O juiz garantidor – II

Desde que assumi a segunda instância tenho me deparado, com muita frequência, com  desrespeitos  a  comezinhos direitos dos acusados, em algumas decisões de primeira instância, sobretudo no que concerne às prisões provisórias ( sem fundamentação) e à aplicação da pena ( via conceitos vagos e, não raro, com dupla valoração de determinadas  modeladoras judiciais)

Claro que eu posso, sim, com muita probabilidade, ao tempo em que militava na primeira instância, sem muito tempo para refletir, sem condições de estudar a fundo as questões  submetidas à minha intelecção, ter agido da mesma forma, mesmo porque não antevejo nas decisões a que me reporta nenhum sentimento menor a  mover a ação do magistrado.

A  minha situação hoje, com uma demanda mais contida, com um bom quadro de assessores, me permite analisar as questões com muito mais vagar. E, mais importante ainda:  a “distância” dos acontecimentos  me permite, sim, maior isenção no exames das questões a  mim submetidas; isenção que, muitas vezes, não se  há de negar,  pode, sim, ser prejudicada estando-se envolvido emocionalmente, dada a proximidade física, com a peleja das partes.

É inegável que estar defronte, por exemplo, de uma vítima de um assalto, arrasada psicologicamente pelos acontecimentos,  brutalizada fisicamente por um meliante, de certa forma influencia as nossas posições. E não pode ser diferente, afinal, não somos uma máquina produtora de decisões.

Ainda assim, tudo fiz no sentido de não arrostar os direitos dos acusados. Nunca agi arbitrariamente. Nunca decidi sem fundamentar as minhas decisões; decisões,aliás, muito criticadas em face  da minha proverbial incapacidade de ser prolixo.

Hoje, distante das partes, conquanto compreenda  servir o processo  para emoldurar provas acerca de determinado fato,  não deixo de lembrar, com muito mais desvelo, que o  seu caráter instrumental é, sobretudo, o de garantir o  respeito aos direitos e garantias individuais assegurados na Constituição e nos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte.

Para mim, com a visão que tenho nos dias presentes, muito mais sedimentada, muito mais acurada, muito mais humanista,  o processo não pode ser visto  apenas como um instrumento para aplicar o direito penal.

A primeira análise  que faça, pois, em face de uma decisão condenatória de primeira instância, é no sentido de aferir  se todos os direitos constitucionais do acusado foram respeitados, para, só depois, analisar a decisão  de fundo submetida ao duplo grau de jurisdição.

A verdade processual é importante. Mas a sua importância, a partir de uma visão garantista, deve ser medida a partir do respeito às garantias constitucionais dos acusados.

É que a verdade que se busca não pode ser alcançada a qualquer preço. Ela só tem valor, ela só autoriza uma condenação, se forem respeitadas as franquias constitucionais dos acusados.

A verdade alcançada num processo eivado de desrespeito aos direitos da parte mais frágil da relação, de nada vale, pois os limites impostos à busca da verdade, desde a ótica de um juiz garantidor, é a dignidade da pessoa.

O magistrado, diante do binômio defesa social x direito de liberdade,   estará impedido de prosseguir na busca da verdade, se, nessa trilha, constatar qualquer afronta aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Ingo Wolfgang Sarlet, citado por Aury Lopes Juinior, in Direito Processual Penal  e sua Conformidade Constitucional, ensina, a propósito,  que a dignidade da pessoa humana é um ” valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda ordem jurídica (constitucional e infraconstitucional), razão pela qual para muitos justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa”.

E conclui: ” o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por justificar( até mesmo exigir) a imposição de restrições a outros bens constitucionalmente protegidos”

Isso porque, lembra: “existe uma inegável primazia da dignidade da pessoa humana no âmbito da arquitetura constitucional”.

É assim que penso. É nessa senda que tenho decidido em segunda instância, pois, diferente do que se pensa e se propagou, durante muitos anos, não sigo o movimento da lei e ordem (law and order). Antes, o abomino, por entender que prega, como leciona Aury Lopes, a supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo e dos seus direitos fundamentais.


Direito em movimento

Candidato aprovado e classificado dentro das vagas previstas no edital tem direito a nomeação

É ilegal o ato omissivo da Administração que não assegura a nomeação de candidato aprovado e classificado até o limite de vagas previstas no edital. A decisão é da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que negou recurso do estado do Amazonas (AM).

O estado recorreu ao STJ após o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) decidir que, tendo sido os candidatos aprovados dentro do número de vagas, é indiscutível o direito subjetivo às nomeações e posses.

No recurso, o estado do Amazonas sustentou tanto a impossibilidade jurídica do pedido e do Poder Judiciário adentrar no mérito do ato administrativo. Alegou, ainda, a ocorrência da mudança do entendimento jurisprudencial acerca da aprovação em concurso público.

Ao decidir, o relator, ministro Mauro Campbell, destacou que o candidato aprovado dentro do número de vagas tem direito adquirido à nomeação. Segundo ele, a jurisprudência do STJ é no sentido de que, quando a Administração Pública demonstra a necessidade de preenchimento de cargos no número de vagas dispostas no edital de abertura do concurso, a mera expectativa de direito dos candidatos aprovados – antes condicionada à conveniência e à oportunidade da Administração (Súmula 15 do Supremo Tribunal Federal) – dá lugar ao direito líquido e certo à nomeação dos candidatos aprovados e classificados dentro do número de vagas oferecidas.gas previstas no edital tem direito a nomeação

Livro-bomba

O desembargador Carreira Alvim, preso na Operação Hurricane, acusado de vender sentença, e punido pelo Conselho Nacional de Justiça, acaba de escrever um livro no qual, além de bradar inocência, deixa em situação delicada os seus acusadores, inclusive um ministro do STF.

Vamos conferir, em 45 dias, quando a obra será apresentada ao país.

Estou curioso!

Habeas corpus. Denegação.

Publico, a seguir, voto da minha autoria, nos autos do HC nº 007073/2001, o qual foi denegado pela 1ª Câmara Criminal, por unanimidade.

Em determinado fragmento anotei, verbis:

“[…]A preliminar de suposta insuficiência de defesa do embargante, quando submetido a julgamento em plenário, foi expressamente enfrentada na apelação, e encontra-se, precisamente, delineada às fls. 264/265 dos autos, cujos argumentos ali expendidos são suficientes a infirmá-la, sendo despiciendo quaisquer esclarecimentos adicionais.

Quanto à preliminar atinente à alegada inversão da quesitação, e ausência de formulação de quesitos obrigatórios, mais uma vez, o patrono, ao que me leva crer, não cuidou de ler atentamente o acórdão ora embargado, porque tais questões foram devidamente analisadas e rechaçadas no voto, conforme se vê às fls. 267/269.

Por fim, a tese relativa ao afastamento da qualificadora foi sobejamente analisada, enfrentada e expurgada, na trilha argumentativa traçada no voto, especificamente, às fls. 276/279.

O que se vê, portanto, é que os presentes embargos são absolutamente destituídos de fundamento, pois não indicam, em momento algum, qualquer obscuridade ou omissão nos pontos ora atacados, tendo em vista que todas as questões suscitadas no apelo, e aqui inapropriadamente repetidas, foram objeto de atenta análise[…]”

A seguir, o voto, por inteiro.

Continue lendo “Habeas corpus. Denegação.”

Direito concreto. Embargos de declaração

Publico, a seguir, o voto condutor da decisão da 1ª Câmara Criminal, da minha autoria, em embargos de declaração.

Em terminado fragmento anotei, verbis:

“[…]A preliminar de suposta insuficiência de defesa do embargante, quando submetido a julgamento em plenário, foi expressamente enfrentada na apelação, e encontra-se, precisamente, delineada às fls. 264/265 dos autos, cujos argumentos ali expendidos são suficientes a infirmá-la, sendo despiciendo quaisquer esclarecimentos adicionais.

Quanto à preliminar atinente à alegada inversão da quesitação, e ausência de formulação de quesitos obrigatórios, mais uma vez, o patrono, ao que me leva crer, não cuidou de ler atentamente o acórdão ora embargado, porque tais questões foram devidamente analisadas e rechaçadas no voto, conforme se vê às fls. 267/269.

Por fim, a tese relativa ao afastamento da qualificadora foi sobejamente analisada, enfrentada e expurgada, na trilha argumentativa traçada no voto, especificamente, às fls. 276/279.

O que se vê, portanto, é que os presentes embargos são absolutamente destituídos de fundamento, pois não indicam, em momento algum, qualquer obscuridade ou omissão nos pontos ora atacados, tendo em vista que todas as questões suscitadas no apelo, e aqui inapropriadamente repetidas, foram objeto de atenta análise[…]”

A seguir, o voto, por inteiro.

Continue lendo “Direito concreto. Embargos de declaração”

O juiz garantidor

É sempre assim! Noticia-se um malfeito de determinado magistrado, e o mundo desaba sobre a corporação como um todo.  Todos somos, de forma inclemente e leviana, jogados na mesma vala. Impiedosamente nos atacam, espezinham, assacam contra nós toda sorte de aleivosias. Isso é fato! Basta ler os blogs de maior repercussão. Não nos respeitam! Tratam-nos, a todos, indistintitamente, como se fôssemos a própria Geni, como se o Poder Judiciário fosse uma casamata de calhordas.

Em face do que leio, sou tomado pela estranha  sensação de que as pessoas não têm apreço pela  nossa honra. É como se tivéssemos que pagar pela ascenção social, pelo cargo que ocupamos.  É como se o nosso trabalho não tivesse importância; como se fôssemos, enfim,  responsáveis pelas mazelas do mundo.

Mas não é só em razão de eventual deslize ético que o mundo desaba sobre nossa cabeça, muitas vezes a alcançar até mesmo a nossa própria família. É de fácil percepção, com efeito,  que até mesmo em face de uma decisão – daí a gravidade da intolerância -,   sobretudo dos que militam na área criminal –  que é a mais sensível para a população,  agastada com tanta violência -,  há os que, mesmo desinformados, se sentem no direito de aderir à malhação.

Nesse cenário, nesse campo fértil, onde vicejam a incompreensão e a crítica desabrida, é de rigor que se compreenda – ou tente-se compreender, pelo menos – que o magistrado não está obrigado a decidir de acordo com as aspirações dos mais açodados, à luz dos desejos dos que pregam, sem nenhuma sensatez,  a qualquer custo, ainda que em desarmonia com a ordem constitucional,  uma limpeza moral.

Tenho dito que a nós magistrados não nos  é dado o direito de aderir às pretensões dos que  clamam por prisões a qualquer preço,  dos antigarantistas, dos que se sentem à vontade diante de conceitos vagos e oportunistas, para justificar os excessos do Estado diante do cidadão, sobretudo dos egressos das classes menos favorecidas.

O magistrado, quando decide, não custa reiterar o que já é da sabença comum, decide, tão somente, à luz da sua consciência e em face dos dados objetivos albergados nos pleitos formulados;  decide, enfim, em face do contido num processo, desde que, claro, se tenha respeitado, sem tergiversação, todas as franquias constitucionais do acusado, ainda que seja o mais vil dos criminosos.

O juiz, tenho pregado a toda hora,  não pode vestir a indumentária do justiceiro. Ao juiz não é dado o direito  de  desconsiderar os estatutos legais, para ser simpático, para ser aplaudido pelos que não têm apreço pelos direitos do semelhante.

O  juiz  antigarantista faz um tremendo mal à sociedade, pois esse tipo de magistrado se compraz com o elogio fácil e com o afago que recebe dos que, como ele, pensam que tudo se pode, em nome, por exemplo, do combate à criminalidade.

O magistrado, nunca é demais repetir, tem, no processo penal, o papel relevantíssimo de garantidor. E nessa condição, não pode tergirversar, não pode fazer tabula rasa, não pode fingir que não viu, não pode, enfim, quedar-se inerte diante de uma afronta, de um desrespeito ao direito do cidadão, máxime ao direito de ir e vir.

Só o juiz independente, garantista e consciente do seu papel ( de garantidor) merece o respeito do cidadão.

Pouco importa, para o juiz que tenha consciência do seu papel, as increpações assacadas, as críticas feitas com o objetivo claro de intimidar.

Juiz que decide ao sabor das circunstâncias, ávido para ser simpático perante aos olhos dos seus jurisdicionados, constuma tangenciar as suas decisões, flertando, perigosamente, com a arbitrariedade.

O juiz independente, não custa reafirmar, não decide para ser agradável,   porque se  assim o faz,  deixará transparecer que não é digno das talares que tem sobre os ombros.

Da mesma forma, não é independente e nem é digno das talares quem decide para agradar aos Tribunais, objetivando uma futura promoção. Esse tipo de magistrado, chamado “carreirista”, tende a fazer cortesia com o direito alheio.

Uma decisão vale pelo que ela tem de boa e não  em face de ter  sido gestada para  ser simpática e ao  agrado da maioria.

Diante de uma afronta ao direito de um cidadão, seja ele pobre ou rico, negro, moreno ou branco, o juiz não pode ficar inerte, com medo da reação popular. Deve, ao reverso, decidir,  para afastar eventual afronta a uma garantia constitucional, ainda que, em face disso, seja incompreendido.

A atuação de um juiz, todos sabem, não é política, mas constitucional, cuja obrigação primordial é proteger os direitos fundamentais do cidadão, ainda que, repito, contrarie a maioria.

Segundo Amilton Bueno de Carvalho, emérito desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a lei é o limite ao poder desmensurado, é o limite à dominação. Diz mais: a lei, eticamente considerada, é a proteção do débil. E aquele  que é preso, de forma arbitrária,por exemplo, é, no sentido da expressão, o débil, aquele a merecer a  proteção do Estado-juiz.

Digo eu: o débil é  aquele para quem o magistrado deve fazer valer a máxima efetividade das garantias constitucionais albergadas na Carta Politica, ainda que não seja compreendido pelo que pregam o encarceramento a qualquer custo.

Ferrajoli, nessa linha de raciocínio, adverte que ao juiz cumpre buscar a máxima eficácia da “ley del más débil”, com isso dizendo que, diante do Estado, o acusado, depois do crime, é o mais frágil, a quem não se deve abandonar à violência do processo e, posteriormemte, da pena, com receio do que possam pensar os seguidores do Direito Penal do Terror.

Guarnieri lembra, nessa balada,  que o sujeito passivo do processo criminal, depois do crime, passa a ser o seu protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual giram todos os atos do processo, daí que, nessa condição, deve sim merecer a ação profilática dos juizes garantidores, de modo a não permitir que os seus direitos sejam violados.

É assim que penso. É assim que tenho decidido, na certeza de que somente sob o império da lei se pode construir uma verdadeira democracia.