Por que insisto em escrever?

François Truffaut, cineasta francês, diretor, ator e crítico, morto aos 52 anos, de câncer no cérebro, vinte e um longas-metragens, um punhado de  curtas, centenas de artigos sobre cinema, dizia, com simplicidade:   “Eu faço filmes para realizar meus sonhos de adolescente, para me fazer bem e, se possível, fazer bem aos outros” (Folha de S. Paulo, de 21 de junho de 2015)

Algumas vezes tenho me perguntado por que insisto em escrever? Indago a mim mesmo, reiteradas vezes,  se não seria melhor o silêncio, se não seria melhor para as minhas relações de amizade, para minha paz interior, para manter uma boa convivência com os que pensam diferente de mim,  ficar contando as estrelas, admirando o por do sol, silente e passivo, deixando a banda passar, como a moça feia debruçada na janela a que faz menção Chico Buarque na famosa e deliciosa  A Banda: “…a moça feia debruçou na janela pensando que a banda tocava pra ela…”

Todavia, alguma coisa muito instigante me impulsiona a escrever. É alguma coisa muito forte, algo difícil de ser contido. É quase uma necessidade. Vou observando o mundo, examinando a conduta das pessoas, e vou sendo instigado, no mesmo passo, a dizer o que penso, e sinto,  em face do que vejo.  Não dá, na minha percepção, na minha visão de mundo, para, simplesmente, deixar acontecer. Eu não toleraria essa passividade. Não é o meu perfil. Não é a minha praia, para usar uma expressão própria dos dias atuais.

Assim é que, quando o impulso me leva à reflexão e esta me leva a escrever, não tenho peias, não tenho controle de mim mesmo. Nesse sentido, deixo a inércia, sou instado,  e me apresso a dizer o que penso sobre isso ou aquilo, com cuidado para não falar sobre o que não conheço para não parecer arrogante; nem mesmo a incerteza quanto à recepção dos meus escritos me desestimula.

E, nessa sanha incontrolável, vou escrevendo, refletindo, traduzindo em pensamento as palavras que dentro de mim não querem calar, pois, reafirmo,  sinto uma enorme necessidade, quase doentia, de compartilhar as minhas inquietações, ainda que não tenha a exata dimensão da sua repercussão, ou seja, de como as pessoas assimilam as coisas que digo, afinal, nesse mundo em que viceja, em profusão, a liberdade de expressão, eu sou apenas mais um a se aventurar no mundo das letras, sem ser sequer um dos mais qualificados, ciente e consciente das minhas limitações intelectuais.

Fico, cá do meu canto, me questionando, a propósito dessa propensão de não silenciar, ciente de que, para uma boa convivência, melhor mesmo é não dizer, é permanecer calado, optar pelo mutismo acomodado, pela inércia covarde, sabido que aquele que fala, que diz o que pensa, que não contém o impulso, corre sempre o risco de ser incompreendido, pois as palavras têm uma força inigualável, podendo ser bem ou mal interpretadas, dependendo de quem se aventure a penetrar no espírito do cronista, em face, sobretudo, da vagueza, da polissemia de alguns termos, a possibilitar várias interpretações, sobretudo se analisada fora do contexto, o que pode, sim, ocorrer, em face, por exemplo, da má vontade de quem se aventura a ler o texto.

Todavia, ainda assim, mesmo correndo o risco da incompreensão, não deixo de dizer o que penso, e sinto,  em face dos mais variados temas. Tenho dito, para mim mesmo, quando me ocorrem esses questionamentos, que eu não quero ser, nunca vou ser, me recuso a ser um Meursault, personagem de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, pois, diferente do personagem e de muitos que pensam e agem como ele, não aceito levar  uma vida banal, irrelevante.

A vida e o pensar para mim não são indiferentes.Tudo na vida para mim faz sentido. Mesmo a dor do próximo ( lembro, para quem não leu a obra de Camus, que nem a morte da própria mãe abalou Meursault), para mim, tem relevância. Diferente de Meursault, me recuso a ser levado, arrastado pela correnteza da vida e da história, ainda que, por isso,  possa ser incompreendido.

Parafraseando Fracois Truffuat, eu escrevo para me satisfazer, e, se possível, para agradar aos outros, para induzir à reflexão, pois sei que há muitos que assimilam bem o que escrevo, ainda que isso não seja o mais relevante, pois, afinal, numa sociedade plural e diversificada como a nossa ,  é mais que natural que as pessoas divirjam, que tenham pontos de vista diferentes dos meus,  daí que o mais relevante mesmo é a constatação de que me faz bem escrever e que, decerto, me sentiria feliz e honrado se pudesse, com os meus escritos ( desculpem a pretensão descabida), fazer bem às pessoas, o que seria uma recompensa sem igual para quem, como eu, não almeja ser mais do que efetivamente sou.

Um brado contra a discriminação e a intolerância

Preliminarmente, consigno que não faço apologia ao descuido com a saúde. Muito pelo contrário, procuro levar uma vida saudável, fazendo exercício com regular frequência e me alimentando com moderação. Portanto, essa crônica não é uma manifestação a favor da vida descuidada; faço-a apenas como um brado contra toda forma de discriminação.

A inspiração me veio de uma briga de condomínio, no Rio de Janeiro, que foi parar na justiça, porque uma juíza federal chamou o porteiro do seu prédio de “Bolo de Banha”, em face da barriga exuberante que ostenta, como uma vingança por tê-lo flagrado dormindo no trabalho. O episódio extrapolou os limites do condomínio e foi parar na 1ª vara civil da comarca de Rio de Janeiro, onde foi distribuído um pedido de indenização por danos morais.

Sabe-se que o ser humano parece (?) ter um prazer pra lá de doentio de discriminar o outro. Às vezes, por pura gozação, sem maiores consequências; outras tantas, para sacanear mesmo, para ferir, magoar, espezinhar. Discrimina-se por tudo. Discrimina-se em face da roupa, da cor, da altura, da voz, da opção sexual, da posição social, das orelhas, do corte de cabelo, da roupa, da estatura, de uma deficiência. Discrimina-se, enfim, pelos mais diferentes motivos e pelas mais variadas e injustificáveis motivações.

Nos dias presentes, um dos mais discriminados, maior alvo de gozação é, sem dúvidas, o(a) gordo(a). Nesse quesito, ninguém supera o(a) gordo(a), sendo que, quando se trata de gorda, sexo feminino, portanto, a discriminação chega a níveis de intolerância.

Nessa questão, o sexo feminino tem sido o objeto preferencial da discriminação, e por isso muitas mulheres almejam ser magras, a qualquer custo, conquanto isso não  seja privilégio de muitas, pelas mais diversas razões, que vão da genética à falta de condições materiais.

A verdade é que, como afirmei acima, vivemos a ditadura da magreza. Nesse sentido, não escapa ninguém – tanto faz ser homem, quanto mulher. Tem que ser magro (a). Ser gordo (a) parece ser um pecado.

Nesse ambiente, discrimina-se o(a) gordo(a), sem pena e sem dó. Nas academias, então, ambiente que frequento e que conheço bem, o(a) gordo(a) é sempre visto como ele(a) é, ou seja, como gordo(a). Ele(a) parece não ter identidade. É gordo(a) e ponto. É, simplesmente, ponto de referência. Nada mais do que isso, descontados, claro, os exageros da afirmação.

As pessoas não consideram outras possibilidades, outras razões pelas quais umas engordam e outras não. Tudo passa por uma tendenciosa e precipitada constatação: o(a) gordo(a) é gordo(a) porque quer, por desleixo, como se não fosse o desejo de muitos ter um corpo sarado,  saudável e escultural.

 Eu, pelos mais diversos motivos, sempre tive um marcante sobrepeso que me colocou no rol dos gordos, embora não me sinta discriminado,  quiçá porque não tenho uma gordura muito perceptível.  Na minha família, por exemplo, em face da protuberância abdominal que ostento, poucos me chamam pelo nome. Chamam-me, mesmo os meus filhos, carinhosamente, de “Gordo”, como se fora pré-nome. Mas isso nunca me incomodou. E não incomodou porque, de rigor, não me acho gordo, nem discriminado.

O (a) gordo(a), entretanto, nem sempre foi discriminado(a); pelo menos nos níveis que constatamos nos dias atuais. Vivi uma época na qual magreza era, ao contrário dos dias atuais, sinônimo de doença, de desnutrição, de necessidade. Os pais, no passado, faziam tudo para ver seus filhos roliços. E nessa faina, muitos ganhavam quilinhos extras para sempre. Mas as pessoas conviviam bem – se é que é possível – com a gordura. Recordo de pelo menos três colegas de infância que, por serem magros, tinham os sugestivos apelidos de “Filé de Borboleta”, “Come Papel” e “Sopa de Osso”.

Mas, deixando de lado os magros e musculosos, o que quero mesmo é refletir sobre a gordura, que é tema candente nos dias atuais. A verdade, portanto, é que, em se tratando de gordura e magreza, hoje em dia os papéis se inverteram. Está, com efeito,  decretado: é proibido ser gordo(a).

Devo dizer, no entanto, que é preciso pôr um fim a essa infernal patrulha, deixando que cada pessoa viva como é possível viver. Vamos deixar o(a) gordo(a) em paz. Que cada um cuide si. Não faz sentido discriminar por isso. Aliás, não faz sentido nenhuma forma de discriminação.

Cuide da sua beleza, cuide do seu corpo, controle a sua gula, feche a sua boca, exiba seus músculos, seu bumbum durinho, esnobe com a sua panturrilha, promova os seus bíceps e tríceps, mas deixe que o próximo viva como bem entender, como é possível viver em face de sua realidade.

Pare de ser fiscal da barriga dos outros. Cuide da sua vida. Cada um deve viver como lhe aprouver. Da minha gordura e da minha saúde cuido eu. Do seu corpo e da sua magreza, cuide você.

É preciso que sejamos mais tolerantes com as pessoas. Vamos parar de discriminar, afinal, chamar alguém de “Bolo de Carne”, “Filé de Borboleta”, “Come Papel” e  “Sopa de Osso”, em face da magreza ou da gordura, é tão discriminatório e condenável quanto chamar o próximo de “Maneta”, “Perneta”, “Cegueta” ou “Ceguinho”, em face de uma deficiência física ou visual.

Voando nas asas de uma quimera?

Tenho medo de que a minha visão de mundo possa não ser compreendida pelos meus filhos. Afinal, eles ainda têm tudo por construir, e o mundo em que vivemos deixa transparecer a prevalência das condutas heterodoxas, a privilegiar os caminhos nem sempre condizentes com a minha visão de mundo, como o fizeram, por exemplo, os moradores de Tubiacanga, na famosa crônica A Nova Califórnia, de Tobias Barreto, os quais, ao descobrirem que a violação das sepulturas rendia aos profanadores alguns gramas de ouro, aderiram à profanação que antes condenavam.

Meus filhos têm testemunhado, com algum desalento, a vitória dos que fazem apologia de ações pouco recomendáveis, como o fizeram os outrora éticos e críticos moradores de Tubiacanga, que só tiveram escrúpulos enquanto não viram os proveitos auferidos pelo protagonista Raimundo Flamel.

Os jovens, meu filhos entre eles, podem, sim não compreender que seja possível viver sem usar dos expedientes que todos nós condenamos, já que, na opinião de muitas pessoas, o que importa mesmo é ajuntar bens materiais, sem espaço para os escrúpulos, porque se esquecem de que, pelo menos na minha e na visão de muitos que pensam como eu, o que importa mesmo nessa vida é não desperdiçar afetos (Machado de Assis, Helena).

A propósito, dia desses, conversando em família, disse aos meus filhos que me preocupava muito em ser apontado por eles, um dia, como responsável por eventual insucesso em sua vida profissional, em face das minhas posições, radicais para alguns. Nessa conversa franca, olho no olho, eles concluíram que não viam nada de errado na minha maneira de ser, nas posições por mim assumidas como pai e como profissional. Mas, ainda assim, tenho medo de uma reação, de ser incompreendido. Tenho receio de que eles um dia, revoltados com tanta licenciosidade, com tantas notícias que degradam os nossos homens públicos e que alimentam a desesperança do povo, terminem por concluir que não vale a pena tanto rigor, que é preciso mais flexibilidade para enfrentar o mundo.

Recordo-me de certo dia em que meu filho, ainda bem pequeno, brincava com os primos e outros amigos. Determinada hora, como não obedeciam a ninguém, resolvi impor minha autoridade de pai. Chamei-o e determinei que sentasse ao meu lado. Ele me olhou, e com os olhinhos bem tristes, perguntou-me se estava de castigo de novo. Eu respondi que sim, ao que ele redarguiu: “Pai, e os outros? Por que só eu fico de castigo?”

Aquela pergunta foi como uma facada no meu peito. Decidi, então, precipitadamente, liberá-lo. E disse aos presentes, repercutindo a inquietação do meu filho, que não pretendia mais mantê-lo de castigo, pois não achava justo que as regras de boa conduta só valessem para ele.

Por essas e por outras é que temo que, como na obra ficcional de Amos Oz, Uma certa paz, meus filhos terminem por concluir um dia que é chegada a hora de dar um basta às concessões, de deixarem as minhas orientações,  de seguiram o curso “natural” da vida, de competirem com as mesmas  armas, por entenderem que, pelas vias que elegi, as conquistas são muitos mais difíceis.

Convém trazer à colação, para ilustrar, excertos do desabafo do personagem Ionatan Lifschitz, da obra ficcional antes mencionada –  obra já referida por mim, nesse mesmo espaço, em outro artigo -,  o qual, determinado dia, cansado do mundo em que vivia, sedento de viver uma vida diferente da que lhe tinha sido imposta, resolveu partir para o tudo ou nada, expondo as suas inquietações mais ou menos nos seguintes termos:  “O tempo todo, em toda a minha vida, eu abro mão e abro mão e já quando eu era pequeno me ensinaram que a primeira coisa é abrir mão, e na turma abrir mão, e nas brincadeiras abrir mão, e ter consideração, e dar um passo ao encontro de, e no Exército e no trabalho e na minha casa e no campo de esportes ser sempre generoso e não criar caso e não perturbar e não insistir mas sim prestar atenção, levar em consideração, dar ao próximo, dar ao coletivo, dar ajuda, se atrelar ao objetivo sem ser mesquinho, sem contabilizar e o que resultou de tudo isso resultou que dizem de mim Ionatan é bem legal, um rapaz sério com quem se pode falar, pode procurá-lo, você vai procurá-lo você vai se arranjar com ele,  ele sabe das coisas, um rapaz dedicado um homem simpático. Mas agora chega. Basta. Acabaram-se as concessões. A partir de agora começo uma nova história.”

Definitivamente, tenho receio de que meus filhos concluam, com algum grau de realismo, que em face das minhas ideias e obstinações,  eu viva, sem me dar conta,  voando sob as asas de uma quimera, o que, decerto, seria, para mim, um desalento.

É isso.

A cultura da impunidade

Todos que cometem crimes devem – ou deveriam – receber o mesmo tratamento das instâncias de controle social. É assim que penso, é nesse sentido que tenho agido. Por isso me causa certo desalento, por exemplo, colocar  em liberdade um meliante perigoso por excesso de prazo ou quando tenho, pelo mesmo decurso do tempo, que reconhecer uma prescrição e extinguir a punibilidade de um criminoso, sejam quais forem os crimes a ele imputados, por entender que é dever do Estado julgar a tempo e hora os que transgridem a ordem pública.

É mais comum do que as pessoas possam estar informadas a extinção da punibilidade e o relaxamento da prisão de meliantes por inação, descaso, incúria dos responsáveis pelas instâncias formais de controle social, o que é de se lamentar.

Nesse cenário, confesso, com ênfase, o meu especial desalento, a minha quase revolta quando me deparo, por exemplo, com a falta de zelo e de rigor dos agentes do Estado, diante, por exemplo, de crimes que condizem com o desvio de verbas públicas ou praticados com violência, pondo em relevo, neste artigo, os primeiros, em face dos efeitos danosos para o conjunto da sociedade.

Na condição de magistrado, tenho me defrontado com vários processos que traduzem bem a conduta imoral e irresponsável de gestores do dinheiro público, e, no mesmo passo, com a inércia, com o descaso e a falta de zelo dos responsáveis pelas agências de controle, que deixam, injustificadamente, que as ações se prolonguem no tempo, com indiscutíveis prejuízos à persecução criminal. Por isso a tenaz fiscalização do CNJ em torno desses processos.

Em casos desse jaez, o dado que me chama mais a atenção, portanto, é a morosidade da justiça – injustificável, desde a minha compreensão -, disso resultando a impunidade dos gestores, em face das consequências que dimanam do tempo transcorrido, por mais nociva que tenha sido a sua ação na administração da coisa pública. Logo, diante dessa sedimentada cultura de impunidade, eles se sentem estimulados a continuar transgredindo, cientes de que só por acidente serão responsabilizados criminalmente.

Decerto que as instâncias persecutórias não podem fazer corpo mole, sobretudo, diante de crimes dessa coloração, em face, repito, dos efeitos devastadores desse tipo de ação para o conjunto da sociedade. Por isso, nos julgamentos dos quais faço parte, tenho reiterado que, se é verdade que um assaltante merece ser tratado com todo o rigor – e merece mesmo, pois é, para mim, acima de tudo um covarde -, merece maior rigor, ainda, o gestor que desvia verbas públicas, pois as consequências da sua ação são mais danosas que as de um assalto à mão armada, por mais que o assalto nos cause indignação.

Diante desse cenário, causa-me indignação ter que reconhecer a prescrição e extinguir, na mesma balada, a punibilidade de um criminoso que tenha, no exercício de uma outorga, enriquecido à custa da desgraça e do abandono dos que lhes confiaram um mandato.

Por isso, tenho reafirmado ser necessário que todos – Ministério Público, Polícia, Poder Judiciário, dentre outros -, diante de casos dessa envergadura, nos empenhemos ao máximo para julgar a tempo e hora processos que cuidem dessas questões, envidando esforços para que não fiquem impunes, pelo decurso do tempo, os que fazem mau uso do dinheiro público.

A verdade é que, na quase totalidade das vezes, por omissão das instâncias persecutórias, os crimes praticados em detrimento do Erário ficam impunes, estimulando, nesse passo, a sua prática.

Em face da má gestão, do desvio de verbas públicas, do enriquecimento ilícito no exercício do poder, posso constatar, triste e quase revoltado, que a cultura da impunidade irradia os seus efeitos para outras instâncias, com as mesmas consequências práticas. E assim, muitos que ascendem ao poder, acreditam por ciência própria ou por ouvir dizer, que enriquecendo no exercício desse mesmo poder, pelos mais diversos meios, têm assegurada a garantia da impunidade, ou seja, que nada lhes ocorrerá, pois, conforme pensam, cadeia mesmo é só para os miseráveis.

Portanto, se é verdade que as franquias constitucionais permitem, muitas vezes, que os processos se encaminhem para a prescrição – e para consequente impunidade -, não é menos verdade que, pelo que tenho testemunhado nessas décadas de exercício judicante, com um pouco mais de boa vontade é possível fazer muito mais do que fazemos.

Proponho, pois, que façamos uma corrente positiva para reverter esse quadro desalentador. Vamos envidar esforços no sentido de fazer com que os processos que cuidam de questões desse matiz sejam julgados com brevidade,  para absolver ou para condenar; mas que cheguem ao fim, que não seja pela prescrição, pois  depõe contra as instituições de controle o favorecimento dos acusados em face do transcurso do tempo.

Ladrões de sonhos

Decerto que muitas das minhas reflexões não são aceitáveis, sobretudo para aqueles que se contrapõem às minhas ideias, Sei, portanto, que o que escrevo não é bem recebido por muitos. Todavia, isso não me preocupa, pois, como dizia Sócrates, uma vida sem exame, ou seja, sem reflexão, sem indagações, sem que se busquem novos ideais, novos caminhos, nova direção, não merece ser vivida.

Bem sei que, por comodidade e para viver em paz com todos, o ideal mesmo seria guardar as nossas inquietações no recôndito da alma, sem falar, sem dizer o que pensamos – calar, enfim; deixar as coisas fluírem. Contudo, não sei ser assim,. Por isso, vou continuar dizendo o que penso, com a necessária responsabilidade, para não ferir suscetibilidades e nem macular a honra de ninguém.

Padre Antonio Vieira dizia que melhor que luzir todo tempo, é luzir somente a tempo, pois que, assim agindo, se enganam os olhos da inveja, se concilia nos ânimos a estima. Deixar de luzir, na minha interpretação, é deixar a ribalta para não mais lembrado, para espantar a inveja do semelhante. Essa questão, inobstante, passa ao largo das minhas preocupações.

Sei que não sou digno da inveja de ninguém, pois custo muito a acreditar que alguém quisesse ser o que sou: um tipo enfadonho, incapaz de despertar qualquer sentimento que não seja da mais absoluta indiferença.

A minha hora de ser esquecido virá inevitavelmente. Enquanto esse dia não vem, não deixo a ribalta, e vou continuar expondo os meus pensamentos, consignando, em artigos, as minhas inquietações, as minhas reflexões, ainda que, assim o fazendo, corra o risco de ser mal interpretado, repetindo a sábia constatação de Amir Klink, segundo o qual na vida o maior fracasso é não partir.

Como todo jovem, eu também fui um sonhador quase incorrigível. Vivi, como muitos da minha geração, do porvir, pois que, afinal, como diz, com sabedoria, o protagonista de o Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, “é uma estupidez não ter esperança”. E foi esperando e crendo, que sonhei com um mundo melhor, retratado numa sociedade mais fraterna, menos egoísta, com mais solidariedade. Mas errei! E assim como eu, muitos erraram. É que o mundo está ficando cada dia mais difícil, mais desalentador, pelo fato de imperar nele i o oportunismo, a esperteza e o impulso descontrolado dos que almejam mais e mais, os quais, nessa volúpia, vão atropelando as pessoas, levando a vida da maneira que melhor lhes convier, na defesa dos seus interesses.

Flertei com o comunismo, vesti camiseta com a estampa de Che Guevara, apostei em Fidel Castro, pensei em morar em Cuba, sonhei com um mundo justo que, cheguei a supor, se consolidaria na ilha dos irmãos Castro. E assim, criei um mundo de sonho e de fantasia, para, depois, como todos nós testemunhamos, vê-lo ruir.

A verdade é que eles – como tantos outros que estão ou passaram pelo poder – roubaram os meus, os nossos sonhos, e ainda persistem nessa sanha, mesmo nos dias atuais, embora sob outra roupagem, agora sob os dogmas do liberalismo, mas com a mesma volúpia. E assim, vão pelos mesmos caminhos, com armas diferentes, mas da mesma forma, roubando o sonho de todos nós, deixando-nos sem a perspectiva de vislumbrar o futuro.

Hoje, já cansado de sonhar, maltratado pelo tempo que a tudo destrói, estou desencantado com quase tudo, quase perdendo a esperança. Talvez por isso, eu não suporte mais ouvir promessas oportunistas, vindo a sentir até uma certa revolta com as que são feitas a cada eleição; promessas gestadas, pensadas, com inteligência e perspicácia, para enganar, iludir, ludibriar.

Ninguém suporta mais tantas mentiras, tanta enganação. Estamos desiludidos, definitivamente, em face dessa insistência em roubar os nossos sonhos, sem nos deixar enxergar o futuro. Além disso, tudo o que fazem é em beneficio pessoal, já que eles enganam, se irmanam, se unem – e aprontam, em detrimento do coletivo, enriquecendo no poder, sem controle, sem peais, sem escrúpulos, descaradamente, pouco importando as consequências que decorram do dinheiro que subtraem, apostando na impunidade, na leniência das instâncias penais.

Com as suas ações daninhas e com o dinheiro público que subtraem, eles deixam sem perspectiva a nossa juventude, da qual surrupiam o ensino que sonhamos um dia pudesse  ser de qualidade.

Em face da voracidade com que se lançam sobre as verbas públicas, negam ao cidadão saúde, moradia, estradas de qualidades, segurança e, sobretudo, respeito, destinando ao órfãos do Estado apenas as migalhas, que têm servido, a cada eleição, para vilipendiar a consciência dos incautos, dos mais necessitados.

Já não é possível conviver com tanta desfaçatez, tanta volúpia por cargos, não para servir, mas para deles apenas se servirem. Falta aos nossos representantes, como regra, o necessário espírito público. Alheios a essa necessidade, eles deixam transparecer que só pensam em seu próprio bem estar. Afinal de contas, as disputas pelo poder não são – e nunca foram, ao que parece – para servir.

Para ilustrar, trago à colação, porque no sentido das reflexões aqui expostas, a conclusão  de Luiz Fernando Vianna, colunista da Folha de S. Paulo, no artigo intitulado O que resta, edição do dia 08 do corrente, verbis: “O vazio da política – entendida como disputa de ideais e projetos – é o terreno onde vicejam os partidos de aluguel, os chantagistas, os surrupiadores, os fascistas”.

É isso.

O fascínio da leitura

Não existe nenhum escritor pelo qual eu tenha me apaixonado como leitor. Não tenho, portanto, nenhuma preferência que me leve cegamente a ler essa ou aquela obra. Eu simplesmente leio de tudo um pouco. Ocorre às vezes de um autor que me tenha impressionado em um romance não ser capaz de prender a minha atenção em outros, acontecendo o mesmo em sentido oposto. Mas isso não significa nenhuma contradição ou falta de convicção, pois, gostar ou não gostar é uma decorrência natural da nossa liberdade de discernimento e de escolha.

Não é, pois, definitivamente, o autor que me seduz. O que me seduz e fascina numa obra literária é a construção do personagem, a fluidez narrativa e a armação da trama, que seja capaz de envolver, de nos fazer esquecer os problemas da vida, para viver os do personagem.

Essas reflexões decorreram da opinião de Michel Houellebecq, segundo o qual amamos um livro porque amamos o seu autor. Penso que o autor, pessoa física, é o que menos importa. Livros a gente os lê e desenvolve o prazer da leitura à proporção que nos identificamos com algum personagem ou com a essência da trama, além, claro, da fluidez da narrativa, pouco importando quem seja efetivamente o seu autor, isto é, independentemente do amor ou do ódio que tenhamos pelo autor da obra.

Com Germinal, por exemplo, uma das passagens mais férteis e reflexivas da obra condiz com as descrição do espírito de companheirismo e de solidariedade dos trabalhadores espoliados nas minas de carvão, sendo de relevo destacar o momento da narrativa que nos dá conta da união deles para tentar salvar a vida dos companheiros soterrados, apesar de todas as intempéries, da fome que sentiam, do cansaço que os fazia delirar e da exploração que os tinha vitimado durante tantos anos. Esse é, sim, para mim, o momento mais sublime, mais marcante da obra de Zola, que, sei, teve outra conotação como essência. Para amar essa obra prima, pouco importa saber quais as posições políticas do seu autor, por exemplo, nem se ele merece ou não ser amado por quem vier a ler a sua obra.

A seguir, à guisa de ilustração, excertos da monumental obra, na parte que importa  para reflexão.“… Mas o salvamento dos mineiros soterrados apaixonava ainda mais. Négrel estava encarregado de tentar um supremo esforço, e braços era o que não faltava, todos os mineiros vinham oferecer-se, num impulso de fraternidade. Esqueciam a greve, não se preocupavam com o pagamento, podiam não lhes dar nada, só queriam enfrentar o perigo e tentar salvar os companheiros que estavam morrendo…”“… Muitos, doentes de horror após o acidente, agitados por espasmos nervosos, inundados de suores frios, perseguidos por pesadelos, levantavam-se apesar de tudo, mostravam-se os mais decididos a baterem-se contra a terra, como se tivessem uma desforra a tirar…”. (Emile Zola, Germinal)

Do romance Uma Certa Paz, de Amós Os, ficou em mim, para reflexão, a busca quase esquizofrênica de solidão, de isolamento e de rompimento com o status quo do personagem Ionatan,  numa identificação quase umbilical, como se compartilhássemos as mesmas idiossincrasias, os mesmos problemas,  em face de me sentir instado a, depois de ter chegado ao ápice da minha carreira e de não ter nenhuma vaidade com a minha biografia, a mudar de direção, inclusive com uma aposentadoria precoce.

A seguir, fragmentos do romance, a propósito:“…Era preciso chegar a um ambiente diferente em tudo, talvez a uma cidade grande de verdade, que lhe fosse estranha, que tivesse um rio com pontes, que tivesse torres, túneis, chafarizes esculpidos como monstros de pedras a esguichar, uns sobre os outros, jatos d’água, e essa água todas as noites iluminada das profundezas por luzes elétricas, e às vezes lá estaria uma mulher desconhecida e sozinha, o rosto voltado pata a luz da água, de costas… O tempo todo, em toda a minha vida, eu abro mão e abro mão e já quando eu era pequeno me ensinaram que a primeira coisa é abrir mão, e na turma abrir mão, e nas brincadeiras abrir mão,  e ter consideração, e dar um passo ao encontro de, e no Exercito e no trabalho e na minha casa e no campo de esportes ser sempre generoso, ser legal e generoso e não criar caso e não perturbar e não insistir mas sim prestar atenção, levar em consideração dar ao próximo dar ao coletivo dar ajuda se atrelar ao objetivo sem ser mesquinho sem contabilizar e o que me resultou de tudo isso resultou que dizem de mim Ionatan é bem legal um rapaz sério com quem se pode falar pode procurá-lo você vai se arranjar como ele ele sabe das coisas um rapaz dedicado um homem simpático mas agora chega. Basta. Acabaram-se as concessões. A partir de agora começa uma nova história… ( Um Certa Paz, Amós Oz)

Basta refletir sobre as duas situações destacadas nos dois romances para que se avalie como o ser humano, o mesmo homem, o mesmo filho de Deus, diante de circunstâncias similares, pode adotar posições diametralmente opostas, a desnudar as nossas contradições. Enquanto os personagens de Germinal entregam a vida para salvar os amigos soterrados, pouco se importando com os seus problemas pessoais,  o solitário e sombrio Ionatan de Uma Certa Paz chega a um momento da vida em que simplesmente dá um basta à zona de conforto e às regras de convivência que até então lhes tinham sido impostas, repudiando tudo que lhe foi ministrado, inclusive o sentimento de solidariedade.

O leitor pode, sim, diante das duas obras, escritas em épocas em tudo diferentes, com personalidades centrais de perfis tão díspares, se identificar com uma ou com outra, mas, ainda que não o faça, certamente poderá fazer boas ponderações sobre aquele que, dentre todos os animais da terra, é o mais complexo e surpreendente, o homem. Daí o fascínio da literatura.

Todavia, para o bem e para o mal, difícil é não se sentir um pouco personagem de cada um desses romances, sempre à luz das suas perspectivas de vida. Eu, curiosamente, para reafirmar as minhas conhecidas imperfeições, tanto me identifico com o sentimento solidário dos personagens de Zola, quanto com inquietação do personagem de Amós Oz, pois, em determinados momentos, penso, sim, em romper com o status quo, e iniciar uma nova jornada, mas sou contido pela sensatez e pela condição de sexagenário, que já não me permite iniciar uma aventura, ao mesmo tempo em que deixo fluir o sentimento de solidariedade que viceja em mim, sem que vislumbre nisso nenhuma contradição inconciliável.

Como se vê, a literatura que diverte é a mesma que faz refletir sobre a vida.  Por isso, e muito mais, é que ela é fascinante. Contudo, reafirmo, tem que ser literatura reflexiva, não a mecânica, automática, sem alma, oportunista, escapista, que visa ao lucro, que exista apenas em face de uma volúpia arrecadadora, dramas construídos em laboratórios e não urdidos na mente reflexiva e criadora do homem.

Eu, cá do meu lado, com as minhas “otarices”

Em face de tudo o que tem sido noticiado sobre o aparelhamento do estado e desvio de verbas públicas, essa crônica é mais que oportuna. Não pretendo com ela, no entanto, nada mais que refletir, à minha maneira, sem a pretensão descabida de assumir o papel de paladino da moralidade, o que não sou, tendo em vista que, como qualquer homem público, devo me equivocar, de vez em quando, nas minhas escolhas morais.

Dito isto, menciono, agora, para ilustrar essas reflexões, dois exemplos – um da vida real e outro, da ficção – que bem demonstram a visão de mundo das pessoas, a partir dos valores morais de cada um.

Primeiro, da vida real. Escutava eu um programa policial, quando o repórter indagou ao meliante se ele não tinha escrúpulos em roubar uma aposentada, que já percebia tão pouco, que já dera a sua contribuição à sociedade, e que, por viver de uma pequena aposentadoria, decerto sobrevivia com muita dificuldade. O meliante, vaidoso, respondeu indagando ao repórter, mais ou menos nesses termos: “E você pensa que a minha vida é moleza. Assaltar não é fácil, meu amigo. Se a vida da vítima é difícil, as minhas dificuldades não são menores”.

Agora, o exemplo da ficção, por mim já referida em outra oportunidade. O meliante Lambreta, na crônica de Rubem Fonseca, intitulada Feliz Ano Novo, era, como o meliante antes referido, além de arrogante, um cara vaidoso; e sua vaidade decorria das suas ações criminosas, tanto que um dos seus pares, em determinado passagem da extraordinária crônica, lhe faz a seguinte menção: “O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano. Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha. É vaidoso, mas merece. Já trabalhou em S. Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, para não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos”.

Aqui mesmo neste mesmo espaço, já refleti em outras ocasiões sobre a vaidade malfazeja, aquela que é capaz de cegar, de só permitir que o homem veja a sua própria imagem refletida, o que o faz pensar que o seu umbigo é o centro do universo, como é o caso dos personagens mencionados à guisa de exemplo.

Aqui pretendo refletir, mais uma vez, com mais ênfase, sobre a vaidade, nas suas duas vertentes, a forma como se apresenta aos meus olhos: a benfazeja, ou seja, aquela que, de rigor, todos temos, e que é até certo ponto necessária, já que todas as pessoas gostam de ser reconhecidas, elogiadas, respeitadas; e a dita malfazeja, aquela que leva os homens a fazerem loucuras, a perderem a noção do ridículo, a se comportarem como se as relações pessoais exigissem uma grife para fazer sentido, que têm sede de poder e de dinheiro, pouco se importando com a sujeira que deixam pelo caminho e os reflexos de suas condutas junto às próprias famílias, como temos visto no caso do “petrolão” e, antes, do “mensalão”.

Enquanto a vaidade benfazeja nos impõe a obrigação de fazer sempre o melhor, para corresponder às expectativas do semelhante e às nossas próprias expectativas, a malfazeja, de seu lado, é cruel, daninha, esquizofrênica, perversa, corrosiva, destruidora, danosa, esnobe, ridícula, digna de reproche, podendo, em face de todos esses predicados, levar à perda do sentido do que seja imoral ou inescrupuloso.

A reafirmar as nossas eternas contradições, a exigir de todos uma intensa reflexão, todos nós testemunhamos, nos dias presentes, com a dimensão que o mais pessimista não seria capaz de imaginar, a sedimentação, a carnavalização, a proliferação, em escala industrial, do malfeito, como se fosse uma regra.

O grave é que, para o meu, para o nosso desalento, há os que se orgulham, que se ufanam, sem disfarce, do mal que fazem às pessoas, quando, por exemplo, subtraem o dinheiro público. Esses, apesar do mal que fazem a todos nós, por vaidade (malfazeja, como mencionei acima), pelo apego danoso ao dinheiro, ainda se sentem no direito de esnobar, de promover festas grandiosas à custa do meu, do nosso dinheiro, como se fosse algo absolutamente natural.

Mas como cada um é cada um, cada um se orgulha ou se envaidece de acordo com os seus valores morais. Uns preferem se manter nos estreitos limites da ética, da honradez e da decência; outros, sem escrúpulos, se vendem por pouco, fazem qualquer negócio, se orgulham de, num mundo de otários, se destacarem por não sê-lo.

Eu, cá com os meus botões, vou levando a vida com as minhas “otarices”, na certeza de ter optado, diante de um leque de escolhas morais, pelas mais condizentes com a minha condição de cidadão, magistrado e pai de família, conquanto admita, com humildade, que possa, sim, em algum momento da minha vida e com considerável grau de certeza, não ter feito a melhor escolha.

Decisões judiciais desmotivadas

Guilherme de Souza Nucci, numa das aulas recentemente ministradas no curso de pós-graduação, fez duras críticas aos juízes do seu Estado, os quais, segundo ele, não fundamentam as decisões que convertem em preventivas as prisões em flagrante, bem assim a dosimetria das penas,  limitando-se a repetir as palavras da lei    (garantia da ordem pública, para justificar um decreto de prisão preventiva, ou consciência da ilicitude, como circunstância judicial, para justificar a majoração da pena-base), submetendo, dessa forma, os juízes do segundo grau a uma situação desconfortável, em virtude de lhes caber o ônus de colocar em liberdade perigosos meliantes ou reduzir as penas fixadas no édito condenatório.

Na mesma aula, o eminente doutrinador aduziu, ademais, que são muitos os magistrados de primeiro grau que, instados a prestarem informações, em face de habeas corpus, limitam-se, na mesma balada, com a mesma falta de zelo, a fazer um  brevíssimo relatório do processo, quando, na sua compreensão, deveriam justificar as razões pelas quais decidiram pela manutenção da prisão.

Devo dizer, a propósito,  que essa é uma situação que nos iguala a todos. Aliás, basta atentar para as decisões dos Tribunais de Justiça do Brasil inteiro para se concluir que, infelizmente, são muitos os magistrados de primeiro grau que, nas decisões criminais, não se esmeram na fundamentação de suas decisões, não só nos decretos de prisão  preventiva, como também, sobretudo e rotineiramente, quando da dosimetria das penas, resultando disso que, muitas vezes, réus perigosos são beneficiados com a redução da pena ou com o relaxamento de sua prisão, em detrimento, claro, dos legítimos interesses da sociedade, que já não suporta tanta violência, estimulada, disso tenho convicção, pela sensação de impunidade.

Essa pouca importância que têm sido dada ao comando constitucional – que impõe a todos os magistrados o dever de fundamentar as nossas decisões – nos coloca a todos, enquanto representantes das agências formais de controle, em situação de desconforto perante a comunidade, nos agastando sobremaneira em face dessa grave omissão, incompatível com o Estado Democrático de Direito, cujas consequências são desastrosas para o conjunto da sociedade, máxime porque, de regra, os recursos que aportam no segundo grau são da defesa, inviabilizando, assim, qualquer decisão que não seja em seu próprio benefício.

Registro que o professor Guilherme de Souza Nucci não pediu segredo ao fazer a grave acusação contra os seus pares, já que o fez publicamente, no último Seminário do IBCCRIM, do qual tive a oportunidade de participar, em São Paulo; críticas acerbas e em razão das quais não vi nenhuma manifestação contrária. Aliás, quem pretender confirmar a veracidade do que disse o professor Guilherme de Souza Nucci, basta pesquisar nos acórdãos dos Tribunais do Brasil, para constatar as incontáveis vezes em que fazemos menção às decisões desmotivadas, em razão das quais, especificamente no que condiz com à dosimetria da penas e aos decretos de prisão preventiva,  somos obrigados a relaxar prisões ou compelidos a reduzir penas, impossibilitados, noutro giro, de avaliar a racionalidade da decisão judicial submetida a reexame (Aury Lopes Júnior).

A propósito dessa situação que nos iguala a todos, lembro-me de uma reflexão interessante do antropólogo Roberto da Mata, autor de Carnavais, Malandros e Heróis, segundo o qual o trânsito mostra de forma inequívoca como o brasileiro tem horror a situações nas quais é colocado em igualdade de condições com outros. Contudo, segundo o antropólogo, ainda que uns dirijam limusines, e outros, carrinhos populares, ou uns tenham dinheiro para “molhar a mão” do guarda e outros não, o sinal é vermelho para todos.

Se for verdade, como diz o antropólogo, que temos pavor de ser colocados em condições de igualdade com os outros, seria de bom tom que nos esmerássemos mais em nossas decisões, sobretudo em matéria penal, para não proporcionar a redução injusta de pena e nem facilitar a concessão de liberdade para quem não merece, pois, diante do quadro de violência que a todos nós aflige, estamos em igual situação, queiramos ou não.  E aí, não adianta lamentar, porque, ante a violência, assim como no sinal de trânsito, somos todos iguais.