DITADORES TAMBÉM CHORAM

Há cronistas que juram de pés juntos que a inspiração para uma crônica é uma “luz que chega de repente, com a rapidez de uma estrela cadente, que acende a mente e o coração (João Nogueira). Confesso que, de minha parte, não recebo as minhas crônicas com a mesma rapidez. Tenho até muitas dificuldades para escrevê-las. É que elas precisam de um fato concreto e relevante para se manifestarem, daí que estou sempre atento aos acontecimentos para que, a partir deles, flua a minha inspiração.

A política nacional, por exemplo, pela ação dos nossos representantes, é, para mim, uma fonte inesgotável de inspiração. Nesse sentido, eu bem que poderia, à falta de outro tema, refletir, aqui e agora, por exemplo, sobre a propalada “nova política”, em face do protagonismo do famigerado “Centrão”, onde habitam os mais fisiológicos homens públicos da nossa pátria. Não devo fazê-lo, no entanto, em face da minha condição de magistrado, na compreensão de que há limites para exposição do meu pensamento.

Aprendi, desde sempre, que não convém a um magistrado expor o seu pensamento sobre qualquer tema; máxime temas sensíveis como os políticos. É necessário prestar vassalagem ao bom senso e à ética, os quais devem ser a bússola a orientar as manifestações públicas de um julgador. Nesse sentido, não convém uma exposição demasiada sobre questões políticas, ainda que eu tenha em linha de conta que o juiz não deva ser um eunuco político.

À luz dos fatos e noutro giro, eu bem que poderia, se a mim me fosse permitido, comentar, com a devida profundidade, a decisão de soltura de André do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello, via liminar, bem assim a contraordem emanada do presidente do Supremo Tribunal Federal. Todavia, da mesma forma, não convém fazê-lo. É preciso, também nesse caso e do mesmo modo, tributar homenagem irrestrita ao Código de Ética.

O certo é que outras tantas condutas dos nossos homens públicos poderiam, sim, levar-me à elaboração de um artigo. Afinal, eles não cansam de surpreender com as suas ações, algumas delas pouco ou nada republicanas; outras, em face da sua relevância, desafiando, tão somente, uma detida reflexão.

Com essas cautelas, vou me deter, portanto, na notícia que mais me chamou a atenção nos últimos tempos, pelo que ela tem de inusitada: o choro do ditador norte-coreano Kim Jong-in, no fim de semana passado, durante o desfile militar em comemoração ao 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, seguido de um pedido de desculpas ao povo coreano, admitindo, num rasgo de humildade, ter fracassado na condução do país em tempos de pandemia e tufões.

Confesso que nem nos meus delírios imaginei testemunhar o choro de um ditador e, no mesmo passo, uma manifestação de humildade desse mesmo ditador. Um ditador vertendo lágrimas perante seus súditos é algo que eu supunha não ser possível, ciente de que são, de rigor, pessoas insensíveis, quase sempre más, que não hesitam em mandar matar, em trucidar um adversário ou um inimigo político para se perpeturem no poder, como registram os fatos históricos.

Dito isso e ao ensejo, importa consignar, para não perder a oportunidade – e aqui faço o registro em minha defesa também -, que pessoas com a feição casmurra também choram. Daí porque não me surpreendi, como o fiz em face do ditador, quando vi o ministro Gilmar Mendes com a voz embargada na despedida de Celso de Mello, da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

Os fatos aos quais fiz menção acima deixam uma lição comezinha: o homem, por mais forte que pareça, por mais frio que seja, por mais poder que tenha, ainda que seja uma pessoa destemida, violenta e aparentemente insensível, também chora, seja ele um ditador, um ministro do Supremo Tribunal Federal ou um simples mortal, como o signatário destas reflexões.

É isso.

DURANTE A TEMPESTADE

Principio estas reflexões com um pensamento de Alexandre Dumas: “A vida é uma tempestade. Em um momento, você aproveita a luz do sol, no outro, é açoitado pela chuva. O que importa é o que você faz quando a tempestade chega”.

Digo mais, para desenvolver o meu raciocínio, que empatia é a capacidade psicológica para sentir o que sentiria outra pessoa caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela; que altruísmo é uma forma desinteressada de amar; e que solidariedade é um ato de bondade e compreensão para com o próximo.

A partir desses conceitos objetivos, importa, agora, indagar: por que, sendo todos filhos do mesmo Deus, seguidores da orientação cristã de quem pregou amor ao próximo acima de tudo, durante as tempestades a muitas pessoas faltam empatia, altruísmo e solidariedade?

Essa indagação inquietante tenho feito, repetidas vezes, a propósito da conduta de muitos que, podendo, não evitam o risco de contaminação pelo Sars-CoV-2, embora cientes de que, contaminados, podem, no mesmo passo e com grande probabilidade, infectar o semelhante, inclusive pessoas de sua própria família, muitas das quais do grupo de risco.

Essa grave falta de empatia, altruísmo e solidariedade, que nos iguala aos seres irracionais, me impõe reafirmar o que tenho dito nas conversas informais: nas adversidades, o homem se revela – para o bem ou para o mal. É dizer: há pessoas que não estão nem aí para o semelhante, ainda que esse semelhante sejam os próprios pais, numa atitude que, para mim, beira à irracionalidade.

Diante desse panorama, importa indagar, ademais: no que essas pessoas são diferentes, na essência, dos que se aproveitaram da pandemia para superfaturar na compra e venda de respiradores, de testes e de máscaras para o enfrentamento do novo coronavírus?

Indago, outrossim: no que diferem essas pessoas de sua Excelência, o Presidente da República, que nunca hesitou em se contaminar e replicar a contaminação, expondo, desnecessariamente, a vida de outras pessoas, inclusive de sua própria família?

No que essas pessoas são diferentes do tenista Novak Djokovic, número um do mundo, que abriu ao público um torneio de exibição em sua cidade natal, Belgrado, na Sérvia, promovendo uma aglomeração de pessoas sem máscaras nas arquibancadas e que, para completar, levou colegas de raquete a uma balada que varou a madrugada, debochando do novo coronavírus que, para se vingar, contaminou tanto ele quanto a esposa, o preparador físico e outros três tenistas que participaram da brincadeira?

E da influenciadora digital, Gabriela Pugliesi, especializada em saúde e bem-estar, que deu uma festa de arromba em plena pandemia e que, por isso, foi execrada/cancelada nas redes sociais? Do que diferem os intrépidos sabotadores dos protocolos sanitários?

Eu, sinceramente, não consigo compreender por que há pessoas que, podendo praticar ações benéficas ao semelhante, preferem, ao reverso, expor o seu desprezo pelo congênere. Nesse panorama, como animais que constroem, abrem veredas perigosas, incessante e perigosamente, sem se importarem aonde podem ser levados em face dos caminhos que escolheram (Dostoiévski. “Notas do Subsolo.” L&PM Editores. 40, Apple Books).

Pessoas insidiosas que agem como tem agido uma parcela da população em face da pandemia que atravessamos, lembram Mersault, protagonista de o Estrangeiro, de Albert Camus (eBook, Editora Record), um ser humano frio, insensível e amoral que, um dia depois do enterro da mãe, cuja data de nascimento e de morte nem sabia ao certo, inicia um caso amoroso e vai ao cinema se distrair, agindo, como sempre agiu, indiferente aos mais comezinhos valores morais.

É isso.

CASA DE PAI

As datas comemorativas devem ser levadas em conta, não só para o consumo, mas também para reflexões, o que faço aqui e agora, a propósito do dia dos pais, começando por uma ilustração literária, do clássico O Complexo de Portnoy, de Philip Roth (Pos 45, de 3882, Companhia de Bolso), no qual o personagem central da trama, Alexander Portnoy, além dos seus próprios conflitos, era obrigado a conviver com posições díspares e controvertidas dos pais, causando-lhe inquietação moral, pois, enquanto a sua mãe adotava a honestidade como prática de vida, o pai, em direção oposta, orientava o filho, por exemplo, a não se casar por beleza e nem por amor, mas por dinheiro.

Conflitos morais desse jaez, ao lado da disputa pelo poder, importa dizer, não se veem apenas nas obras ficcionais; criação distorcida e ambientes forjados à luz de disputas por dinheiro e por um naco de poder tem-se verificado, infelizmente, em muitos ambientes familiares, muitas das quais fruto de orientações paternas equivocadas. E assim, não são poucos os pais que, com suas ações e seu modo de vida, com os seus (maus) exemplos, induzem os filhos a acreditarem que nesse mundo o que vale mesmo é vencer a qualquer custo, e que, pelo poder, e em face do que dele decorre, tudo é permitido, tudo pode ser feito, pouco importando os valores morais.

A verdade é que, conquanto admita-se não seja regra geral o estímulo à convivência regada a interesse escusos, há, sim, muitos cujo exemplo e prática de vida deixam evidente que, por vantagens materiais/poder, vale qualquer expediente, mesmo que seja a forja de um casamento sem amor e por interesses materiais, com reflexo na criação da própria prole, como no exemplo acima, apanhado da literatura do grande Philip Milton Roth, festejado romancista norte-americano (Newark, Nova Jersey, 19/03/1933-Nova York, 22/05/2018).

Admito, sim, que sou do tipo careta, do tipo démodé, pois, apesar dos exemplos negativos que permearam a minha vida, fruto de uma convivência tóxica com o provedor do lar, apesar de todas as dificuldades pelas quais passei, acredito – e aposto -, sofregamente, no amor, na concórdia e na retidão no ambiente familiar, relegada a ambição material e a ambição pelo poder a um plano secundário.

Tenho dito e redito, com a ênfase necessária, que aqueles que orientam os filhos – por palavras ou pela prática de vida – a formarem uma família à luz de interesses menores, que não seja, portanto, em face do amor, os conduzem à construção de um castelo de areia, que sucumbirá à primeira tempestade. Afinal, não se orienta filhos a formarem uma família alicerçada no interesse econômico e outros que tais, porque, afinal, não se constrói uma sociedade minimamente decente, ministrando conselhos daninhos aos filhos, ensinando-os a levarem vantagens, em detrimento dos valores morais.

Quero, sim, ver meus filhos vencendo as dificuldades e conquistando o seu espaço na sociedade. Também quero que meus filhos sonhem e realizem os seus sonhos, pelo fato de desejar que eles construam a sua história como eu construí a minha. Todavia, não os estimulo às conquistas a qualquer preço, de toda sorte, sob os escombros de sua dignidade.

A casa de pai não deve ser apenas a escola dos filhos, mas uma boa escola, decente, fraterna e honrada, que os conduza pelos caminhos da dignidade e da decência. Logo, os desejos do homem, a sua ambição, a sua volúpia pelo poder e pelos bens materiais não podem ser de tal monta que o levem à degradação moral e, nessa faina, seus próprios filhos, pois, afinal e definitivamente, os fins nem sempre justificam os meios.

Para encerrar, lembro que Sócrates, tido por muitos como o mais sábio dos homens, entendia que se encontrava mais próximo dos deuses quando menos desejava. Por isso, se orgulhava de viver uma vida modesta, sem ambição; sentimento que, para mim, definitivamente, tem limites, os quais ensino, do mesmo modo, aos meus filhos.

É isso.

blog: www.joseluizalmeida.com

e-mail: jose.luiz.almeida@globo.com

FILHOS E DILEMAS MORAIS

Desembargador José Luiz Oliveira de Almeida

Membro do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão

Em vista das acusações de condutas ilícitas imputadas ao senador Flávio Bolsonaro, filho do atual presidente da República, e, também, a Fábio Luís Lula da Silva, o famigerado “Lulinha”, filho do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, foi que me propus a essas reflexões, porque envolvem pessoas destacadas da República, o que, de certa forma, aponta para a relevância de se perquirir até aonde podemos chegar na defesa dos nossos filhos.

Nesse sentido, inicio as reflexões com algumas indagações inquietantes: na defesa dos filhos vale tudo? Os filhos, por serem filhos, devem, de plano, ser perdoados pelos seus erros, pelos seus deslizes, pelos seus crimes? Os meus filhos, por serem meus filhos, merecem de mim a complacência e a compreensão que não merecem os filhos do vizinho? Até que ponto o homem público deve se envolver com a defesa dos filhos, a ponto de se descuidar dos destinos do próprio país? Nesse sentido, os interesses pessoais podem ser colocados acima do interesse público?

Duas séries televisivas (serviço de streaming) e um livro me levaram à indagação supra e, por consequência, a essas reflexões, que têm tudo a ver com o que testemunhamos nos dias atuais, como destaquei acima.

As séries em defesa de Jacob e Vossa Excelência, a primeira na Apple TV +, e a segunda no Globoplay –, bem como o livro Suzane Assassina e Manipuladora – tratam, a seu tempo e modo, do envolvimento de filhos com a prática de ilícitos.

Em Vossa Excelência (Apple TV+), produção israelense, narram-se os dilemas morais de um juiz íntegro ao saber do envolvimento do seu filho único com o cometimento de um crime grave. Na série em comento, o filho chega a casa aparentando desmedido nervosismo, e acaba confessando, depois de pressionado pelo pai, que usou o carro da família para dar uma volta, tendo, no caminho, se envolvido em um acidente com um motociclista. Contudo, em vez de socorrê-lo, acabou fugindo do local do crime. Diante do evento, o pai passa a lamentar por todas as vezes em que foi condescendente com o filho e o superprotegeu, indagando a si mesmo que tipo de ser humano ignora alguém ferido numa estrada para se preocupar apenas consigo mesmo. Um baita dilema moral, portanto, toma conta do juiz.

Na série Em defesa de Jacob (Globoplay), uma família leva uma vida aparentemente perfeita, numa casa confortável, num dos prósperos subúrbios americanos, numa aparente harmonia conjugal, até que Jacob, filho do casal, é acusado de matar um colega de classe. Andy e Laurie, pais de Jacob, sob o mesmo dilema moral, decidem defender o filho, mesmo sendo ele culpado.

Como se vê, nas duas situações antes descritas, ante o mesmo dilema moral, os pais assumem posturas diferentes.

Enquanto na série Vossa Excelência os pais do autor do fato assumem uma postura crítica, o que leva o espectador a crer – mais não posso dizer, para não dar spoiler – que não passarão panos na sua atitude, na série Em defesa de Jacob os pais assumem uma posição de intransigência, mas em defesa do filho.

O livro acima referido (editora Matrix) narra o assassinato dos pais de Suzane Louise von Richthofen, Manfred e Marísia, idealizado por ela própria, contando com a participação dos irmãos Cravinhos; um deles, Daniel, seu namorado. No dia do julgamento dos criminosos pelo Tribunal do Júri, a mãe dos irmãos Cravinhos, Daniel e Cristian, surpreendeu e emocionou a todos os presentes, quando, na condição de testemunha de defesa, subiu ao púlpito para depor. Na oportunidade, Nadja Cravinhos falou que criou os filhos com dignidade, amor e muito carinho, tendo, em seguida, com a voz embargada, sentenciado “Eu me sinto de luto e muito triste em relação à tragédia que se abateu sobre as duas famílias envolvidas” para, no final, surpreendendo a todos, pedir o que mãe nenhuma pediria para um filho, ou seja, a sua condenação, concluindo: “Essa justiça é necessária. Dói muito em mim, mas é necessária. Só peço a Deus que essa justiça imposta pelos homens seja na medida certa” (from “Suzane – Assassina e Manipuladora”, by Ulissses Campbel).

Em face do acima narrado, diante do dilema moral que se abate sobre os pais em face do envolvimento dos filhos com a prática de crime, resta-me indagar: devemos, em nome do amor que lhes devotamos, defendê-los a todo custo, mesmo sabendo que eles são culpados pelos crimes eventualmente cometidos, ou, ao reverso, devemos pugnar apenas para que a justiça seja feita, desde que seja na medida certa?

Agora a indagação definitiva: um homem público, com destacada posição na República, cujos destinos tem às mãos, está autorizado a mudar o rumo, mudar o discurso, mudar a conduta, trair os compromissos assumidos com a população por causa dos filhos, em defesa dos filhos, mesmo que eles tenham eventualmente cometido crimes?

Os destinos de uma nação podem ficar atrelados aos interesses familiares dos seus agentes ou, ao contrário, deveriam eles sublimar o interesse público, ainda que o preço a pagar seja a punição dos filhos pelos seus mal-feitos?

Nos dias presentes, essas e outras indagações me inquietam, sobretudo quando testemunho que, no jogo do poder, quando as questões pessoais sobrepujam o interesse público, ampliam-se as ações dos oportunistas, e o preço a ser pago é muito alto.

É isso.

CARTEIRADA INFAME

A propósito da carteirada do confrade Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que humilhou um guarda municipal em Santos, vou narrar um episódio que se deu comigo.

Há cerca de três anos, estando em viagem com uns amigos pelo litoral piauiense (Barra Grande), fomos surpreendidos, já no resort, com a informação de que nos nossos apartamentos não havia televisão; depois, constatamos que a internet também não tinha sido disponibilizada.

É claro que foi grande o desalento, afinal, televisão e internet são, nos dias presentes, artigos de primeira necessidade. Pensei com meus botões: Fazer o quê, agora? A essas alturas do campeonato, ponderei, é melhor gastar energia com outros prazeres.

O inusitado do fato, no entanto, foi o conselho que recebi de uma pessoa muito próxima, que, casualmente, também estava hospedada no mesmo resort: “Por que o senhor não se apresenta logo como desembargador? Garanto que, se o senhor se apresentar, eles resolvem logo o problema”.

Não argumentei na hora, por educação, mas posso dizê-lo agora, a propósito da já famigerada carteirada de Santos (SP): acho uma tremenda babaquice, uma falta de postura, um atraso mental, enfim, uma pessoa valer-se do poder que tem para impor-se ou reivindicar algo, máxime quando o autor da carteirada o faz tendo praticado, antes, uma ação marginal.

De rigor, entendo não ser preciso, em qualquer circunstância, que, para fazer valer um direito, para o exercício da cidadania, as pessoas tenham que invocar a sua posição social, o poder que detenham eventualmente, ainda que estejam cobertas de razão, o que não foi o caso do desembargador da carteirada infame.

Infelizmente, no Brasil como um todo – e no Maranhão em particular -, muitas vezes, as pessoas são instadas a se identificarem para que as portas se abram, o que é um grave sintoma do nosso atraso. Daí que, devido a essa cultura, vicejam os que vão além, exibindo, equivocadamente, força e poder para se safar de um constrangimento que eles próprios provocaram.

Reafirmo, com a necessária ênfase, que é uma rematada babaquice, falta de compostura, arrogância, enfim, alguém se identificar como autoridade, para tentar se impor ou se safar de uma abordagem corriqueira feita, por exemplo, por um agente público, no exercício regular de sua atividade.

A prática da carteirada, é preciso ter em conta, é uma manifestação inequívoca do nosso atraso, e resulta, na maioria das vezes, da pobreza de espírito de quem se julga superior ao semelhante e, por isso mesmo, merecedor de tratamento diferenciado, ainda que para tanto seja preciso sobrepujar a lei.

No Brasil, lamentável a constatação, as pessoas valem muito pouco quando ostentam apenas sua condição de cidadão, acostumados que fomos, culturalmente, a bradar o “sabes com quem estás falando?”, para o bem e para o mal, como fez o colega desembargador de São Paulo.

No Brasil, triste dizer, assim sempre foi e sempre será, ou seja, é preciso mais, muito mais, para fazer valer um direito. Daí que, nesse ambiente deteriorado por práticas nefandas de exibição de poder, vicejam, no mesmo passo, as ações dos que vão além dessa exibição de força e poder, objetivando se safarem do cumprimento de uma obrigação comezinha de respeito ao próximo e à lei.

Lamentavelmente, em terras brasileiras, é necessário, como dito acima, “estar podendo”. Por isso a prática atrasada e incivilizada da carteirada, que, pelo que ela tem de mais repugnante, termina por incutir nas pessoas, mesmo aquelas que só, eventual e circunstancialmente, estejam em posição de destaque, ser a alternativa mais fácil para se livrar do desconforto proporcionado por uma abordagem qualquer.

É isso.

CABEÇAS-DURAS

Os dias presentes me autorizam a retomar um tema sobre o qual já tratei em artigos anteriores, que condiz com o que chamo de controles morais seletivos, que avulta de importância nesses dias estranhos permeados por intensa e, às vezes, irracional paixão política, com destaques para os chamados cabeças-duras, que mesmo testemunhando os desatinos dos seus lideres teimam em não reconhecê-los e os seguem cegamente, como se fosse um pecado retirar-lhes o apoio.

Inicio com um excerto relevante da obra ficcional “Não verás país nenhum”, de Ignácio Loyola Brandão, publicado originalmente em 1981. Nela, o protagonista, um ex-professor de História, aposentado à força pelo regime, um burocrata metódico e entediado, faz, logo no início, no primeiro capítulo, uma grave confissão, como se fosse a coisa mais simples do mundo, mas que traduz um pouco do que somos culturalmente. Os fragmentos da confissão estão nos seguintes termos:

“Quatro para as oito; se não corro, perco o ônibus. Não fosse esta perna, eu teria uma bicicleta, como todo mundo. Uma artrose no joelho me impede de pedalar. Tive de passar por dezenas de exames, centenas de gabinetes, paguei gorjetas, conheci todos os pequenos subornos.” (Trecho de: Ignácio de Loyola Brandão. “Não Verás País Nenhum.” iBooks).

O que se vê dos excertos acima transcritos são, pura e simplesmente, a tradução da realidade, ou seja, a toda hora são praticados, por pessoas dos mais variados espectros sociais, pequenos desvios de conduta, pequenos ilícitos, permeados de uma dose não desprezível de mentiras, objetivando superar obstáculos ou levar alguma vantagem, estando a merecer reproche, como tenho testemunhado, apenas os desvios daqueles com as quais não nos identificamos, pelos mais variados motivos.

A par dessa realidade, é fácil constatar, sem surpresa, que costumamos exigir das pessoas, sobretudo dos adversários, aquilo que, muitas vezes, não exigimos de nós mesmos e das pessoas com as quais nos aliamos, por convicção ou conveniência, a traduzir as nossas indissociáveis contradições.

É dizer: não são poucos os que são rigorosos, severos juízes da conduta alheia, do comportamento do outro, mas frouxos quando se trata da sua própria conduta, ou das pessoas às quais aderem incondicionalmente, como se constata no ambiente político, onde só os inimigos têm defeitos.

Nesse cenário, penso, com efeito, que se fôssemos capazes de impor limites a nós mesmos, de colocar em ação os nossos próprios freios morais, e se tivéssemos o necessário descortino para reconhecer os defeitos dos nossos políticos de estimação, como fazemos com os que elegemos como inimigos, a sociedade, o mundo e o nosso futuro seriam diferentes, e a nossa história teria sido escrita sob uma outra perspectiva.

Em face da crise moral que vivenciamos e das contradições que são próprias do ser humano, o que se observa – sem estupefação, com uma dose significativa de parcimônia, o que torna a questão mais grave ainda – é uma espécie de apologia descarada do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, caradurismo de quem se impõe uma química de resistência que o impede de ver a realidade como ela se apresenta.

Todavia, se queremos mudar o rumo da história, se pretendemos construir uma nova sociedade, não podemos ser seletivos nas nossas ações morais e na condenação dos desvios de conduta de outrem, pois a condenação às condutas desviantes não pode ser oportunista, conveniente ou seletiva.

Nessas questões, como em tantas outras, não se deve ser dúbio e incoerente em face dos nossos interesses pessoais. Ou bem assumimos uma postura retilínea nessas questões, acionando os freios morais independentemente de quem seja o condutor das ações descontroladas, ou não teremos condições morais de acioná-los em face do inimigo, apenas porque é um inimigo.

Se for nossa intenção contribuir para a mudança, o nosso juízo crítico deve ser o mesmo, quer se trate de um inimigo, quer se trate de um amigo, quer seja em face de um aliado, quer em face de um desafeto, pois os controles e os juízos morais seletivos são uma grave deformação da personalidade de quem os emite e não contribui em nada para nossa evolução como seres humanos.

Nosso juízo crítico tem que ser retilíneo, sem relativizações oportunistas, daí que não podemos ser cínicos, insensíveis, amorais e transigentes com os nossos, os que estão guardados no lado esquerdo do peito, e rigorosos, moralistas, sensíveis e intransigentes com os que não gozam da nossa afinidade.

E como ninguém nessa vida está livre de um desvio moral, convém estarmos atentos. Portanto, os nossos controles internos não podem ser frouxos, devendo estar sempre de prontidão, para, constatado o desvio, impor a nós mesmos a correção de rumo que julgamos deva ser imposta aos outros; nesse quesito não é de bom alvitre o cabeçadurismo.

É isso.

O DIREITO DE SE CONTAMINAR

Chamo a atenção, de logo, para o seu direito – ainda que o exercício desse direito seja uma excentricidade perigosa – de, querendo, se expor à contaminação pelo coronavírus; decisão que, de rigor, não há como ser controlada, conquanto seja razoável, em face dos riscos decorrentes da Covid-19, evitar, na medida do possível, expor-se à contaminação.

Na mesma toada digo, no entanto, que você não tem o direito de, conscientemente, expor outras pessoas à contaminação, porque dessa ação voluntária e consciente pode resultar, sim, consequências legais/morais.

Dito isso, digo, agora, ingressando no tema que trago à reflexão, que, nas situações adversas e extremadas, o homem se revela – para o bem ou para o mal.

Lembro-me, à guisa de ilustração, de um filme a que assisti recentemente, intitulado “Até o último homem”, de Mel Gibson. É um drama biográfico, de nacionalidade Australiana/americana, disponível nos melhores serviços de streaming de vídeos.

Nele, o protagonista, um médico do exército americano, durante a Segunda Guerra Mundial, se recusa a pegar em arma para matar pessoas, pelo que é incompreendido e, até, desrespeitado.

Todavia, durante a Batalha de Okinawa, na ala médica, ele, superando todas as adversidades, salva 75 homens, a reafirmar o que eu disse no início, ou seja, que, diante das adversidades, o homem se supera, para o bem ou para o mal.

Em relação à pandemia que vivenciamos nos dias presentes, há, da mesma forma e com a mesma intensidade do exemplo ilustrativo acima narrado, profissionais de saúde superando as adversidades para salvar vidas; superação para o bem, portanto.

Mas há, noutro giro, diante da mesma tragédia dos dias presentes, os que se revelam para o mal, com destaque, nessa perspectiva, para os que não se colocam no lugar do próximo, destituídos de sentimentos básicos que devem permear as relações entre as pessoas.

Falo, nessa senda, dos que afrontam o novo coronavírus e se expõem à infecção como um desafio, sem medir as consequências que decorrem da possibilidade de expor outras pessoas à contaminação, inclusive de sua própria família, esquecidos que, em termos difíceis, exige-se sacrifício compartilhado (Thiago Bronzatto, filósofo americano).

Um dia desses, acreditem, assisti, no YouTube, um cidadão dizendo não estar nem aí para o coronavírus, e que era preciso enfrentá-lo como homem, repetindo o que ouviu de uma determinada liderança política.

No mesmo YouTube, vi um grupo de jovens, todos aparentemente saudáveis, num iate portentoso, num ambiente animado – e ao que tudo indica, regado a muito álcool -, em plena pandemia, trocando beijos e carícias, e, pasmem, debochando do sars-cov-2.

Diante de comportamentos dessa natureza, reafirmo o que eu disse no início deste artigo: o cidadão (?), ainda que isso flerte com a irracionalidade, tem o direito de se expor à Covid-19, mas não pode nem deve expor outras pessoas à contaminação.

As cenas dantescas descritas acima revoltam, mas a mim não surpreendem, pois apenas reafirmam a minha constatação: há pessoas que se superam na capacidade de fazer o mal, como há, da mesma forma, as que se superam pela capacidade de fazer o bem.

No cenário devastado pela Covid-19, não são poucos os que, embora podendo não o fazer, se expõem ao novo coronavírus, quase como um capricho, como um desafio, até mesmo para dar vazão aos seus sentimentos mais egoísticos.

E, o que é mais grave no quadro acima delineado, é que não são poucos os que o fazem por birra (acredite!), por alinhamento político, ideologizando o novo coronavírus, apontado, nesse afã, como consequência de uma ação de esquerdistas.

A que ponto chegamos?!

É preciso ter presente que, diante de um inimigo tão poderoso e devastador, todos devem assumir padrões de comportamento adequados. E é bom que esqueçam – se é que é possível aos radicais – que não há coronavírus de direita ou de esquerda, na medida em que, seja qual for a ideologia do seu portador, a Covid-19 pode levar à morte.

Lembro, agora, que, se é verdade que todos nós temos o direito constitucional de ir e vir – argumento dos negacionistas para descumprirem o isolamento social –, não é menos verdadeiro que nenhum direito é absoluto. Ademais, temos que ter respeito pelo próximo, sobretudo por aqueles que, racional e responsavelmente, têm-se mantido isolados, não porque queiram, mas pelo fato de ser necessário fazê-lo, para preservarem tanto a si quanto ao próximo e aos seus entes queridos.

Repito, já temendo pela exaustão, as pessoas, diante do inusitado, costumam se superar, para o bem e para o mal; os exemplos citados acima e o mais que tenho testemunhado todos os dias reafirmam essa verdade elementar.

A propósito dos dias que vivemos e do comportamento insano dos que, mesmo podendo, não deixam de se expor ao novo coronavírus, lembro, inspirado no poeta popular, que “ninguém destrói essa guerra plantando brisa e colhendo vendaval”, música/tema (do saudoso Moraes Moreira) da novela Roque Santeiro, que a minha geração conhece muito bem.

É isso.

É PRECISO RESISTIR

Para ilustrar, um fato histórico.

Adolf Eichmann, como sabido, foi o principal responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Ele estava radicado em Buenos Aires desde 1950, onde vivia com identidade falsa sob o nome Ricardo Klement.

Contra Eichmann, no entanto, havia um inquérito instaurado com provas de sua contribuição para o massacre do povo judeu. Ao lado disso, havia a determinação de David Ben-Gurion – primeiro chefe de governo de Israel, como sabido – de levar todos os nazistas a julgamento no território israelense. Com esse objetivo, Ben-Gurion encarregou a polícia secreta israelense (A Mossad) de sequestrar e levar Adolf EIchmann para ser julgado em Israel, o que efetivamente foi feito.

O julgamento de Adolf Eichmann, no entanto, em face de suas peculiaridades, recebeu inúmeras críticas, dentre elas a falta de legitimidade de se submeter alguém a julgamento, sendo conduzido à força ao Tribunal, contra as vigentes regas de Direito Internacional. Além da questão atinente à violação das normas, o governo argentino protestou formalmente pela violação de sua soberania.

Na Alemanda Ocidental, o chancelar Konrad Adenaur repreendeu publicamente Israel pelo sequestro, e os editores dos principais jornais do país exigiram que o criminoso nazista fosse extraditado e julgado por juízes e não por vingadores. Como sabido, o caso foi levado pela Argentina à Organização das Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança condenou a ação israelense e recomendou que fosse feita a devida reparação.

Contudo, de nada adiantou, pois, apesar de lamentar a violação das leis argentinas, Ben-Gurion anunciou que Eichmann seria, sim, julgado em Israel, o que efetivamente ocorreu.

Mas o questionamento mais importante em face desse fato histórico, e que me levou a essas reflexões, foi a posição assumida por Hannah Arendt, judia de origem alemã, filósofa política e uma das pessoas mais influentes do século XX. Ela sustentou, com efeito, que o réu não era propriamente um monstro, mas um homem que se considerava mero cumpridor de ordens ou uma simples engrenagem da máquina estatal que produziu o Holocausto.

Na visão de Arendt, qualquer pessoa poderia agir como Eichmann, desde que se encontrasse imersa num ambiente destituído de questionamentos quanto à violação dos direitos humanos, pois nesse ambiente há uma inversão de valores, e a brutalidade passa a ser vista como algo normal. Nesse sentido, estaria consolidada a banalização do mal, uma espécie de letargia na qual a pessoa se exime da capacidade de pensar e de questionar tudo o que se passa em sua volta.

Na visão particular de Arendt sobre essa questão, a referida passividade pode produzir uma massa de seres incapazes de formular juízos críticos (Os Grandes Julgamentos da Historia, by José Roberto de Castro Neves), o que me leva a algumas reflexões, como anotei acima, em face da realidade que se descortina sob os meus olhos.

No caso brasileiro, por exemplo, em face da corrupção endêmica que tomou conta do país, o cidadão, diante desse cenário moral devastador, estaria autorizado a também se engajar nesse processo, impedido de exercer um juízo crítico e de se insurgir em face dele?

A engrenagem estatal brasileira que institucionalizou a corrupção impediria que as pessoas de bem resistissem as investidas dos corruptores, em face de, contaminadas pelo ambiente pernicioso, terem perdido o juízo crítico?

Num ambiente contaminado pelos desvios de conduta, todos que nele vivessem teriam, inapelavelmente, que a ele aderir, segundo se pode inferir – num juízo preliminar, claro -, em face das conclusões de Arendt?

Nas pugnas eleitorais, onde prevalece o uso de expediente pouco recomendáveis, para dizer o mínimo – compra de votos, falsas promessas, acordos espúrios etc –, todos estariam compelidos à adesão como um imperativo moral, impedidos, assim, de pensar, em face de um gravíssimo estado de letargia e degeneração moral?

Diante de tais questionamentos, eu, de meu lado, compreendo, inobstante, que a história está aí para provar em sentido diverso do que pensou Arendt, pois não foram poucos os que, mesmo sob pressão, não cederam à tentação de desviar a conduta, refutando, nesse afã, as práticas morais reprováveis.

 E os exemplos são vários, não comportando mencioná-los nesse espaço, bastando dizer, entrementes, para ilustrar, que no ambiente moral devastador revelado pela Lava-Jato, não foram poucos os que, tendo oportunidade, se abstiveram das práticas morais condenáveis

Posso dizer, com convicção, que não foram poucos – e não são poucos nos dias atuais – os brasileiros que, mesmo vivendo em ambientes impregnados de desvios morais, exerceram – e exercem –  um juízo crítico atilado, se recusando a aderir às práticas imorais que contaminam vários ambientes corporativos em nossa sociedade.

Portanto, diante dessa constatação, eu, cá do meu lado, sem pretender parecer arrogante e prepotente, me permito discordar, respeitosamente, da grande Arendt, por entender que se não formos capazes de resistir, mesmo em ambientes onde preponderam os desvios de conduta, não mudaremos o curso da história, pois, mesmo entre os contaminados pelo ambiente nazista, para ficar no exemplo que me levou a essas reflexões, houve os que emprestaram o seu dissenso em face do holocausto.

Nós não devemos, sob qualquer pretexto, emprestar a nossa aquiescência em face do errado. Errado é errado e ponto, e em face do erro, mesmo estando contaminado o ambiente, devemos reagir sempre, com a necessária obstinação.

Logo, é preciso, sim, resistir. E resistir com tenacidade, sob pena de banalizarmos o errado.

É isso.