que a lei deveria a todos alcançar, sem discriminação, sem a seletividade que hoje tem sido a sua marca mais visível e, também, mais desalentadora.
Todavia, vejo, agora, uma flagrante e alentadora tendência no sentido inverso, ou seja, de igualar a todos os brasileiros perante a lei, ou, pelo menos, de tentativas nesse sentido, como temos testemunhado em face das diversas operações deflagradas pelas instâncias federais, que nos dão a esperança – que, espero, não seja vã – de que, logo, logo, as instâncias estaduais possam agir com o mesmo denodo, no sentido de punir exemplarmente quem faz uso de um mandato outorgado para alcançar o dinheiro público.
Espero, sinceramente, que isso ocorra com a máxima brevidade. É que tem que ser assim mesmo. Ninguém deve – ou deveria, pelo menos – se sentir autorizado a fazer o que lhe apraz no exercício do poder, na certeza da impunidade, na certeza de estar acima da lei, de estar à ilharga dos órgãos de controle do Estado, sensação que, sejamos sinceros, decorre da omissão, da leniência, da inércia, enfim, desses mesmos órgãos, sobretudo no âmbito estadual.
Portanto, é preciso acabar com essa nefasta cultura terceiro-mundista de que uns podem sempre mais que os outros, de que a lei não vale para todos, de que os seus rigores valem para uma maioria desamparada e desassistida, e de que os seus favores são destinados apenas e tão somente a uma elite, a uma minoria que tanto mal tem feito ao país.
Mas, convenhamos, sejamos realistas, para que isso se torne uma regra, para que os órgãos persecutórios – sobretudo no que se refere aos Estados, mais propícios a ingerências indevidas – ajam com o necessário destemor, ainda há um longo caminho a percorrer, porque entre nós ainda viceja, com muito mais intensidade, o apadrinhamento, o sistema de proteção, as ingerências indevidas, o favorecimento.
A cultura da impunidade, infelizmente, está sedimentada entre nós, pois, em certa medida, somos todos complacentes com as roubalheiras que se perpetuam no Estado. E, quando ocorre alguma reação efetiva das instâncias de controle, envolvendo figuras destacadas da República, testemunhamos reações destemperadas e inconsequentes dos investigados, acostumados, desde sempre, com a impunidade, com a certeza de que estão acima da lei, como tem ocorrido nos dias presentes em face da ação destemida, no âmbito federal, da Polícia, do Ministério Público e de um magistrado, que não têm medido esforços para alcançar os meliantes de colarinho branco que tomaram de assalto a Petrobras.
Tenho testemunhado, com certa indignação, reações descontroladas e irresponsáveis de figuras de destaque no cenário nacional, motivadas pelas ações destemidas e exemplares das instâncias formais de controle, acostumados que foram, desde sempre, com a complacência, com a omissão do Estado que, como anotei acima, só tinha as suas ações voltadas para a pequena criminalidade.
Os tempos, definitivamente, são outros, e nunca pensei testemunhar uma medida de força contra próceres da República, a reafirmar o fortalecimento das instituições. Eu até imaginava que isso pudesse ocorrer, mas em filme ou em sonho, razão pela qual a realidade que vivemos hoje ainda assusta a muitos como eu, acostumados com a omissão do Estado.
Nunca imaginei testemunhar figuras expressivas da República sendo investigadas e obrigadas a prestar contas à sociedade. Tampouco pensei em testemunhar a prisão de tantas pessoas destacadas da sociedade, exatamente as que sempre se colocaram acima da lei, confiantes, cientes da omissão das instâncias de controle.
Por tudo isso, creio que está próximo o dia em que, por essas plagas, como no primeiro mundo, todos serão, materialmente, iguais perante a lei. E quando esse dia chegar, quem vai dar risadas sou eu. Por enquanto, esboço apenas um sorriso acanhado, com o justificado receio de que tudo, ao fim e ao cabo, como tantas outras operações levadas avante no âmbito federal, se transforme num grande pesadelo.
O que espero mesmo, quase impaciente, é que, também nos Estados, onde os desvios de verbas públicas são uma sórdida realidade, sobretudo nas esferas municipais, as instâncias de controle – Ministério Público, Polícias e Poder Judiciário – saiam da inércia, deixem a sua prosaica letargia de lado, para, assumindo uma postura definitiva, agirem na mesma medida e com a mesma tenacidade das instâncias federais, no sentido de punir os que teimam em sangrar os cofres públicos.
A verdade é que não se pode mais transigir com tanta inércia em face da sangria dos cofres públicos municipais, em detrimento dos interesses da população, sangria que decorre da certeza da impunidade, em face da omissão, da inércia, enfim, dos órgãos de controle, salvo uma ou outra exceção.
Estou testemunhando, sim, o fortalecimento das nossas instituições. E chegará o dia em que, as ações que hoje testemunho como uma exceção, irão se tornar uma regra. E, quando isso se tornar realidade, o gestor público poderá até se locupletar do dinheiro do contribuinte, porque isso é inevitável, mas o fará sabendo que, se for pego, não se beneficiará do tratamento discriminatório que hoje prepondera na esfera criminal; ele o fará ciente de que a lei, definitivamente, vale para todos.
Tenho reafirmado que nada é mais danoso para a convivência social que a ação dos que se imaginam superiores, dos que pensam estar acima da lei; dos que esquecem que as pessoas são, essencialmente, iguais, razão pela qual, perante a lei, ninguém deve se sentir imune ou superior, convindo trazer à colação, para ilustrar, a sábia e reflexiva lição de Luis Roberto Barroso, segundo o qual nada mais triste para o espírito do que uma pessoa se achar melhor que a outra, seja por sua crença, cor, sexo, origem ou por qualquer outro motivo ( in A fé, a razão e outras crenças).

A sociedade precisa de proteção

O que se ouve dizer e o que se lê, em todas as revistas especializadas, em todos os artigos que tratam da questão prisional, em todos os seminários e congressos nos quais se tratam de temas relacionados à criminalidade e ao sistema carcerário, é que nunca se prendeu tanto, que os juízes abusam da prisão provisória, que prendem primeiro para depois condenarem, que, perigosamente, invertem a lógica da presunção de inocência, que a prisão deveria ser, mas não é, a última ratio da extrema ratio, e que, por isso, tem sido utilizada abusivamente.

Verdades absolutas? Não! Verdades, sim, mas relativas. Não é verdade, por exemplo, que os juízes façam tabula rasa do princípio da presunção de inocência ou que não reconheçam os malefícios da prisão e de que o cárcere deva ser a última opção. Contudo, é preciso reconhecer que, verdadeiramente, nunca se prendeu tanto e que há um número excessivo de prisões provisórias.

Mas por que isso ocorre? Por que se prende tanto? Porque os juízes são insensíveis?  Porque temos a mentalidade terceiro-mundista? Porque os juízes desconhecem a situação carcerária do país? Porque não sabem que as prisões são uma universidade do crime? Porque desconhecem que as prisões são verdadeiras masmorras?  Porque não sabem que são uma escola de recidiva? Porque não têm consciência de que os direitos humanos são desrespeitados nas chamadas instituições totais? Porque pensam que crime se combate apenas com prisão? Porque, enfim, lhes falta sensibilidade?

Atrevo-me a responder às indagações, assumindo o risco de ser contestado, dizendo que os juízes – em sua maioria, pelo menos – não são insensíveis e nem desconhecem a realidade carcerária do Brasil, e muito menos as garantias legais inseridas em nossa Carta Magna. Aventuro-me a afirmar, nesse sentido, que se prende muito porque nunca se cometeu tantos crimes violentos e nunca se reincidiu tanto nas práticas criminosas mais nefastas para o conjunto da sociedade.

Prende-se muito, ademais, porque a prisão ainda é a face mais visível, a mais didática, a mais exemplar das (re)ações das instâncias persecutórias, conquanto se tenha que admitir a sua quase falência e, no mesmo passo, se tenha a convicção de que ela deva ser reservada apenas para os criminosos violentos e/ou recalcitrantes, como tem sido, pois não me ocorre que alguém permaneça preso se não cometeu crime violento ou sem que seja contumaz.

 Prende-se muito, porque não há políticas públicas preventivas da criminalidade, razão pela qual temos que trabalhar com os efeitos da ação criminosa, cientes de que as causas da criminalidade permanecem inalteradas, realimentando o sistema. Prende-se muito, de mais a mais, porque entendemos ser preciso dar uma resposta à sociedade, que tem que ser minimamente protegida. Prende-se muito, finalmente, porque não se pode fazer vista grossa diante do criminoso recalcitrante, da criminalidade grave, como antecipei acima.

Os que fazem esse tipo de questionamento pensam, equivocadamente, olhando apenas um lado da questão, que só os autores de crimes merecem a tutela do Estado, que só a eles importa a proteção contra os excessos. A sociedade, sob essa mesma visão, não mereceria proteção, razão pela qual dever-se-ia, em face da escalada criminalidade, sublimar a presunção de inocência em detrimento do interesse público,, como se fosse um direito absoluto; e, conforme sabemos, direito absoluto não é, pela singela razão de que direito absoluto não existe.

Portanto, é necessário colocar as coisas no seu devido lugar. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Se é verdade, com efeito, que a prisão, máxime a provisória, deveria ser a última opção – e efetivamente o é -, não é menos verdadeiro que a sociedade tem o direito à proteção das instâncias de controle, as quais, para esse fim, devem, sim,  sem excessos que possam ferir a razoabilidade, valerem-se dos mecanismos de tutela para sua proteção, sabido que a não observância ao direito de proteção corresponde, também,  a uma lesão a direito fundamental.

É preciso não olvidar da obrigação positiva do Estado quanto à materialização dos direitos fundamentais, dentre eles, mas do que nunca nos dias atuais, o direito à segurança, positivado na Constituição Federal.

À guisa de ilustração, anoto que o Direito Penal serve, simultaneamente, como limitação ao poder de intervenção do Estado, como instrumento de combate ao crime. Todavia, deve, com a mesma intensidade, proteger a sociedade e seus membros dos abusos do individuo. Assim é que o mesmo direito penal que protege a liberdade individual em face de uma repressão desmedida do Estado, deve preservar o interesse social ainda que à custa da liberdade do indivíduo (Claus Roxin)

Não se pode, diante da criminalidade recorrente e da situação de quase descalabro que todos nós testemunhamos, deixar tudo como está, colocar em liberdade meliantes perigosos, a pretexto de que prisão não corrige ou de que  os acusados, no atual sistema penal, tendem a sair pior do que entraram, mesmo porque as pessoas assaltadas ou estupradas, por exemplo, jamais entenderiam a liberdade de um roubador ou de um estuprador, à invocação da presunção de inocência – a qual, como qualquer outro principio, deve, sim, em determinadas circunstâncias, ser relativizado .

É preciso, pois, ter em conta que, assim como o preso individualmente considerado, a sociedade também precisa de proteção, razão pela qual não comete nenhum desatino o magistrado que, diante do criminoso violento e/ou recalcitrante, opte por mantê-lo preso, ainda que provisoriamente, sem que, com isso, atente contra a Constituição Federal, pois, afinal, a mesma Constituição que destaca a presunção de inocência, estabelece que a sociedade tem direito à proteção.

Ademais, não se deve perder de vista que, se o interesse de um cidadão se puser em linha de confronto com outro interesse, um deles deve ser sacrificado, como ocorre com o direito à liberdade e o direito à segurança e proteção da sociedade, sem que isso importe em abespinhamento da ordem jurídica.

À conta de reforço, anoto, forte na lição de Gilmar Mendes, que os direitos fundamentais expressam também um postulado de proteção, já que eles não contêm apenas uma proibição de excesso mas também uma proibição de omissão. Nesse sentido, a proibição de proteção deficiente impõe ao Estado o dever de proteger o individuo contra ataques de terceiros, mediante a adoção de medidas de força.